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―Introdução à análise estrutural das narrativas‖ é um texto em embate. Barthes ali formula passagens que surpreendentemente indicam uma percepção mais aberta da estrutura e do sentido, ao mesmo tempo em que postula algumas impossibilidades a essa abertura. Os trechos seguintes são respectivamente exemplares dessa constituição dúbia: ―A estrutura da narrativa está em forma de fuga‖ (BARTHES, 2001, p. 129); ―Existe uma liberdade da narrativa, mas essa liberdade é literalmente limitada‖ (BARTHES, 2001, p. 150). Ora, a primeira citação se complementa justamente com o argumento de que o sentido da narrativa não está em seu próprio fim, mas que o perpassa (BARTHES, 2001, p. 112). Assim, constituindo-se à medida que é construído, o sentido vai se fazendo na horizontal e na vertical, uma vez que a narrativa ―possui e aspira‖ (BARTHES, 2001, p. 129). As frases que vão se adiantando às outras (horizontal), juntamente com todo aquele volume de texto dos parágrafos anteriores e posteriores (vertical) à frase que se lê, configuram o espaço onde o sentido vai se constituindo.

Essa ideia de limitação da narrativa evoca a questão da repetição, do reconhecido, enfim, do invariável de que o estruturalismo se constitui e que é da ordem do saber científico. Sabemos o quanto esse campo de saber é devedor da ideia de objetividade, que concorre para configurar esse discurso no espaço da racionalidade. De certa forma, a noção de subjetividade versus objetividade pretendida pelo discurso científico começa a atrair a atenção de Barthes por volta de 1966-67, precisamente no momento do ―Seminário sobre a Retórica‖ e da leitura de Problemas de Linguística Geral I.

Uma série de proposições discutidas à época despertam o interesse de Barthes. A participação de Julia Kristeva no seminário em que ele pesquisa o discurso da História, as pesquisas de Émile Benveniste sobre enunciação, a publicação de Derrida de obras que forçam o estruturalismo a se radicalizar parecem compor um cenário bastante fecundo para o questionamento da pesquisa realizada até então.

Não é à toa que juntamente com Derrida, Lacan, Genette, Jean-Pierre Vernant, Lucien Goldmann, Todorov e Nicolas Ruwet, Barthes participa do colóquio organizado pela Johns Hopkins University nos Estados Unidos, de 18 a 21 de outubro de 1966. Lá, já enuncia uma nova trajetória:

Resta ao estruturalista transformar-se em ‗escritor‘, não para professar ou praticar o ‗belo estilo‘ mas para reencontrar os problemas candentes de toda enunciação. (...) Essa transformação exige alguns esclarecimentos – ou reconhecimentos. Em primeiríssimo lugar, já não se podem pensar as relações de subjetividade e da objetividade (...). A objetividade e o rigor, atributos do cientista, com que estão ainda a nos azucrinar, são qualidades essencialmente preparatórias, necessárias no momento do trabalho e, em função disso, não há razão alguma para suspeitar delas ou abandoná-las; mas essas qualidades não podem ser transferidas para o discurso, senão por uma espécie de passe de mágica, um procedimento puramente metonímico, que confunde a precaução e o seu efeito discursivo. Toda enunciação pressupõe o seu próprio sujeito, quer esse sujeito se exprima de maneira direta, dizendo eu, quer indireta, designando-se como ele, quer nula, recorrendo a formulações impessoais; trata-se de engodos puramente gramaticais, variando o modo apenas como o sujeito se constitui no discurso, ou seja, dá-se teatral ou fantasisticamente aos outros; todas designam formas do imaginário. (BARTHES, 2012, pp. 8-9)

Nessa passagem, vê-se como o homem estrutural, com seu imaginário criador, caminha em direção à criação total, ao se transformar em escritor. Tocado pelos estudos de Benveniste, Barthes assume que toda enunciação pressupõe o seu próprio sujeito e que as categorias de subjetividade e de objetividade devem ser pensadas em relação à maneira como o sujeito se coloca no seu próprio discurso. É nessa virada da proposição barthesiana que se identifica como ele revê a sua figuração em seus textos. Reconhecendo os engodos que as formulações gramaticais possibilitam, Barthes começa a trilhar um caminho no qual se insere deliberadamente como sujeito da enunciação em sua produção adiante. Um exemplo pode ser dado em relação a como identifica que o discurso histórico, percepção extensiva ao discurso científico como um todo, é ―uniformemente assertivo, constativo‖ (BARTHES, 2012, pp. 172-173). Ora, ali não se considera colocar em dúvida a instância de enunciação por meio de formulações duvidosas ou negativas. Nesse sentido, diz Barthes, ―há censura radical da enunciação‖ sendo que ―ninguém está presente para assumir o enunciado‖ (BARTHES, 2012, p. 173).

