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Roa Bastos escreveu El trueno entre las hojas em seu primeiro exílio. Ao entender de seu amigo e crítico Ruben Bareiro Saguier (2006), foi uma maldição que Roa Bastos soube transformar em bênçãos, não só para ele, como o impacto positivo produzido no país e, em especial, nos jovens. Mesmo que não tenha sido uma unanimidade,

108 Evidentemente não cotejando “Lucha hasta el alba”, conto escrito na infância e

exaustivamente considerado o embrião de Yo el supremo, além das inúmeras relações com a obra narrativa posterior. Também sua obra poética abandonada após o exílio, mas que deixou marcas profundas em sua escritura.

causou mudanças na visão lançada sobre o Paraguai. Uma das críticas citadas por Bareiro Saguier veio de seu compatriota Hugo Rodríguez Alcalá, que desferiu seus dardos acadêmicos de maneira ferina, ao denominar a escritura roabastiana em El trueno entre las hojas como maniqueísta, esquerdista, com falta de urbanidade e boas maneiras, como se a literatura exigisse um comportamento educado e subserviente. No entanto, essas narrativas, ao contrário do que pensa o crítico, se centram nos homens simples que passam por tortura todos os dias, aqueles subjugados, escarnecidos, desterrados, enterrados e, novamente como Bareiro Saguier acrescenta, não vencidos.

A análise realizada até o momento sobre os 17 contos que compõem o livro inaugural de Roa Bastos desvela algumas questões que poderão ser utilizadas para compor a escritura caleidoscópica para além da poética e da ética das variações e mostrar como essas estão intimamente ligadas às duas obras: Contravida e Madama Sui.

Roa Bastos tem uma perspectiva bastante particular sob a qual se autodenomina compilador das transfinitas possibilidades que maneja em seu ato escritural e constrói, com isso, uma relação própria com a sua escritura, porque na verdade “O sujeito que é tomado pela tarefa literária de escrever não tem nada para sustentar sua experiência. Ele só é escritor quando escreve. Seu talento se materializa na obra. Nesse ato, talento, inspiração e obra são concomitantes, coexistentes” (ALMEIDA, 2009). Roa Bastos tem consciência dessa falta de sustentação que o persegue em toda a sua obra; no entanto, nesse momento de coexistência “ato, talento, inspiração”, vários fatores tomam corpo, como, por exemplo, sua existência exilada, o texto ausente em consonância com a multiplicidade advinda de um universo transfinito.

E, quando se constata que Roa Bastos se encontrava exilado em um porão de uma editora, tomado dessa “tarefa literária de escrever” em embate com a sua existência exilada, sendo o ir e o sair constituintes desse ser e, nesse momento de “ser escritor”, sem absolutamente nada que sustentasse sua posição, dá-se, de acordo com Deleuze e Guattari (2000), um rizoma que nasce da árvore mesma. Sim, é possível de algo enraizado profundamente fazer rizoma, ou seja, a partir de condições completamente adversas ou extremamente solidificadas como raízes, podem recomeçar a brotar rizomas, visto que o rizoma atua por desejos, por ímpetos, não só internos, como externos; e, dessa forma, as linhas de fuga juntamente às rupturas a-significantes ficam evidentes na escritura caleidoscópica.

uma narrativa que seja exclusiva em seus temas, recursos estilísticos que se enquadrem em um molde ou paradigma. Como escritor, conectou-se a todas as possíveis multiplicidades que reverberaram em sua escritura, porque o escritor atua em concomitância com todos esses componentes que constituem o movimento de ir e sair no caso roabastiano imposto; e, assim, sua existência exilada se conecta ao seu ato escritural. Um exemplo que Deleuze e Guattari dão em Mil Platôs (2000) permite uma análise mais apurada dessa questão. Os escritores dizem que um crocodilo não reproduz um tronco de árvore, ainda que alguns se enganem, assim como a Pantera Cor de Rosa não copia, não imita, não reproduz nada, e sim pinta um mundo cor-de-rosa em que ela mesma se torna imperceptível, se torna a-significante, ou seja, rompe com outro mundo e utiliza, assim, uma linha de fuga. Roa Bastos, tampouco, cria uma violência copiada simplesmente da realidade, mas ele mesmo está engendrado na violência e no exílio que emanam de sua existência. Se fosse um resultado cor-de-rosa, melhor seria, mas isso não se dá.

