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3. O DOMÍNIO DA NATUREZA NA DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO

3.3 ULISSES OU O DOMÍNIO DA NATUREZA INTERNA

A formação da cultura é constituída pela renúncia, por parte dos indivíduos, das pulsões (Trieb) – como assevera Freud. Já em O mal-estar na civilização o criador da psicanálise destaca que ―a palavra ‗civilização‘ designa a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais‖, e continua a afirmar que a civilização ―serve para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homes entre si.‖ (FREUD, 2010, p. 49). Freud estava convencido de que a civilização vive sob um constante mal-estar (Unbehagen), fruto da renúncia do desejo que é regido pelo princípio do prazer e do estabelecimento do princípio da realidade com a formação do ego. Assim como Freud, Adorno e Horkheimer concebem a passagem da natureza para a cultura por meio da renúncia de si.

É isso que autores como Hegel em sua Filosofia do direito e Lukács em sua

Teoria do romance procuravam afirmar com o conceito se segunda natureza – esses

designar o mundo do espírito em um sentido genérico. Na introdução de sua obra, Hegel afirma que o direito é o espírito em geral, cuja base é a vontade livre e a liberdade como constitutiva de sua substância. O direito é a liberdade realizada como desdobramento da segunda natureza:

o domínio do direito é o espírito em geral; aí, a sua base própria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espírito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo. (HEGEL, 1997, p. 12)

Mais adiante, no § 151 Hegel delimita mais o conceito de segunda natureza, na qual é descrita como a materialização da eticidade humana. Assim, segundo Duarte (1993, p. 97) para Hegel a segunda natureza é o resultado de um processo em que o homem constitui-se como humano, ao sair de sua determinidade natural.

Na simples identidade com a realidade dos indivíduos, a moralidade objetiva aparece como o seu comportamento geral, como costume. O hábito que se adquire é como que uma segunda natureza colocada no lugar da vontade primitiva puramente natural, e que é a alma, a significação e a realidade da sua existência. É o espírito dado como um mundo cuja substância assim ascende pela primeira vez ao plano do espírito. (HEGEL, 1997, p. 147).

Para o jovem Lukács a categoria de segunda natureza aparece como necessidade petrificada, legalidade alienada, na qual não consiste mais no resultado da objetivação consciente do homem ao se pôr no mundo. ―Ela [segunda natureza] é criada ou produzida pelo homem, mas se torna impenetrável e o oprime. [...] frente a ela o homem se sente tão alienado e ameaçado como frente à primeira natureza.‖ (MATOS, 1989, p. 166). Lukács estabelece a distinção entre o mundo sem sentido e com sentido, onde o primeiro é o mundo das coisas – o qual Lukács chama de mundo da convenção. Para o Lukács de Teoria do romance a segunda natureza é uma realidade alienada do ser humano parecendo-lhe algo estranho. Porém, na obra História e consciência de

classe159 Lukács irá delimitar melhor seu conceito de segunda natureza ao identificar a

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―Por outras palavras, a contradição que aqui se manifesta entre a subjectividade e a objectividade dos sistemas formais modernos e racionalistas, o emaranhado e os equívocos contidos nos seus conceitos de sujeito e objecto, a incompatibilidade entre a sua essência de sistemas por ―nós‖ ―produzidos‖ e a sua necessidade fatalista estranha ao homem e dele afastada são apenas a formulação lógica e metodológica do estado da sociedade moderna: porque, por um lado, os homens quebram dissolvem e abandonam cada vez mais as ligações simplesmente ―naturais‖, irracionais ―efectivas‖ mas, por outro lado e simultaneamente, levantam em redor de si, nesta realidade criada por eles próprios ―produzida‖ por eles ―próprios‖, uma espécie da segunda natureza cujo desenrolar se lhes opõe com a mesma impiedosa

metamorfose do valor de uso em valor de troca. Esse processo é a própria fonte da reificação como segunda natureza.

Quando objetivo algum é dado de modo imediato, as estruturas com que a alma se defronta no processo de sua humanização como cenário e substrato de sua atividade entre os homens perdem seu enraizamento evidente em necessidades suprapessoais do dever-ser; elas simplesmente existem, talvez poderosas, talvez carcomidas, mas não portam em si a consagração do absoluto nem são os recipientes naturais da interioridade transbordante da alma. Constituem elas o mundo da convenção, um mundo de cuja onipotência esquiva-se apenas o mais recôndito da alma; um mundo presente por roda a parte em sua opaca multiplicidade e cuja estrita legalidade, tanto no devir quanto no ser, impõe-se como evidência necessária ao sujeito cognitivo, mas que, a despeito de toda essa regularidade, não se oferece como sentido para o sujeito em busca de objetivo nem como matéria imediatamente sensível para o sujeito que age. Ele é uma segunda natureza; assim como a primeira, só é definível como a síntese das necessidades conhecidas e alheias aos sentidos, sendo portanto impenetrável e inapreensível em sua verdadeira substância. (LUKÁCS, 2000, p. 62).

