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CAPÍTULO 1 − O SERTÃO CANAVIEIRO DO CARIR

1.1. CARIRI DOS ENGENHOS.

1.2.1. O TUPINAMBÁ SOB A RÉGIA DE ZÉ MAJOR

"Aí foi o tempo que ele tomou posse, seu Zé Major,

e ficou com tudo".

Tuta

A administração do Tupinambá por Zé Major, que lá residia com toda a sua família, transformou-se num arrendamento que se estendeu até 1945, quando se deu o último ajuste de contas entre ele e a família Sampaio. Foram tantos anos, que algumas pessoas idosas de Barbalha, por mim contatadas, afirmaram que cresceram associando o Tupinambá à figura de seu arrendatário, como se este proprietário fosse. Terra, engenho e administrador indissociados, enquanto os verdadeiros proprietários estavam ausentes.

Segundo Yony Sampaio, com o passar do tempo “Zé Major passou a

administrar todos os bens da família [em Barbalha], pois só ficou lá Tio Zuca, ocupado com a Casa Sampaio e suas próprias terras”.127 Alguns registros

referentes ao Tupinambá, no início dessa administração "expandida", foram

cuidadosamente guardados pelo zeloso arrendatário, e hoje se encontram no arquivo pessoal de um de seus netos, Alberto Callou Torres. Embora o acesso direto a esses documentos não tenha sido franqueado, pequenos trechos foram reproduzidos em recém publicada biografia128. O cotejamento desses

fragmentos com registros completos de período posterior  uma série dos anos 1930 e 1940129

 demonstra o mesmo grau de organização administrativa, que prevaleceu desde os primeiros anos da ausência dos proprietários.

Mais uma vez recorro à tradição das duas famílias, Sampaio e Callou, e ao depoimento de quem conheceu Zé Major para evocar a figura deste administrador como um homem trabalhador, organizado e metódico, que “ia

todo dia a cavalo, de paletó, gravata, colete... administrar o Tupinambá, ele só andava assim...”130

Dr. Napoleão Tavares Neves, que testemunhou muitas moagens de Barbalha, recorda que:

Qualquer pessoa que chegasse aqui [em Barbalha] no dia 14 de junho sabia que tinha rapadura nova no Tupinambá. Enquanto os outros começavam aleatoriamente, às vezes no começo do mês, às vezes no fim. Ele [Zé Major] não, era sistemático: 14 de junho!... No dia 13, que era dia de Santo Antônio ele cortava cana, no dia 14 pela manhã o motor já apitava, o locomóvel já apitava, começava a moagem. E todo o mundo sabia disso, então as pessoas que gostavam de alfenim, que gostavam de batida, de rapadura, já iam pra lá certos de que tinha com certeza.131

Por sua vez, o Sr. René Grangeiro, morador de Barbalha, ao evocar o

Tupinambá da primeira metade do século XX, confirmou a regularidade das

moagens do engenho no tempo de Zé Major:

Nasci, cresci e me criei aqui, nessas imediações. E a coisa melhor que eu achava era quando rompia a moagem; terminava a festa de Santo Antônio no dia 13, no dia 14 rompia a moagem do Tupinambá. Ia até dezembro, até janeiro, num falhava, moía toda a cana e era transportada em carro de boi e burro. (...) Agora, o engenho era duplo, tinha duas carreiras de tacho, fabricava muita rapadura. E a rapadura era bem cozinhada e não usava aquela droga chamada

128 TORRES, Alberto Callou. José Pereira Pinto Callou: Zé Major, meu avô. Fortaleza:

Expressão Gráfica e Editora, 2007.

129 (APYS) Contas do Tupinambá.

130 Idomeu Sampaio, em 11 de junho de 2006.

131 NAPOLEÃO TAVARES NEVES, nasceu em Jardim, em setembro de 1930. Médico, literato,

branquite, que botam pra clarear a rapadura, viu? não usavam. Seu Zé Major não usava. A rapadura era da cana mesmo, do açúcar da cana.132

Nos quarenta anos do tempo de Zé Major, o engenho tinha o vapor como força motriz. Desconhece-se, até o momento, quando este tipo de motor começou a funcionar no Tupinambá. A própria introdução do vapor nos engenhos do sul do Ceará permanece um assunto bastante controverso. Enquanto Irineu Pinheiro coloca o primeiro motor para beneficiamento de cana de açúcar em 1875, ou 1876, no município de Missão Velha, Figueiredo Filho afirma que coube a Crato, em 1892, o pioneirismo de ver rodar o primeiro engenho motorizado, “debaixo de festejos populares, ao som das músicas de couro ao pipocar do foguetório”.133 Na opinião da família Sampaio, no tocante à

Barbalha, coube ao fundador do Tupinambá a instalação da primeira máquina. É quase certo que o engenho foi mecanizado antes de 1887, ano em que já funcionava “na cidade uma machina a vapor para o preparo do algodão, ramo de industria há pouco estabelecido pelo negociante Antonio Manoel [de] Sampaio [Major Sampaio]”.134 Outros engenhos de menores recursos e em

locais de acesso difícil, só se motorizaram no séc. XX.