Por essas razões, ocorre a possibilidade de observar em cada conto as múltiplas saídas e entradas que se tocam e partem a um novo horizonte, deixando, na maioria das vezes, uma ponta de esperança ainda que ínfima em virtude das tragédias e de uma realidade que delira, por isso vale salientar alguns desses pontos de lançamento.

Tentativas de rupturas aparecem em “Carpincheros”, em uma narrativa poética, mas nada inocente. Ocorre um rompimento com a violência espiritual, buscando nas escrituras sagradas uma tentativa de intertexto produzindo relações transfinitas, em “El viejo señor Obispo”. Em “Mano Cruel”, o pícaro cria sua resistência diante da opressão que movimenta as ações, criando espaço ao qual era negado. O lugar da escritura aparece como estratégia de poder, em “Audiência privada”. A memória e a imaginação surgem criando espaços de lembrança de um lugar de fuga, em “La excavación”. As experiências familiares socavam um espaço como uma pequena raiz tentando brotar, em “Cigarrillos Máuser”. O retorno é tomado como um caminho inexorável para a morte, em “Regreso”. A vida diária é quebrada pelo exílio e pelo silêncio de vidas desencontradas, em “Galopa en dos tempos”. Encontram-se sobreposições de tempos e vozes inaudíveis e, ao mesmo tempo, rumorejantes, em “El Karuguá”. O sorriso se transforma em arma de reação vingativa e descomedida em uma tragédia familiar, no jovem “Pirulí”. A leitura é tida estigma da loucura que resulta em animalização e violência sexual sem precedente, em “Esos rostros oscuros”. A hipocrisia da religião aparece em oposição ao misticismo

em contaminação vertical, em “La rogativa”. O humor empregado como crítico de uma sociedade burguesa contaminada pelo cinismo, em “La gran solución”. A juventude aparece em seu desabrochar diante do horror e da tragédia, em “El prisioneiro”. A redenção ocorre por meio de um inocente e como instrumento de vingança ao descaso, em “La tumba viva”. E, em um fim inicial, o resgatador messiânico demonstra objetivos terrenais, em “El trueno entre las hojas”.

Desse modo, a escritura caleidoscópica começa a tomar forma em cada elemento utilizado, porque se faz “[...] rizoma por ruptura, alongar, prolongar, revezar a linha de fuga, fazê-la variar, até produzir a linha mais abstrata e a mais tortuosa, com n dimensões, com direções rompidas” (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 19). E o que se constata nessas narrativas são características que fundamentam as múltiplas entradas e saídas de uma escritura que pinta seu mundo não de rosa, como a pantera, e sim de tons cinzentos e aspecto soturno advindos das diversas raízes da violência. Como árvore, a violência expande suas raízes e galhos, mas, segundo Deleuze e Guattari (2000, p. 19), há “[...] estruturas de árvore ou de raízes nos rizomas” e, na escritura de Roa Bastos, forma rizoma e variados planos como “[...] um galho de árvore ou uma divisão de raiz (que) podem recomeçar a brotar em rizoma”. Assim, a própria violência como raiz gera rizoma, quando Pirulí reage violentamente contra os representantes de seus opressores ou quando o monstro de “La tumba viva” sequestra a filha do espanhol cruel e implacável, ou seja, saídas de profundas raízes violentas se transformam em novas perspectivas, visto que o próprio mundo não é fixo, e sim está em constante movimento.

Portanto, em El trueno entre las hojas ficam abertas as linhas de fuga, a multiplicidade, as rupturas a-significantes e os mapas que constituem os elementos que seguem rizoma, os quais permitem a conexão desses contos com os demais textos, construindo novas saídas transfinitas, como será explanado a seguir.