A produção e a reprodução de informações, fatos e notícias, cada vez mais
intensas na sociedade, põem em foco as pessoas e as circunstâncias em que vivem, e,
para satisfazer a crescente ânsia por conhecimento, e ainda mais informações, a
sociedade vivencia um ininterrupto processo de atualização, recaracterizando-se a partir
do móvel da acumulação e circulação de dados. Fala-se não só em circulação, mas
também em acumulação de dados, em razão do notório poder exercido por alguém,
individualmente, ou organizado na forma de personalidade jurídica, em face da pessoa
retratada nas informações detidas, e que decorre do conhecimento detalhado que se tem
sobre a sua vida
75.
O poder adquirido com base na violação da privacidade alheia é exercido
exatamente em face da pessoa que teve sua privacidade tolhida, ou contra quem tenha
interesse na preservação do sigilo. Assim, se a violação à privacidade não for impedida
em sua origem, quem a viola passa a ter conhecimento de dados de outra pessoa,
naturalmente relacionados à sua vida íntima e privada, que, se exibidos, a poria em
situações sociais constrangedoras. O poder aqui referido é exercido, por óbvio, mediante
chantagem e a partir do gerenciamento do medo oriundo da exposição indevida. É
preciso pôr às claras que não é incomum, seja na política ou fora dela, a imposição da
vontade de uma pessoa sobre outra mediante a ameaça de dar publicidade a um dado de
sua vida privada: ou se faz algo querido pelo conhecedor da informação, ou a
informação será posta ao conhecimento público.
Em analogia à sensação de ser observado e à vivência na sociedade da
informação, cabe fazer referência ao “princípio panóptico”, idealizado por Jeremy
Bentham. Desenvolvendo um modelo arquitetônico de prédio destinado a servir à
75 “A caracterização da nossa organização social como uma sociedade cada vez mais baseada sobre a acumulação e a circulação das informações comporta o nascimento de um novo e verdadeiro ‘recurso’ de base, ao qual se coliga o estabelecimento de novas situações de poder. Surge assim o problema de legitimar este poder fundado na informação”. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Trad. de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro, São Paulo e Recife: Renovar, 2008. p. 35.
vigilância daqueles que nele se encontrem instalados, a sua ideia destinava-se a
estabelecimentos que tinham por objetivo a manutenção de pessoas sob inspeção,
fossem fábricas, hospícios ou escolas, mas principalmente casas penitenciárias. Ao
propósito de vigiar, deve-se construir uma área de alojamento em formato circular, com
uma grande torre de controle ao centro do círculo; os alojamentos devem ter janelas
abertas para a torre central, permitindo que as vistas do vigia ingressem nos seus
cômodos, mas sem que os hóspedes possam visualizar quem os observa. O modelo
panóptico, se aplicado a um presídio, por exemplo, sujeita os seus detentos a uma
constante vigilância, pois a posição central do vigia lhe permite estar sempre informado
sobre tudo o que se passa nos alojamentos, com o detalhe, ainda, de que mesmo na falta
do vigia, os hóspedes permanecerão se sentido vigiados, pois o desenho arquitetônico
não permite saber sequer se há alguém na torre, quão mais quem os vigia.
É a permanente sujeição, ou sensação de sujeição à visibilidade do inspetor
que confere àquele que vigia poder sobre o comportamento destes indivíduos, mediante
a invasão da privacidade das pessoas vigiadas. O efeito psicológico da vigilância sobre a
mente das pessoas alojadas nos cômodos sob observação, estando ou não efetivamente
vigiadas, alcançaria, segundo Bentham, resultados como a readequação social da pessoa
observada. Por suas próprias palavras, trata-se de um “novo modo de garantir o poder da
mente sobre a mente”
76.