Sabe-se que os maiores engenhos da região importaram seus motores da Inglaterra. As máquinas chegavam aos portos de Recife ou Fortaleza e daí seguiam por ferrovia. No fim da linha, a pesada carga era colocada em carros de bois, que com até doze juntas de animais amestrados, levavam os motores até os engenhos.

Mais de quatro décadas produzindo rapaduras pela força do vapor: o período de Zé Major à frente do engenho é reputado, pelos mais antigos trabalhadores, como sendo de prosperidade para o Tupinambá. Alguns registros da época e outras observações contextuais impedem que as afirmações de prosperidade associadas a esse tempo sejam vistas apenas como fruto de uma visão nostálgica do passado.

José Pereira Pinto Callou, o Zé Major, vinha de família com algumas posses. Contudo, ele indiscutivelmente prosperou como administrador, pois em

132 FRANCISCO RENÉ GRANGEIRO, nasceu em Barbalha, a 26 de maio de 1926, fiscal

municipal, conhecido como "a memória ambulante de Barbalha". Entrevista em abril de 2003.

133 PINHEIRO, op. cit. p.56 e FIGUEIREDO FILHO, Engenhos de rapadura... op. cit., p.14. 134 Descripção do município de Barbalha. op. cit. p.12.

sua velhice contava com muitos bens, em grande parte adquiridos com lucros dos arrendamentos.135 A esse respeito um de seus descendentes comentou:

“Os arrendamentos, naquele tempo, eram muito bons. Que o homem, o morador, trabalhava quase de graça, trabalhava quase que só pela comida. Então o engenho dava muito lucro”.136 Por outro lado, o arrendamento do

Tupinambá deve ter sido satisfatório para a família Sampaio: a assídua e

amigável correspondência entre as partes era preenchida de informações, sugestões e projetos em comum. Além disso, o mesmo tipo de relação foi mantido após a morte de Toínho Sampaio.

Os primeiros anos após o ataque da Sedição de Juazeiro foram muito difíceis para todos os agricultores barbalhenses. As propriedades ficaram devastadas: houve matança de gado e criações, destruição de culturas, fuga de trabalhadores e saque de alimentos e sementes. A invasão ocorreu em pleno janeiro, época de inverno e de plantio. A retomada das atividades produtivas, naturalmente penosa para uma economia localizada e formada majoritariamente de pequenos produtores, tornou-se ainda mais difícil porque no ano seguinte (1915) ocorreu uma das maiores secas da história do Ceará.

Em 1919, a ausência de chuvas voltava a castigar fortemente a região. Idomeu Sampaio recorda que Zé Major dizia que neste ano “não tirou nem a folha do leito do rio. O rio Salamanca não correu de maneira nenhuma!”

Segundo ele, nem assim o engenho Tupinambá deixou de rodar. Mesmo em anos de seca, sempre “tinha alguma moagem [com] as canas do baixio. A água

florava aqui no baixio. A água era mais rasa. E tinha sempre canas aqui no baixio, no vale do Salamanca, sempre tinha canas”.137

Malgrado as recorrentes calamidades climáticas e os muitos anos de disputas políticas violentas, o Cariri, a partir da década de 20, confirmava sua capacidade de renovação. Como resultado, vivia-se outra fase de crescimento econômico e populacional. Juazeiro continuava a ser o principal pólo de atração para pequenos proprietários, artesãos, negociantes e trabalhadores rurais sem terra. Os números abaixo traduzem o crescimento populacional dos

135 Termo do inventariante, transcrição em TORRES, op. cit., p. 232-236. No legado, constam

entre os imóveis, alguns que pertenceram a Antonio de Sá Barreto Sampaio e foram vendidos por seu herdeiro e filho caçula, José Barreto Sampaio (1898-1984).

136 Idomeu Sampaio relatando comentário de seu pai, Antonio Costa, entrevista de 11.06.2005. 137 Idomeu Sampaio, em 11 de junho de 2005.

municípios mais importantes do vale.