É necessário destacar aqui, antes de mais nada, que o processo pelo qual a civilização passa da natureza à cultura (segunda natureza) tem como pressuposto a dominação da natureza interna, i.e., a dominação das pulsões do próprio homem. Mas para os autores frankfurtianos o conteúdo da natureza interna tem igualmente como pressuposto o ―princípio protoburguês da separação entre trabalho intelectual e corporal, no qual a primazia daquele sobre esse [...] encontra-se constantemente em contradição com a evidência das carências materiais humanas.‖ (DUARTE, 1993, p. 88). No mesmo sentido Jay (1995, p. 103) destaca que ―a contradição irredutível mais fundamental [...] é a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, que está na base da dialética do esclarecimento.‖ Segundo Adorno (DN, p. 153) ―desde que o trabalho intelectual e o trabalho corporal cindiram-se sob o signo do domínio do espírito e da justificação do privilégio‖ o trabalho corporal foi submetido e dominado pelo trabalho intelectual, cristalizando a dominação do homem pelo homem. ―A divisão do trabalho, onde o desfrute foi para um lado e o trabalho para o outro, proscreveu a força bruta. Quanto menos os senhores podiam dispensar o trabalho dos outros, mais desprezível ele se tornava a seus olhos.‖ (DE, p. 216).

Nesse sentido, para os autores frankfutianos a passagem da natureza à cultura é representada pela figura de Ulisses na epopeia Odisseia de Homero, ou seja, Ulisses e suas aventuras representam a própria civilização e seu processo de formação do eu, de conformidade às leis que outrora os tornavam forças naturais irracionais (mais precisamente: relações sociais que lhes apareciam sob essa forma).‖ (LUKÁCS, 2003, p. 271-272).

diferenciação da natureza pela abstração conceitual. Para os frankfurtianos ―nenhuma obra presta um testemunho mais eloquente do entrelaçamento do esclarecimento no mito do que a obra homérica, o texto fundamental da civilização europeia.‖ (DE, p. 55). A viagem de Ulisses de volta para Ítaca narrada na Odisseia, configura a ―proto-história da subjetividade‖ (DE, p. 61) e sua formação como ego idêntico a si. Nesse momento cabe a pergunta, qual a relação da passagem da natureza para a cultura e a formação do ego para o presente trabalho? Como resposta óbvia, a relação está na analisasse do segundo vetor da tese da obra Dialética do esclarecimento, qual seja, a passagem do mito ao esclarecimento, da mímesis à racionalidade e, consequentemente, o processo de dominação da natureza interna e externa.160 Adorno e Horkheimer usam a Odisseia como metáfora explicativa da diferenciação do homem e da natureza através da passagem do mito ao esclarecimento.

Após a guerra de Tróia o herói Ulisses empreende sua viagem – a viagem da subjetividade – de volta a Ítaca, na qual o herói passa por diversos perigos e aventuras que colocam em cheque sua individualidade. A viagem de Ulisses ―é a viagem metafórica que a humanidade precisou realizar para efetuar a passagem da natureza à cultura, do instinto à sociedade, da auto-repressão ao autodesenvolvimento.‖ (MATOS, 1993, p. 160). Essa viagem de regressão ao lar é ela própria a representação da constituição do sujeito racional, pois o herói da epopeia, em suas aventuras, deve dominar a natureza interna e externa, mesmo sabendo-se mais fraco que a natureza. ―A viagem errante de Tróia a Ítaca é o caminho percorrido através dos mitos por um eu fisicamente muito fraco em face das forças da natureza.‖ (DE, p. 55-56).

