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1. INTRODUÇÃO

1.2. TROMBOSES

1.2.1. TROMBOEMBOLISMO VENOSO

O tromboembolismo venoso (TEV) é uma doença multifatorial que engloba duas manifestações clínicas distintas clinicamente, porém relacionadas do ponto de vista fisiopatológico: a trombose venosa profunda (TVP) e a embolia pulmonar (EP) (82).

O TEV é considerado um dos principais problemas de saúde pública mundial. A incidência da doença na população em geral está relacionada à idade e é associada a alta morbimortalidade (83–86). Com o passar da idade a incidência da doença pode aumentar na proporção de 60 casos para cada 100.000 pessoas com idade entre 50 e 60 anos e aumentar para 300 casos a cada 100.000 pessoas com idade entre 70 e 80 anos (87). Em 2007 um estudo mostrou que a incidência anual ajustada à idade é maior para os homens (130 por 100.000) do que para as mulheres (110 por 100.000) (88). Esses números provavelmente estão subestimados porque não há vigilância abrangente, e o TEV pode ser perdido ou diagnosticado erroneamente, e EP fatais podem não ser determinados devido às baixas taxas de autópsia (89).

No Brasil um estudo realizado pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Botucatu-SP em 1997 mostrou que a incidência de TEV é de 0,6 a cada 1000 pessoas (90). Dados do Sistema Único de Saúde (SUS) de janeiro de 2008 a agosto de 2010 revelaram que o número de internações atribuídas a este diagnóstico foi de

85.772. No mesmo período de janeiro de 2008 a agosto de 2010 o SUS estimou que os gastos com internações por TEV foi de R$ 46.673.330,73, sem contar os gastos com o tratamento pós diagnóstico entre outros, ressaltando o impacto financeiro da doença e sua importância em relação ao investimento em profilaxia (91).

Após o diagnóstico da doença é fundamental que o tratamento seja iniciado de imediato. O principal objetivo do tratamento é interromper a progressão da trombose, reduzindo assim os riscos de EP ou de comprometimento funcional do sistema venoso profundo, que pode originar a chamada síndrome pós-trombótica (SPT), uma complicação crônica da TVP. Em casos selecionados, em geral com maior gravidade, o tratamento também pode incluir a retirada do trombo, através de trombólise farmacológica ou cirúrgica (92). Em geral, o tratamento do TEV é feito através da administração de anticoagulantes por um período de 3 a 6 meses, seguido por uma avaliação de estratificação de risco que definirá se o paciente deve ou não manter uma profilaxia secundária para prevenir novos eventos (93,94). Os medicamentos classicamente utilizados na fase aguda da doença são a heparina ou fondaparinux, que são anticoagulantes de ação rápida, em concomitância com os anticoagulantes orais antagonistas de vitamina K, mantidos no longo prazo (95). Mais recentemente, anticoagulantes de ação direta (também chamados de alvo- específicos), que inibem a trombina ou o fator X ativado foram incorporados ao arsenal terapêutico contra o TEV, podendo em muitos casos ser usados desde o momento do diagnóstico, até o final do tratamento (96).

Como destacado anteriormente, a principal complicação do TEV é a EP, que pode levar à morte ou a sequelas funcionais graves. Ela ocorre quando o trombo não aderido à parede venosa se fragmenta e migra, em direção à artéria pulmonar. Dados apontam que a incidência de EP é de aproximadamente 20 a 45 casos para cada 100.000 pessoas, e sua mortalidade é variável, girando em torno de 2 a 11% (Silverstein MD, et. al 1998). Outra complicação da doença que ocorre de forma tardia é a SPT que é resultado dos danos causados pelo trombo ao sistema venoso profundo. Mais especificamente, a destruição das válvulas que impedem o refluxo do sangue venoso a cada batida do coração resulta em aumento da pressão no sistema venoso, cujas consequências clínicas são edema, dor, alterações tróficas na pele e até úlceras de difícil cicatrização (97). Embora não seja fatal, a SPT é extremamente deletéria para a qualidade de vida do paciente, e não existem até hoje tratamentos

satisfatórios para esta complicação. A prevalência de SPT nos pacientes com TVP é de 20‐40%, após os primeiros 2 anos do diagnóstico (98).

