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O “tratamento psíquico pelo psíquico”

3. A PSICOFARMACOLOGIA NA PSICANÁLISE

3.2. A relação entre a psicofarmacologia e a psicanálise

3.2.3. O “tratamento psíquico pelo psíquico”

Neste mesmo sentido, Georges Canguilhem, em O normal e o patológico (1966), ressalta que não se pode qualificar como patológico um determinado fenômeno biológico através apenas de um método objetivo de avaliação. A justificativa do que é ou não patológico, por intermédio da clínica, depende da relação deste determinado fenômeno com o indivíduo doente. Apesar de admitir a importância dos métodos objetivos de observação e de análise na patologia, Canguilhem afirma que não se pode falar em uma

“patologia objetiva”, considerando que seu objeto de estudo, o ser humano, não é desprovido de subjetividade. Uma pesquisa que visa a um objeto construído sem uma qualificação positiva ou negativa poderia ser objetiva e imparcial; no entanto, quando este objeto depende de um valor 108,ou seja, quando está implicado o subjetivo na constituição de um fenômeno, esta objetividade na avaliação dificilmente poderá ser considerada:

“Portanto, existe medicina, em primeiro lugar, porque os homens se sentem doentes. É apenas em segundo lugar que os homens, pelo fato de existir uma medicina, sabem em que consiste sua doença” (CANGUILHEM, 1966, p. 166).

Assim, foi a partir da análise que Maya conseguiu compreender a causa de seus sintomas: seu “medo de hospital”, até então incompreensível, representava o conflito em querer se desvincular do seu pai – uma típica ambivalência edípica -, que ela pôde expressar durante a análise. Seu sonho, descrito logo no início dos fragmentos, já trazia diversos elementos dos quais trata a psicanálise: o processo primário, o Complexo de Édipo, a transferência. Desta maneira, ao longo do acompanhamento psicanalítico que permitira a ressignificação e elaboração de sua angústia, Maya já não mais precisava fazer uso das medicações psicotrópicas: a análise era “seu remédio”.

essencial do tratamento psíquico, mostrando a influência do psíquico sobre o corpo.

Começa Freud em seu artigo:

“Psyche” é uma palavra grega e se concebe, na tradução alemã, como alma.

Tratamento psíquico significa, portanto, tratamento anímico. Assim, poder-se-ia pensar que o significado subjacente é: tratamento dos fenômenos patológicos da vida anímica. Mas não é este o sentido dessas palavras.

“Tratamento psíquico’’ quer dizer, antes, tratamento que parte da alma, tratamento - seja de perturbações anímicas ou físicas - por meios que atuam, em primeiro lugar e de maneira direta, sobre o que é anímico no ser humano.

Um desses meios e sobretudo a palavra, e as palavras são também a ferramenta essencial do tratamento anímico. O leigo por certo achara difícil compreender que as perturbações patológicas do corpo e da alma possam ser eliminadas através de “meras” palavras. Achará que lhe estão pedindo para acreditar em bruxarias. E não estará tão errado assim: as palavras de nossa fala cotidiana não passam de magia mais atenuada. Mas será preciso tomarmos um caminho indireto para tornar compreensível o modo como a ciência é empregada para restituir às palavras pelo menos parte de seu antigo poder mágico (FREUD, 1905, p. 271).

O artigo se ocupa do hipnotismo - e talvez sobre uma referência imprecisa do método catártico -, partindo da descrição das técnicas de tratamento dos médicos da antiguidade, baseadas na administração de poções mágicas, banhos purificadores e invocação de sonhos reveladores e oculares, que apenas poderiam ter se tornado curativos por via psíquica.

Freud inicialmente utilizava a sugestão e a hipnose para modificar os processos psíquicos do doente, na tentativa de remover o sintoma. No entanto, ele abandona a hipnose em favor da livre associação, pois percebera que a hipnose constituía apenas um meio de introduzir a rememoração para a cura. Além disso, não trabalhava as defesas que haviam levado ao aparecimento dos sintomas, fato observado no pronto retorno destes após encerrada a sugestão hipnótica. Posteriormente, Freud percebe que a defesa não é consciente, adicionando a noção de uma porção inconsciente ao ego: tratava-se de dissolver um conflito psíquico que não havia sido resolvido e por isto foi colocado no inconsciente ou nunca chegou a se tornar consciente. A partir da observação dos fenômenos da histeria, ele considera que um evento traumático anterior teria abalado a saúde do aparelho psíquico:

A saúde teria sido abalada por este corpo estranho (trauma) ao aparelho psíquico. Somente por meio da ligação e transformação dessa representação em memória o sintoma desaparecerá, e a representação voltará à consciência e organizadores do trabalho tenham deixado de fornecer tal indicação. A primeira edição de Die Gesundheit, no entanto, fora publicada em 1890.

à cadeia de representações conscientes. A fala, na situação analítica, permitirá a diminuição da força hostil da representação e das medidas defensivas do ego, e a catarse assume, nessa época, o papel de principal instrumento da cura (PERON, 2004, p.42).

Ao longo de sua obra, ao perceber que apenas a fala na situação analítica também não seria o suficiente para a cura do paciente, Freud introduz a necessidade da interpretação, “a restituição do sujeito de sua história subjetiva e não apenas de sua história material” (PERON, 2004, p.46). O analista agiria como um arqueólogo – esta analogia pode ser vista em Construções em análise (1937) – que teria a tarefa de escavar as camadas que esconderiam as estruturas soterradas, ou seja, o analista retira as resistências e o recalque que encobrem os conteúdos sexuais infantis, até que se tornem conscientes.

A tarefa do trabalho da análise dependeria do material colocado pelo paciente à disposição do analista, para que ele possa fazer uso e guiá-lo “no caminho da recuperação das lembranças perdidas”. Este material consiste em muitos elementos: fragmentos de lembranças em seus sonhos – de grande valor, mas via de regra deformados-, a associação livre, as ações desempenhadas pelo paciente que sugerem repetições dos afetos pertencentes ao material reprimido... O mais importante destes elementos, ressalta Freud, é a transferência: “Nossa experiência demonstrou que a relação de transferência, que se estabelece com o analista, é especificamente calculada para favorecer o retorno dessas conexões emocionais. É dessa matéria-prima – se assim podemos descrevê-la – que temos que reunir aquilo de que estamos à procura” (FREUD, 1937, p.276).

Fédida pontua que é do interior do paciente – que se denomina psíquico – que se forma a interpretação na fala do terapeuta, em um “movimento de ressonância” na relação analista-analisando. Para que isto ocorra, pressupõe-se que a presença em si do analista não possibilite o encobrimento do sintoma a partir de uma associação sugestiva externa;

o analista deve ser “transparente como o ar”, favorecendo a transferência (FÉDIDA, 1998, p.36). A partir dela, a figura do analista poderia ser interiorizada pelo paciente, juntamente com as suas interpretações, na medida necessária para que mudanças psíquicas favoráveis possam acontecer.

Neste sentido, poderíamos também pensar no papel da transferência na relação médico-paciente na vigência da administração de um psicofármaco e no impacto disto nos seus efeitos terapêuticos: “E se precisasse aqui ser mais audacioso no espírito da

pesquisa clínica, ousar-se-ia a hipótese de que a molécula química não adquire a plena capacidade de sua inteligência senão graças à magia psíquica das palavras!” (FÉDIDA, 1998, p.42, grifo do autor).

Consideramos o efeito placebo das medicações psicotrópicas um bom exemplo do que foi visto. Comprovou-se há muito tempo que substâncias farmacologicamente inativas podem produzir efeitos clínicos significativos.