TABELA 1 - POPULAÇÃO DE MUNICÍPIOS DO CARIRI NO INÍCIO DO SÉC. XX

MUNICIPIOS 1900 1920 1940 Barbalha 14.681 19.900 22.440 Crato 30.321 * 29.774 38.968 Juazeiro do Norte — 22.067 38.530 Jardim 12.499 12.979 18.639 Total 57.501 84.620 118.577 * Crato perdeu importante parcela da população com a autonomia de Juazeiro em 1911.Fonte: Recenseamentos IBGE.

Embora para muitos caririenses, o nome Juazeiro permanecesse evocando tristeza e rancor pelos ataques de 1914, o crescimento do novo município trazia benefícios indiretos para seus vizinhos. A oferta de braços para a lavoura era oportuna, pois além das culturas alimentícias, o algodão voltava a ser plantado com mais regularidade na região. Além disso, tanto os produtos da terra, quanto as mercadorias importadas pelas casas comerciais encontravam um mercado consumidor cada vez maior.

A demanda por trabalhadores era sempre crescente e se refletia nas propriedades canavieiras. Em carta datada de 1918, Antonio de Sá Barreto Sampaio assim orientava Zé Major: “...assim não tendo pessoal para moer e plantar , suspenda a moagem e plante suas canas”. Em 1922, escrevendo do engenho Roçadinho, que arrendara em Pernambuco, o missivista atestava a mesma preocupação:

Lamento a falta de braço para a agricultura, por isso mesmo deve V. fazer o possível para tratar bem de suas socas a fim de que p.a o

anno tenha alguma safra pois pelo que diz V. no anno seguinte a safra será reduzidíssima não só no Cariry, como no Sertão.138

Para os donos de canaviais e engenhos, o final da década de 1920 trouxe uma nova preocupação: as safras representavam lutas sem fim contra as pragas que atacavam as poucas espécies cultivadas na região, Rosa, Preta

e Cana Caiana. As plantas, embora ricas no teor de sacarose, tinham baixa

resistência. Os maiores produtores buscavam, por conta própria, trazer outros

tipos de cana, mas a doença do mosaico se generalizava: “A verdade é que, de 1920 em diante, não havia mais variedade de cana que durasse”.139

O colapso dessa economia de mais de duzentos anos só foi evitado na década seguinte, quanto se instalou a Estação Experimental de Barbalha, mais conhecida como Campo de Sementes, órgão vinculado ao Ministério da Agricultura. Este núcleo de pesquisa passou a introduzir novas variedades híbridas e resistentes. Entretanto, embora os canaviais renascessem com as novas espécies, em outros aspectos a cultura canavieira permanecia sem melhoramentos. Os ricos solos de brejo e pé de serra ainda eram tratados com as mesmas técnicas rudimentares do século anterior.

Numa conjuntura mais ampla, os sinais de transformação eram visíveis: a continuidade do crescimento populacional, maior disseminação do trabalho assalariado, uma economia mais monetarizada e a sistematização dos contatos com grandes centros comerciais. Sobretudo, as novas possibilidades de importação e escoamento de produtos, com a chegada da estrada de ferro ao Cariri, em 1926.

Evento de magnitude para a região, a concretização da ligação férrea, porém, vai se tornar um fator de enfraquecimento para a Barbalha, quando um desvio da trajetória da estrada deixou-a fora do percurso (Fortaleza / Missão Velha / Juazeiro /Crato). Numa decisão mais política do que técnica, o município deixava de participar diretamente de uma via de transporte importante, a ponto de desviar, por alguns anos, o vetor das comunicações para Fortaleza, em detrimento das antigas ligações com Pernambuco.

A economia de Barbalha sentiu fortemente o desvio da ferrovia. Seu comércio recebia um novo golpe, 12 anos após os saques de jagunços: muitos estabelecimentos fecharam ou mudaram para a cidade vizinha, num processo de esvaziamento que se refletia nas outras instancias de produção.