O TEV é uma doença multifatorial que resulta de uma complexa interação entre fatores congênitos e adquiridos. São raras as situações em que um evento de TEV pode ser atribuído a um único fator causal. Os fatores de risco adquiridos mais conhecidos são: idade avançada (há um aumento progressivo do risco com a idade), neoplasias, politrauma, obesidade, síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAF), doenças inflamatórias (intestinais, LES, Behcet, etc.), síndrome nefrótica, doenças mieloproliferativas crônicas e anemias hemolíticas (hemoglobinúria paroxística noturna, doença falciforme, entre outras). Há também fatores de risco adquiridos transitórios que incluem: cirurgias, imobilização prolongada, cateteres venosos, gestação e puerpério, uso de estrógenos (tanto sob a forma de contraceptivos orais quanto de terapia de reposição na menopausa) e viagens longas (99).

Já os fatores congênitos mais conhecidos são: deficiências de anticoagulantes naturais (antitrombina, proteína C ou S) e variantes gênicas como o Fator V de Leiden e a Mutação G20210A do gene da protrombina (99). Estas cinco condições são frequentemente chamadas coletivamente de trombofilias hereditárias. No entanto, a presença de história familiar, mesmo na ausência de uma destas trombofilias, é outro fator de risco importante para o TEV, o que ilustra de forma contundente que parte significativa das alterações hereditárias que aumentam o risco de TEV são ainda desconhecidas (Zöller B, et. al 2015). De fato, quando pacientes com TEV espontâneo, isto é, sem a presença de fatores de risco adquiridos, são investigados para a presença destas trombofilias hereditárias conhecidas, cerca de 40% dos pacientes permanecem sem um fator identificável (101).

Um modelo bem ilustrativo para explicação da interação de múltiplos fatores na fisiopatologia da TEV é o do limiar trombótico (102). De acordo com este modelo, cada indivíduo apresentaria um limiar trombótico que se ultrapassado, resultaria em um TEV. Com o passar dos anos nos aproximaríamos cada vez mais deste limiar, que, no entanto, só seria cruzado quando outros fatores de risco trombótico se associassem. Desta forma, quanto maior a idade, maior a chance de um fator adicional causar uma trombose. Analogamente, TEV só ocorreriam em jovens

quando um fator muito importante, ou uma associação de fatores (ex. predisposição familiar + uso de estrógenos) se associassem (102).

Tabela 1: FATORES DE RISCOS DO TEV

Adquiridos Hereditários Mistos

Idade Cirurgias  Antitrombina  Fator VIII. Obesidade Politrauma  Proteína C  Fator IX Neoplasias Gestação e puerpério  Proteína S  Fator XI Hemólise crônica Estrógenos Fator V Leiden. Resistência à PCa

SAF e LES* Imobilização/estase Mutação G20210A

(F2)  Homocisteína Doenças

inflamatórias Cateteres venosos Sepse Síndrome nefrótica

* SAF: Síndrome do Anticorpo Antifosfolípede. LES: Lúpus Eritematoso Sistêmico. Fonte: A autora.

Se a decisão de iniciar a anticoagulação em um paciente com TEV não exige qualquer dado adicional além da confirmação do diagnóstico, a decisão de prolongar este tratamento além dos 3 a 6 meses recomendados para todos os pacientes é extremamente complexa (103), e só se justificaria quando os riscos de complicações graves ou fatais de sangramento decorrentes da anticoagulação (cerca de 0,5 a 1% ao ano) fossem menores que o risco de complicações fatais de um novo evento de TEV. É aqui, neste ponto crítico de tomada de decisões, que residem os maiores dilemas clínicos, pois o risco de recorrência da trombose é muito variável, e determinado por fatores ainda desconhecidos. Para que nossa capacidade de predição seja ampliada, é essencial um incremento no conhecimento sobre a fisiopatologia do TEV, e não por acaso a identificação de novos fatores fisiopatológicos que possam ser usados como preditores ou biomarcadores de risco é hoje uma das áreas mais ativas na pesquisa nesta área. Em termos gerais, o risco de recorrência de TEV em pacientes que tiveram um primeiro episódio da doença em um período de 5 anos é de 25 a 30% (104). Estima-se que 30-50% dos pacientes têm reincidência da doença em 10 anos (105).

O risco de recorrência é muito baixo em casos de TEV associado a fatores de risco transitórios, removíveis, como por exemplo cateteres venosos, cirurgias, ou imobilização por viagens. Nestes pacientes, a extensão da anticoagulação além de 3 meses não se justifica. No outro extremo, situam-se os pacientes com fatores de

risco que elevam de forma dramática o risco de recorrência, como a presença de neoplasias ativas, hemoglobinúria paroxística noturna e SAF. A presença destes fatores normalmente indica anticoagulação definitiva (106–109). Entre estes dois extremos situam-se a ampla maioria dos pacientes, cujo risco de recorrência é difícil de ser previsto com base em dados clínicos ou laboratoriais.