76 “[...] Para dizer tudo em uma palavra, ver-se-á que ele é aplicável, penso eu, sem exceção, a todos e quaisquer estabelecimentos, nos quais, num espaço não demasiadamente grande para que possa ser controlado ou dirigido a partir de edifícios, queira-se manter sob inspeção um certo número de pessoas. Não importa quão diferentes, ou até mesmo quão opostos, sejam os propósitos: seja o de punir o incorrigível, encerrar o insano, reformar o viciado, confinar o suspeito, empregar o desocupado, manter o desassistido, curar o doente, instruir os que estejam dispostos em qualquer ramo da indústria, ou treinar a raça em ascensão no caminho da educação, em uma palavra, seja ele aplicado aos propósitos das prisões perpétuas na câmara da morte, ou prisões de confinamento antes do julgamento, ou casas penitenciárias, ou casas de correção, ou casas de trabalho, ou manufaturas, ou hospícios, ou hospitais, ou escolas. É óbvio que, em todos esses casos, quanto mais constantemente as pessoas a serem inspecionadas estiverem sob a vista das pessoas que devem inspecioná-las, mais perfeitamente o propósito do estabelecimento terá sido alcançado. A perfeição ideal, se esse fosse o objetivo, exigiria que cada pessoa estivesse realmente nessa condição, durante cada momento do tempo. Sendo isso impossível, a próxima coisa a ser desejada é que, em todo momento, ao ver razão para acreditar nisso e ao não ver a possibilidade contrária, ele deveria pensar que está nessa condição. Esse aspecto, como você pode imediatamente ver, é completamente assegurado pelo plano de meu irmão; e, penso eu, parecerá igualmente evidente que não pode ser abrangido por nenhum outro ou, para falar mais apropriadamente, que se for abrangido por algum outro, ele o será apenas na medida em que esse outro possa dele se aproximar. Para abreviar o assunto tanto quanto possível, considerarei, imediatamente, suas aplicações para aqueles propósitos que, por serem os mais complexos, servirão para exemplificar o poder e a força máxima do dispositivo preventivo, isto é, aqueles que são sugeridos pela idéia de casas penitenciárias, nas quais os objetos da custódia segura, do confinamento, da solidão, do trabalho forçado e da instrução, devem, todos eles, ser considerados. Se todos esses objetivos podem ser alcançados em conjunto, naturalmente o serão – com,
Já Michel Foucault
77estrutura o poder disciplinar de coerção e manipulação
do comportamento humano através da sutil vigilância do agir coletivo. Sentindo-se
observadas, as pessoas policiavam a sua conduta de modo meticuloso; o poder de
disciplina a elas imposto era assim sentido.
De volta à sociedade não fictícia, tem-se que a realidade hodierna não se
distingue, em muito, das circunstâncias fáticas narradas nas obras de Bentan e Foucalt.
Ressalvadas, claro, as peculiaridades pontuais a respeito da periculosidade da tecnologia
e do modo como ela é intencionalmente desenvolvida para investigar as pessoas, o
status de refém que se impõe aos membros da sociedade da informação é o mesmo.
Está-se diante de um vicioso círculo operacionalizado em razão da produção
de informação e com a finalidade de produzir mais informação: a informação é a causa
e a consequência da sociedade da informação. As pessoas não apenas estão envoltas em
uma profusa rede de dados, na condição de consumidoras dos fatos e notícias
publicados, como são também potenciais personagens dos fatos e notícias vindouros. A
periculosidade sistêmica da violação à privacidade é potencializada pela sociedade da
informação.
Aliás, por sociedade da informação
78compreenda-se a conjuntura social,
política e econômica que envolve a produção e o tráfego de dados de qualquer natureza.
É informação, nesse viés, o registro em áudio da fala proferida por alguém em uma
assembleia popular, a fotografia de outrem em gozo de férias com a sua família, a
no mínimo, igual certeza e facilidade – em qualquer número menor deles”. BENTHAM, Jeremy. O panóptico. Org. e trad. de Tomaz Tadeu. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. p. 17-20. 77 Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 32. ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2015.