É desse engodo que Barthes quer fugir, assumindo-se totalmente na sua enunciação, ainda que seja para se ausentar. É isso que vemos na escritura de Barthes a partir de O Império dos Signos (ou mais tarde, com Roland Barthes por Roland Barthes). A primeira viagem ao Japão, que ocorre de 2 de maio a 2 de junho de 1966, se localiza bem no centro desse interesse despertado pelo abalo da noção de sujeito a partir das proposições de Benveniste. O fim do ―Seminário sobre a Retórica‖ ocorrera exatamente antes dessa viagem e diz respeito às investigações de Barthes sobre o ―Escrever, verbo intransitivo?‖. Acreditamos que o Japão foi um espaço que possibilitou o engendramento de todas essas questões que orbitam em torno da noção de discurso. Sem dúvida, a compreensão do escrever

como verbo médio por Barthes enforma a escritura de O Império dos Signos. Aí Barthes experimenta uma forma em que é agente e afetado pelo processo de escritura,28 assim como a vacilação do sujeito,

que ora enuncia em primeira, ora em terceira pessoa, também enformando o descentramento que o desejo de Japão produz nele.

De 1966 em diante, Barthes redimensionou sua noção de escritura, se valendo de uma espécie de anamorfose das noções de Benveniste a respeito de frase, discurso, subjetividade etc. No que concerne à noção de subjetividade na linguagem (e da sua ausência), essa é manipulada por Barthes em relação à morte do autor. Trata-se de dois momentos de afirmação da morte do autor, cuja distinção se dá precisamente pelo encontro com a noção de discurso em Benveniste. O primeiro se encontra em Crítica e Verdade, e o segundo faz parte de ―A morte do autor‖, redigido entre 1966 e 1967. Em Crítica e Verdade, Barthes propõe essa morte para o autor:

E estamos certos, pois recusamos assim que o morto se apodere do vivo, libertamos a obra dos constrangimentos da intenção, reencontramos o tremor mitológico dos sentidos. Apagando a assinatura do escritor, a morte funda a verdade da obra, que é enigma. (...) a obra civilizada (...) terá por objeto não obras determinadas, isto é, inscritas num processo de determinação do qual uma pessoa (o autor) seria a origem, mas obras atravessadas pela grande escritura mítica onde a humanidade experimenta suas significações, isto é, seus desejos. (BARTHES, 2013, p. 219) (grifo nosso)

Texto provavelmente redigido em 1965 e publicado em 1966, Crítica e Verdade continua a proposta de Barthes, iniciada em Sobre Racine, de desvincular a origem da obra da pessoa do autor. Embora insistindo na ausência de origem, nesse momento, Barthes localiza tal morte em uma grande reserva mítica de escritura e no apagamento da assinatura do autor.

Com as proposições de Benveniste sobre a noção de subjetividade, ocorre a virada que propomos aqui. Em 1967, essa morte é anunciada de modo um tanto quanto diferente:

O Autor, quando se acredita nele, é sempre concebido como o passado do seu próprio livro: o livro e o autor colocam-se a si próprios numa mesma linha, distribuída como um antes e um depois: supõe-se que o Autor alimenta o livro, quer dizer que existe antes dele, pensa, sofre, vive com ele; tem com ele a mesma relação de antecedência que um pai mantém com o seu filho. Exatamente ao contrário, o scriptor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não está de modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua escrita, não é de modo algum o sujeito de que o seu livro seria o predicado; não existe outro tempo

para além do da enunciação, e todo o texto é escrito eternamente aqui e agora. (BARTHES, 2012, p. 61)