Em relação à identificação de biomarcadores de risco para estratificar estes pacientes quanto à chance de um novo TEV, é importante citar que a pesquisa das chamadas trombofilias hereditárias foi durante muitos anos considerada essencial. No entanto, uma série de estudos prospectivos realizados ao longo da última década mostraram de forma inequívoca que a presença de quaisquer umas principais trombofilias hereditárias (FV Leiden e mutação G20210A) em pacientes com TEV não aumenta o risco de um segundo evento (110,111). Isto ocorre porque embora na população geral a presença destas trombofilias de fato identifique aqueles indivíduos com maior risco trombótico venoso, isto não se repete no subgrupo de pacientes com TEV, em que todos os indivíduos apresentam risco aumentado de um primeiro evento. Em outras palavras, diante de uma população de pacientes com antecedente de TEV não é errado supor que todos apresentem outros fatores de origem genética que aumentam o risco de TEV, ainda que não identificados como uma das trombofilias já descritas. Um grande número de testes diferentes das trombofilias já foram testados como os marcadores do risco de um segundo evento de TEV tais como trombose residual na ecografia (112,113), dosagem de fator VIII e dosagem de D-Dímero (DD). Embora este último de fato contribua nesta estratificação, sua performance preditora ainda é limitada, abrindo espaço para a identificação de novas estratégias de predição de risco. Esta é uma das principais perguntas científicas da área, cuja resposta exige novos conhecimentos sobre a fisiopatologia do TEV.

Fisiopatologia do TEV

Há mais de 100 anos o patologista Virchow descreveu que para a ocorrência do TEV, três fatores deveriam estar presentes em maior ou menor grau: estase venosa, hipercoagulabilidade; e dano endotelial (114). Estes fatores são hoje conhecidos como “tríade de Virchow” (figura 5). Mais recentemente, o papel da resposta inflamatória passou a ser reconhecido como fundamental na fisiopatologia do TEV. Há evidências que sugerem que a inflamação possa atuar tanto como

causa quanto como consequência, embora a separação destas duas situações seja desafiadora do ponto de vista experimental. Em ambos os casos, a resposta inflamatória parece representar um fator adicional para o risco de novos eventos (115–117). A seguir resumiremos a participação de cada um destes elementos na fisiopatologia do TEV.

Figura 5: Esquema ilustrando o modelo fisiopatológico para TEV conhecido como tríade de

Virchow.

Fonte: Adaptado de (114).

A estase, ou mais precisamente, alterações do fluxo sanguíneo, exercem um papel fundamental na ocorrência do TEV. Especula-se que a TVP se inicie em regiões de menor fluxo, próximo a válvulas das veias profundas dos membros inferiores, onde a redução do fluxo sanguíneo favoreceria a ativação local da coagulação (118). É também sabido que qualquer obstrução ao fluxo venoso que leve à estase aumenta o risco de TEV. Isto fica mais evidente no caso das TVPs relacionadas a gestação, que ocorrem preferencialmente à esquerda onde o peso do útero gravídico é mais relevante, e nas tromboses decorrentes da síndrome de May- Thurner, decorrente da compressão da veia ilíaca comum esquerda pela veia ilíaca comum direita (119,120).

Em relação à lesão endotelial, o endotélio é considerado um dos reguladores mais importantes da hemostasia, devido a suas propriedades anticoagulantes. Estas propriedades decorrem da expressão regulada de vasodilatadores como o óxido nítrico, vasoconstritores como a endotelina, além de controle entre o equilíbrio entre proteínas pró- e anticoagulantes. O endotélio é uma fonte importante de fator de von Willebrand (FVW) (121,122), e é sobre o endotélio que atua a protease ADAMTS13, responsável pela clivagem de grandes multímeros de FVW, que representa um elemento fundamental da regulação da adesão plaquetária ao endotélio. Dados de nosso laboratório ilustram a participação da ADAMTS13 na fisiopatologia do TEV (123), o que poderia ocorrer por uma redução na clivagem do FVW pela ADAMTS13, levando a aumento da adesão de plaquetas ao endotélio. O endotélio é ainda o sítio onde ocorrem as reações da cascata da coagulação que culminam na formação da fibrina, em que participam fatores prócoagulantes e anticoagulantes naturais, com destaque para o sistema da trombomodulina (TM) e da proteína C ativada (PCa). Em condições normais, o equilíbrio entre estes fatores está deslocado para o pólo anticoagulante, de forma que o fluxo sanguíneo é mantido sem perturbações. Em contraste, lesões endoteliais de origem física (por exemplo, traumatismo vascular) ou funcional (qualquer estímulo inflamatório que leve à ativação das células endoteliais) alteram este equilíbrio, deslocando-o para o pólo protrombótico (122,124,125).