78 “A expressão sociedade da informação define uma nova forma de organização social, política e econômica que recorre ao intensivo uso da tecnologia da informação para coleta, produção, processamento, transmissão e armazenamento de informações. Por tecnologia da informação entende-se a microeletrônica, a computação (software e hardware), as telecomunicações, a optoeletrônica, a engenharia genética e todos os processos tecnológicos interligados por uma interface e linguagem comuns, na qual a informação é gerada, armazenada, recuperada, processada e transmitida. Informação consiste em um dado ou conjunto de dados, processado ou não, em qualquer suporte, capaz de produzir conhecimento. Nesse sentido, informação pode ser uma imagem, um som, um documento físico ou eletrônico, ou, até mesmo, um dado isolado. A informação contém em si o principal ativo da sociedade da informação, ou seja, sua principal riqueza, sendo indispensável ao desempenho de qualquer atividade – o que explica a nomenclatura atribuída pela doutrina e essa nova forma de organização social, política e econômica. O trabalho, a educação, a saúde, o lazer, a política, a economia, enfim, tudo depende de informação. Após a supervalorização da terra na época da revolução agrícola e o predomínio dos bens de produção na revolução industrial, o que prepondera agora é a informação. Na qualidade de principal matéria-prima desse novo modelo capitalista, a informação se impõe como condição determinante para o desenvolvimento econômico e cultural da sociedade, daí o intensivo uso da tecnologia da informação – enquanto mecanismo facilitador da coleta, produção, processamento, transmissão e armazenamento – o que acarreta avassaladoras mudanças no mundo. VIEIRA, Tatiana Malta. O direito à privacidade na sociedade da informação: efetividade desse direito fundamental diante dos avanços da tecnologia da informação. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade de Brasília, Brasília, 2007. p. 156-157.
gravação em vídeo da vida quotidiana de uma pessoa em sua própria residência, ou,
ainda, o registro em texto do resultado do último jogo de um campeonato esportivo,
dentre outras tantas situações.
A tutela da privacidade na sociedade da informação mostra-se, bem se nota,
como um grande desafio que requer, para que seja alcançado, a atualização deste
específico instrumento dos direitos da personalidade à contemporaneidade, o que passa
pela já defendida comunicabilidade das esferas pública e privada e a interlocução
flexível dos círculos íntimo, privado e social.
Mas não só isso. A ideia preambular de privacidade como o direito de estar
só ou como o direito de ser deixado em paz beira a inexequibilidade em uma sociedade
interligada por redes de informações, em que os espaços públicos e privados estão sob
fiel vigilância: câmaras de segurança, radares medidores de velocidade, propriedades
condominiais, redes sociais e informatização dos meios de comunicação reduzem o
exercício da privacidade, se visto dessa maneira, ao enclausuramento da pessoa em sua
própria residência.
Cediço que não se cabe negar nem a tutela da privacidade, nem a
constatação da sociedade da informação, conceber a convivência de ambas é o caminho
possível para a construção de uma saída viável.
Assim, não só o direito à privacidade deve se recompor para abarcar
também a proteção da vida privada das pessoas, mesmo diante da quotidiana violação
promovida na sociedade da informação, mas também o aplicador do direito deve se ater
às peculiaridades das noveis circunstâncias e avalizar a individualização do controle
pessoal sobre as próprias informações
79, repita-se, tão ameaçado frente às liberdades da
informação
80.
79 Trata-se, na lição de Stefano Rodotà, da constatação de que a privacidade deve ser considerada também como “o direito de manter o controle sobre suas próprias informações e de determinar a maneira de construir sua própria esfera particular”. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Trad. de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro, São Paulo e Recife: Renovar, 2008. p. 15.
80 “O direito à vida privada apresenta-se desprotegido perante os assaltos da liberdade de informação, que, com o discurso do direito coletivo de ser informado todo fato, acontecimento ou situação com relevância pública e efeito na vida comunitária, desbanca a garantia constitucional à reserva da privacidade. O direito à vida privada deve ser tomado a sério”. BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 198.