Neste período, morria em Recife, o proprietário do Tupinambá. Com o desaparecimento de Antonio de Sá Barreto Sampaio, em 1930, novamente se fragmentava, entre herdeiros, um patrimônio cuidadosamente reunido. Nas disposições testamentárias constata-se a preocupação em manter a

139 FIGUEIREDO FILHO, Engenhos de rapadura... op. cit. p.11. Mosaico é uma virose que

lesiona e necrosa os colmos, levando à morte da planta. Ver em CRUZ, Hilton Leite. Produtor

integridade de suas maiores propriedades — os engenhos:

Determino que se na partilha de meus bens vier a tocar quaisquer dos Engenhos “Souto Maior”, “Tabocas”, “Concórdia” e “Tupinambá”, este na Barbalha, em condominio a dois ou mais dos meus filhos, fiquem os mesmos engenhos inalienaveis, só podendo ser vendidos a extranho se nisso concordarem todos os condominos, podendo, porem um dos condominos vender a sua parte a outro condominio.140

Entre as propriedades rurais, o testamento cita, como se fossem um

item único: “o ’Engenho Tupinambá’, com todas as benfeitorias e maquinismos,

a terra da Bulandeira, a terra Sitinha arrendada a Neném Maneco e a levada d’água diária vinda do ‘Engenho Santa Rita’”. Este “conjunto” foi avaliado em 120:000$000 réis. No inventário, a propriedade se apresenta como: “sítio ‘Tupinambá’, com engenho accionado a caldeira a vapor, com casas de morada e de machimismos, banhado pelas águas da nascente, do lado poente do sitio ‘Santa Ritta’ deste termo”. Segue-se a determinação dos limites e a avaliação em 70:000$000. O valor inferior pode advir da ausência dos bens agregados, ou pela já assinalada preocupação com os impostos de transmissão.141

Na partilha que se seguiu (1931), o Tupinambá ficou dividido entre a viúva, Antonia Porcina Sampaio, e seu filho, Antonio de Sá Barreto Sampaio Junior, mais conhecido como Dr. Junior. Uma nova divisão dos bens foi feita em 1943, com a aquiescência de D. Porcina, que só viria a falecer centenária, em 1954. Seu bisneto, Yony Sampaio, explicou que essa alteração aconteceu porque nas disposições precedentes teria havido distorções devidas a distancia do avaliador. Além disso, quase todas as propriedades urbanas e rurais haviam ficado com a viúva: para os filhos tinham sido destinadas as apólices. Segundo Yony, a segunda partilha buscava solucionar “freqüentes conflitos entre irmãos e sobrinhos com respeito a administração das terras”.142

Com esta última disposição, a maior parte do Tupinambá, desta vez avaliado em 450:000$000, ficou para o primogênito, Antônio de Sá Barreto Sampaio Junior. Uma pequena parcela foi destinada à sua irmã, Maria do Rosário, que já herdara 104 braças do vizinho Sítio Barbalha. Na década de

140 Arquivo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

Testamento e Inventário de Antonio de Sá Barreto Sampaio (1930), p.13.

141 Idem, p.58.

1950, Dr. Junior adquiriu as propriedades barbalhenses de sua irmã, reproduzindo em tom menor, o esforço reconcentrador de propriedades de seu pai.143 Nesta ocasião o Sítio e Engenho Tupinambá voltou a ter um só dono: Dr.

Junior que “o havia adquirido parte por herança, parte por doação entre vivos e parte por compra e venda”.144

Cabe aqui ressaltar, que o patrimônio barbalhense de Antonio de Sá Barreto Junior jamais atingiu a dimensão daquele reunido por seu pai. Desta vez, a dispersão entre os herdeiros foi só parcialmente desfeita. O sítio

Lagoínha, por exemplo, que Toínho Sampaio havia destinado a seu filho

caçula, José Barreto Sampaio, foi por este vendido ao Sr. Padre Miranda, agricultor barbalhense. O mesmo herdeiro, sem interesse em manter bens em Barbalha, vendeu a Zé Major casas na cidade e um sítio no distrito de Estrela. Dr Junior, ao contrário, tinha interesse em conservar bens e ligações com a Barbalha. Além do Tupinambá, comprou a irmãos os sítios Lagoa,

Lambedor e Reformado. Apesar de ser considerado um homem urbano, de

intensa dedicação à carreira médica em Recife, suas anotações particulares atestam que ele, assim como seu pai, acompanhava pormenorizadamente a situação das propriedades administradas por Zé Major. Além disso, Dr. Junior, diferentemente de seu antecessor, empreendeu várias viagens a Barbalha. Nessas ocasiões, visitava os amigos, vistoriava as propriedades e muitas vezes procedia aos ajustes de contas anuais. Encontrei 14 registros de ajustes para o Tupinambá (1932-1945), realizados entre o arrendatário Zé Major — que assinava como José Callou — e o proprietário Antonio de Sá Barreto Sampaio Junior.145

As contas foram registradas, em caligrafia caprichada, sobre folhas de

papel almaço. As especificações e cifras das Receitas e Despesas aparecem

ora escritas por Dr. Junior, ora por Zé Major, em tinta azul ou preta, com raras correções em cor vermelha, ou carmim. Ao final de cada documento, ambos datam, localizam e assinam.