Nesse trecho, pode-se identificar como os estudos a respeito da noção de pessoa se revelam importantes para Barthes. Situada linguisticamente, tal noção sinaliza a solução de uma velha questão que mobilizava a psicologia, a filosofia e a literatura: não mais fora/dentro, subjetiva/objetivamente, o sujeito só pode ser pensado dentro de uma instância de discurso, na linguagem, pela linguagem. Tentando assinalar a necessidade de desvincular o texto literário de uma voz de autoridade que não apenas garante, mas principalmente legitima a leitura e a enclausura em uma única possibilidade, a destruição do eu ―pessoal‖ que a linguística de Benveniste promoveu possibilitou o arremate dessa implosão na literatura: ―a linguagem conhece um sujeito, não uma pessoa, e esse sujeito, vazio fora da própria enunciação que o define, basta para ‗sustentar‘ a linguagem, isto é, para exauri-la‖ (BARTHES, 2012, p. 60)

Apesar de toda polêmica que o texto encerra a respeito de questões que remontam à autoria e que reverberam ainda hoje, as proposições barthesianas, se analisadas à luz da profundidade das noções de enunciação, trazem produtividade para o texto literário. Ora, nessa ótica, o texto não tem um antes e um depois, não é um sujeito que se pode predicar, substância que pode ser ornamentada. Ele se faz na linguagem, à medida que é operado.

Assim, além da noção de subjetividade, instaura-se aí a noção de temporalidade presente nos escritos de Benveniste, desenvolvida em ―A linguagem e a experiência humana‖, artigo de 1965, que Barthes conhece pela publicação da Gallimard, como atestam suas anotações no ―Seminário sobre o Discurso da História‖ (BARTHES, NAF28630, BRT2_A2.03, folio 15). O texto se faz contemporaneamente à sua escritura; por esse motivo, ele é realizado sempre no presente, que é o centro axial do tempo linguístico:

- No entanto, uma constante do tempo linguístico : no seu centro – centro gerador e axial, no presente da instância da fala.

Presente: evento contemporâneo, não do sujeito puro, exterior à linguagem, mas da instância de discurso que o menciona. – não existe outro critério, nem outra expressão para indicar o tempo em que se está que de tomá-lo como o tempo a partir do qual nós falamos. Tempo linguístico : sui0referencial.

Este presente da fala : reinventado a cada vez que um homem fala, porque ele é literalmente um momento novo, não vivido.29

(BARTHES, NAF28630, BRT2_A2.03, folio 15)

Ao afirmar que não há outro tempo senão o da enunciação, e que todo texto é escrito no aqui e no agora, como lemos na citação de Barthes de ―A morte do autor‖, ele justamente compreende que o presente é o tempo da escritura. O sujeito que escreve está sempre nesse tempo em relação ao seu texto: ele se constitui por essa relação de contemporaneidade, e essa prática o define. Não é o texto enquanto momento encerrado no passado que constitui o escritor, mas o presente de sua prática. A partir da apropriação sempre renovada do sistema da língua, o presente se atualiza a cada vez que um homem escreve, pois que o tempo é um momento novo, não vivido.

Consideramos que a produção de Barthes nesse ínterim, de 1966 a 1969, está diretamente relacionada a essa virada de postura, que se deve à sua apropriação e anamorfose das noções de discurso. Christophe Bident faz um breve apanhado desse momento, localizando em 1968 alguns textos produzidos por Barthes, e afirmando que eles tiveram de fato um caráter de transformação:

Barthes publica pouco em 1968. Mas quatro de seus seis artigos aparecem como reprimendas. Eles trazem os principais termos de uma nova transformação teórica. São ―O Efeito de real‖, em Communications, ―Lição de escritura‖ na Tel Quel, ―A morte do Autor‖ na Manteia, ―Linguística e Literatura‖ em Langages (...). Esses textos acompanham o trabalho sobre Sarrasine na École pratique des hautes études, iniciado em fevereiro de 1968, e a redação de O Império dos Signos: Barthes retorna de sua terceira viagem ao Japão nesse mesmo mês e vai declarar em Junho de 1969 em uma entrevista que o livro está terminado.30 (BIDENT, 2012, p. 81) (grifo nosso)