Ao longo dos últimos anos diversos estudos descreveram detalhes deste estado protrombótico e proinflamatório, gerando dados descritivos sobre o comportamento de elementos específicos da hemostasia e da inflamação durante o TEV. A enumeração de cada uma destas alterações representaria uma tarefa hercúlea, e ao nosso ver pouco informativa, pois não permite uma visão integrada da fisiopatologia desta doença. Em linhas gerais podemos afirmar a partir destes estudos que no TEV podemos observar aumento da expressão de moléculas de adesão em leucócitos e no endotélio, aumento da exposição de fator tecidual (FT), que é o ativador principal da cascata da coagulação, ativação de plaquetas e recrutamento de leucócitos (124,126). Estudos mais recentes comprovaram que estas alterações se traduzem em aumento da adesão de hemácias, leucócitos e plaquetas ao endotélio (127), e também mostraram a participação de redes extracelulares de neutrófilos (NETs) (128). Em conjunto, estes eventos

desequilibram o balanço hemostático local, amplificando a inflamação e a formação de trombos (129).

Em relação à hipercoagulabilidade, sabemos hoje que é rara a ocorrência de TEV apenas pela presença de hipercoagulabilidade sem a presença de alterações endoteliais ou estase, exceto no caso de trombofilias hereditárias muito graves (deficiência de antitrombina, ou trombofilias homozigóticas). Desta forma, a visão mais moderna da fisiopatologia do TEV entende a hipercoagulabilidade de fundo hereditário como um fator adicional que contribui para o TEV (130).

Quanto ao papel da inflamação, acreditamos que ele pode ser encaixado entre os pólos “alteração endotelial” e “hipercoagulabilidade” em uma versão mais atual da tríade. Ao longo dos últimos anos diversos estudos descreveram detalhes da ativação da inflamação no TEV, demonstrando ainda como esta ativação concomitante da hemostasia e da inflamação contribui para um estado protrombótico. Esta visão faz sentido do ponto de vista evolutivo, quando consideramos que hemostasia e inflamação fazem parte do mesmo processo ativado pelo sistema imune inato para eliminação de patógenos invasores ou para reparo de dano tecidual (131).

Figura 6: Mecanismos celulares propostos para trombose venosa.

De uma forma geral, a formação de uma trombose venosa pode ser dividida em 4 etapas: (i) o endotélio é ativado por agentes ou fatores lesivos como hipóxia, toxinas, entre outros, ou por alterações significativas no fluxo sanguíneo; (ii) essa alteração leva à liberação de mediadores inflamatórios e expressão de proteínas de adesão como a P-selectina, E- selectina e vWF. Com isso, leucócitos circulantes, plaquetas e microvesículas ricas em Fator Tecidual (FT) se ligam ao endotélio ativado; (iii) os leucócitos ligados ao endotélio são ativados expressando ainda mais FT local, permitindo assim a ativação da cascata de coagulação; e (iv) a formação do trombo, que contém além da fibrina, plaquetas, eritrócitos e neutrófilos. Fonte: (132)

Em resumo, se no passado a tríade de Virchow era suficiente para explicar a fisiopatologia da TEV, a visão atual contempla a interação entre inflamação, coagulação e alterações vasculares locais (lesão endotelial ou estase) como seu mecanismo fisiopatológico central.

Biomarcadores para predição de risco de TEV recorrente

No estado atual da literatura, apenas a dosagem de DD é considerada um biomarcador adequado para o risco de TEV recorrente, estando incorporado a diferentes escores de estratificação clínica (108,109). Como já citado, a identificação de novos biomarcadores capazes de definir a magnitude deste risco em cada paciente permitiria a solução precisa da equação risco x benefício individual, tornando mais racional a decisão de prolongar ou não a anticoagulação. No entanto, apesar de alguns estudos terem identificado novos marcadores de risco em algumas populações (133)(134), a validação destes achados em outras população não ocorreu, e eles não foram incorporados à prática clínica.

1.2.2. TROMBOSES ARTERIAIS

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