Às vezes, Zé Major iniciava as contas em Barbalha, enviava a Recife, onde Dr. Junior calculava a parte de cada um, elaborava o fechamento e

143 2º Cartório de Barbalha (CB-2), Registros de Escrituras Públicas de Compra e Venda. 144 (CB-2) Inventário de Antonio de Sá Barreto Sampaio Junior.

mandava de volta para o Cariri, para que a assinatura final do arrendatário selasse o ajuste. Outras vezes, ambos escreviam e datavam na mesma cidade, Barbalha ou Recife, o que mostra que além das visitas periódicas de Dr. Junior ao Cariri, Zé Major também se deslocava ocasionalmente para a capital de Pernambuco.

Foto 8. José Pereira Pinto Callou. Foto 9. Antonio de Sá Barreto Sampaio Jr. (Zé Major) (Dr.Junior)

Observa-se que apesar da finalidade prática destes documentos, de seu caráter de registro de negócios, transparece um alto grau de entendimento entre as partes. As fontes orais já apontavam para esse tipo de relacionamento: sendo arrendatário de muitos anos, administrador dos tempos paternos, certamente Zé Major gozava da confiança do jovem médico e proprietário. Porém, as trocas de informações, as palavras escritas, transmitem uma relação ainda mais próxima: de amizade.

No documento mais antigo desta relação, talvez o primeiro ajuste feito entre esses dois homens, sob o título “Dados para ajuste de c/ da safra de 1932”, na caligrafia larga de Zé Major seguem-se itens e cifras de Receitas e

Despesas, num padrão de organização contábil simples. Tal modelo, com

mínimas variações e poucos detalhamentos, se repete nos ajustes dos anos seguintes. Logo abaixo, em outra tinta e caligrafia, o cálculo dos lucros e o ajuste final feitos pelo proprietário. Ao final do documento, encontra-se uma fórmula de fechamento que também evoluirá com pequenas variações nas prestações seguintes:

Prezado José Callou — Achando certas as contas acima, assigne e date a presente e m’a devolva — Recife, 23 de março de 1934 Sampaio Junior.

Outro exemplo de fechamento, que confirma o método de troca de informações para o acerto de contas, está no ajuste datado de 1938. Um pequeno texto que denota o grau de aproximação entre os dois signatários:

Prezado amigo José Callou. De acordo com os dados que V. me forneceu, eis o ajuste de contas da safra de 1936 do Engenho Tupinambá e do Sítio Lambedor; achando tudo certo, após as annotações nos livros competentes, devolva datado e assignado, como prova de que está de accordo. Saudações cordeaes do parente e amgo Recife 24 de janeiro de 1938 Sampaio Junior

No exame desses documentos, verifica-se que o ajuste de contas nem sempre acontecia logo ao findar da safra. Alguns, excepcionalmente, foram realizados mais de um ano após o término da moagem. Pode-se observar também, que Zé Major costumava adiantar parte do valor correspondente ao arrendamento, uma ou duas vezes ao longo do ano. Quanto à forma de pagamento, há referências a valores entregues na firma comercial Sampaio &

Irmãos e a depósitos em contas bancárias, principalmente nos últimos anos.

A renda anual paga pelo Tupinambá era formada pela soma de duas parcelas:

1) 300 cargas de rapadura, pagas em valor monetário, calculado pelo preço médio das cargas vendidas na safra anterior.

2) metade do lucro líquido do engenho, ou seja, o rendimento da comercialização do restante da produção de rapaduras, descontadas as despesas. (Eventualmente aparecia, sob a denominação de “Apurado diverço”, pequenas quantias somadas à Receita).

Para o cálculo da renda, proprietário e arrendatário mantinham cuidadoso controle dos números do engenho. Com estes dados, Dr. Junior elaborou tabelas em que a série de valores de produção e comercialização permite apreender as vicissitudes das safras, do mercado e o ritmo dos trabalhos no Tupinambá, antes do advento da eletricidade.

“Safras do Tupinambá”, Tabela nº 2, apresenta a produção de rapaduras de 1926 a 1944. Pode-se supor que os valores referentes às safras anteriores a 1932, ano em que Dr. Junior tomou a frente dos negócios, tenham

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