Do apanhado feito por Christophe Bident, em Le geste théatral de Roland Barthes, sobre o ano de 1968 para a escritura de Barthes, podemos avançar em dois sentidos. O primeiro afirmando que de fato ele localiza um ponto no tempo em que ―alguma coisa‖ acontece de modo a abalar a escritura de Barthes; esse ponto, 1968, revela uma manobra que facilita que se situem aí os eventos, no

29 Cependant une constante du temps linguistique : a son centre – centre générateur et axial, dans le présent à l‘instance de parole. présent : évènement contemporain, non du sujet pur, extérieur au langage, mais de l‘instance du discours qui le mentionne. – pas d‘autre critère, ni d‘autre expression pour indiquer le temps où l‘on est que de le prendre comme le temps où l‘on parle. Temps linguistique : sui-référentiel. Ce présent de parole : réinventé chaque fois qu‘un homme parle, parce que c‘est à la lettre moment neuf, non encore vécu. (BARTHES, NAF28630, BRT2_A2.03, folio 15).

30 "Barthes publie peu en 1968. Mais quatre de ses six articles agissent comme coupes de semonce. Ils font comparaître les principaux termes d‘une nouvelle transformation théorique. Ce sont 'L‘effet de réel' dans Communications, 'Leçons d‘écriture' dans Tel Quel, 'La mort de l‘auteur' dans Manteia, 'Linguistique et Littérature' dans Langages ; (...) Ces textes accompagnent le travail sur Sarrasine à l‘École pratique des hautes études, commencé en février 1968, et la rédaction de l‘Empire des signes : Barthes rentre de son troisième voyage au Japon le même mois et déclarera en Juin 1969 dans un entretien que le livre est achevé." (BIDENT, 2012, p. 81).

entanto, tal manobra se baseia em um equívoco. Primeiramente: ele localiza a publicação do texto seminal ―A morte do autor‖ na revista francesa Manteia, em 1968, mas o texto havia sido escrito no mínimo seis meses antes e publicado em uma revista americana absolutamente vanguardista, Aspen (LOGIE, 2013).

John Logie, no artigo ―1967: The Birth of 'The Death of the Author'‖, aponta o equívoco sobre a descontextualização de tal texto. Não se trata apenas de um dado acessório, mas de situar realmente as suas condições de produção. Localizando a data em 1968, na revista Manteia, o vínculo com os eventos de Maio daquele ano parece muito forte.31 No entanto, saber que tal artigo foi

gestado anteriormente e publicado aproximadamente um ano antes, como aponta o artigo,32 muda

significativamente a produção e a compreensão do mesmo.

Ainda que a publicação desse texto acompanhe o momento em que Barthes oferece o ―Seminário sobre Sarrasine‖, em 1967-1968, a sua redação está intimamente ligada aos dois seminários anteriores. A partir da leitura dos manuscritos do ―Seminário sobre a Retórica‖ de 1965- 1966, e do ―Seminário sobre o discurso da história‖ de 1966-1967, ―A morte do Autor‖ parece estar absolutamente em diálogo com as noções de discurso, subjetividade e linguagem propostas por Benveniste. Na verdade, Barthes se apropria das noções do linguista e pensa a escritura a partir de tais traços.

Consideramos não se tratar da discussão acerca de um detalhe ―desnecessário‖ à compreensão da produção de Barthes, mas de um engendramento temporal-textual que possibilita um redimensionamento da importância da produção de Benveniste para a escritura barthesiana, e que abre novas investigações por parte de Barthes acerca da materialidade da escritura, da investigação da arte como forma de presença e como forma de afetar o outro. Aspen, dizem os

31 ―Further, 'The Death of the Author' is routinely linked to a May 1968 political uprising, even though it was composed

at least a full six months prior to those events. To the extent that Barthes‘ essay has a 'revolutionary spirit' it is this artistic revolution that Barthes has in mind and not that particular political pressures that led to 'The May Events'. Those who draw value from invoking Barthes‘ radical gesture without understanding its historical and cultural context run the risk of emphasizing this essay‘s purported political commitments too heavily, and thereby failing to fully underscore Barthes attentiveness to questions of authorship as they were being informed by an increasingly multimedia culture.‖

32 ―Aspen unequivocally predates the French-language publication. The initial French publication of 'La mort de l‘auteur'

was indeed in 1968, in the journal Manteia. Indeed, 'La mort de l‘auteur' was published no earlier than September of 1968, as another piece in the issue — Pierre Roland‘s translation of 'Two Vedic Hymns' — is clearly marked as having been completed in September of 1968 in the Intermonth region of France. This means that the English language translation of 'The Death of the Author' that appeared in Aspen 5+6 was published nearly a full year before the French version.‖

editores no primeiro número, é a ―primeira revista tridimensional‖ e se liga certamente a essa nova visada de Barthes.33

Fig. 1: Close up do título e das descrições da caixa que compunha Aspen 5+6, na qual foi primeiramente publicado ―A morte do autor‖.34

A noção de subjetividade, instituída pelo discurso, e fundamental para tal, está na base da proposta de ―A morte do autor‖. Com as lições de Benveniste, Barthes de fato faz os continentes se encontrarem: linguística e literatura se ligam pelo fato da significação, pela assunção do discurso como lugar de subjetividade, e pela revelação de que não há pessoa por trás daqueles signos, mas um sujeito:

Finalmente, fora da própria literatura (a bem dizer tais distinções se tornaram superadas), a linguística acaba de fornecer para a destruição do Autor um instrumento analítico precioso, mostrando que a enunciação em seu todo é um processo vazio que funciona perfeitamente sem que seja necessário preenchê-lo com a pessoa dos interlocutores: linguisticamente, o autor nunca é mais do que aquele que escreve , assim como ‗eu‘ outra coisa não é senão aquele que diz ‗eu‘. (BARTHES, 2012, p. 60)

A enunciação é a fonte da escritura: o sujeito que escreve se faz no texto, é contemporâneo a ele, e nele se dispersa. Não há origem que possa ser identificada, apenas um sujeito que se apropria

33 ―Indeed, I argue here, Barthes‘ 'The Death of the Author' was a site specific work, whose primary focus was not

Barthes‘ participation in a long line of scholarly and literary constructions and deconstructions of authorship, but rather Barthes‘ participation in an international aggregation of anti foundationalist artistic movements.‖

34 Fotografia de John Logie, disponível sob licença da Creative Commons Attribution. Acesso à Revista Aspen 5+6 –

do sistema da língua e o atualiza em instâncias de discurso. A escritura é precisamente esse exercício. Com a correlação de subjetividade, proposta por Benveniste em ―Estrutura das relações de pessoa no verbo‖ (BENVENISTE, 2005, p. 252), quando o sujeito ego se apropria do aparelho formal da enunciação, ele instaura um tu diante de si, isto é, um alocutário. Com a escritura ocorre o mesmo: o leitor é essa instância ―em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura: a unidade do texto não está na sua origem, mas no seu destino, (...)‖ (BARTHES, 2012, p. 64).

Certamente, no seminário sobre Sarrasine, mencionado por Bident, ecoam todas essas inflexões sobre a enunciação. Na sessão do dia 28 de março de 1968, antes mesmo do fatídico maio, Barthes se volta a essa questão da impossibilidade de se encontrar uma origem da enunciação/da escritura a propósito de uma lexia do texto de Balzac:

A unificação, a pertinência da enunciação, sob uma única pessoa, na escritura ao menos (# fala), é impossível. Imbricação do discurso (como escritura, des-origina a enunciação, ausência de pessoa) e de porções do imaginário, de Eu: representar a enunciação como um vai-e-vem imperceptível, uma mudança leve, sutil, sub- reptícia de cumprimentos de onda, como uma espécie de fading entre as vozes do discurso, ou melhor, talvez, de modulação, de ondulação (moire) mutável, à la Fauré. (BARTHES, 2011, p. 233)

A subjetividade, sempre vinculada à enunciação, revela-se paradoxal: ao mesmo tempo que arraiga e particulariza o sujeito como uma instância que diz eu, também é modo de dispersão, pois ela indetermina a origem de qualquer discurso. A mudança furtiva das vozes do discurso é apresentada por Barthes como espaço de ondulação, de perda, de escalonamento.

Barthes está percebendo como a sua inscrição no discurso pretende-se uma forma de expor o lugar do sujeito, jamais de omiti-lo. De fato, ele deseja se inscrever aí de forma tal que começa a compreender a escritura como um espaço. No texto ―Da ciência à literatura‖, publicado também em

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