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Os conceitos de natureza interna/externa são usados pelos autores e em especial por Adorno para designar a dualidade cartesiana. Assim, seguem-se alguns trechos que corroboram a utilização dos termos por Adorno e Horkheimer: ―No entanto, não se precisa negar com isso a unidade que solda as fases e os momentos descontínuos, caoticamente estilhaçados, da história, uma unidade que, a partir da dominação da natureza, se transforma em domínio sobre os homens e, por fim, em domínio sobre a natureza interior.‖ (DN, p. 266). ―O que há de não-verdade ideológica na concepção da transcendência é a cisão de corpo e da alma, reflexo da divisão do trabalho. Ela conduz à idolatria da res cogitans enquanto o princípio de dominação da natureza e à privação material que se dissiparia no conceito de uma transcendência para além da relação de culpa. (DN, p. 131-132). ―Fôssemos colocar na grande perspectiva da história universal o sistema da indústria cultural, seria para defini-lo como a exploração planejada da antiquíssima ruptura entre os homens e sua cultura. O duplo carácter do progresso, que sempre desenvolveu simultaneamente o potencial da liberdade e a efetividade da opressão, acarretou a crescente subordinação dos povos à dominação natural e à organização social e por outro lado tornou-os incapazes, pela pressão que a cultura lhe impunha, de compreender aquilo pelo qual a cultura ia além dessa integração.‖ (MM, p. 143). Em relação à Dialética do esclarecimento são inúmeras passagens que ilustram a utilização dos termos empregados pelos autores: ―O sistema visado pelo esclarecimento é a forma de conhecimento que lida melhor com os factos e mais eficazmente apoia o sujeito na dominação da natureza.‖ (DE, p. 82).

A análise da obra de Homero é o objeto do excurso I da obra Dialética do

esclarecimento, que é onde os autores identificam na narrativa homérica a transição da

natureza à cultura pela civilização, sendo que essa transição apenas se dá pela introjeção do sacrifício, i.e., a renúncia de si para a formação da ipseidade do indivíduo. (MATOS, 1993, p. 163). Ulisses é para os frankfurtianos a representação do indivíduo burguês em sua construção solipsista do eu, que precisa, para forma sua individualidade pela unidade e identidade do eu rígido, passar por duras provações. Na verdade o fundamento central para que todas as figuras míticas enfrentadas por Ulisses tenha tanta força é o fato de que elas representam os impulsos internos, os desejos que ainda não foram controlados pelo pensamento racional. (FREITAS, 2001, p. 87). O que Ulisses realmente enfrenta em todo ―o seu percurso é o perigo representado pela força de seu

próprio desejo, que tende sempre a desviá-lo do seu projeto de unificar a si mesmo

através da consciência do poder que ele mesmo tem em relação a si próprio [grifo do autor].‖ (FREITAS, 2001, p. 87). Essa unidade do ego é conquistada em face da multiplicidade da natureza que seduz.

As potências míticas, como representações do passado primordial de indiferenciação e fusão com a natureza, que representam igualmente a inevitabilidade do destino, são negadas por Ulisses como esforço para a criação e diferenciação do eu, essa é a passagem metafórica da própria civilização em relação ao mito. A natureza cíclica do mito, a repetição dos eventos naturais e o relato mítico que sempre remete à origem primordial são na narrativa homérica testemunhas do sacrifício, e segundo Freitas (2001, p. 131) ―em que o princípio da troca, que faz com que desiguais sejam abstratamente nivelados, se mostra como a célula da irracionalidade da razão esclarecida que vige até os derradeiros momentos do capitalismo atual.‖ Essa é a posição que Freud assumira em O mal-estar na civilização e Totem e Tabu, obras nas quais a cultura é a cristalização da introjeção sacrificial das pulsões, porém, a civilização se mostra recalcitrante aos desejos de autoconservação social, ou seja, a natureza interna que é sacrificada se manifesta sob as formas diversas, como, p.ex., a neurose (FREITAS, 2001, p. 101) e o fascismo (TIBURI, 1995, p. 47).

Ao enfrentas as potências míticas Ulisses está formando sua individualidade através do sacrifício, mas um sacrifício de si que é a mesmo tempo em função de si. O sacrifício é mediado pela astúcia, dado que na medida que Ulisses sacrifica-se ele ganha a si mesmo. ―Eis aí a verdade da célebre narrativa da mitologia nórdica, segundo a qual Odin se pendurou numa árvore em sacrifício por si mesmo,‖ no mesmo sentido, os

autores afirmam que a ―tese de Klages que todo sacrifício é o sacrifício do deus ao deus, tal como ainda se apresente nesse disfarce monoteísta do mito que é a cristologia.‖ (DE, p. 60). A racionalidade autoconservadora, que exerce violência contra si mesmo opõe-se à natureza da qual faz parte. Para Ghiraldelli (1993, p. 114) ―com a negação da natureza no homem a própria finalidade da dominação externa e mesmo a finalidade da vida se obscurecem.‖ E continua afirmando, ―quando o homem não pode mais admitir a consciência de si próprio como natureza toda finalidade benévola e qualquer autojustificação da vida perde o sentido, de modo que, no limite – e o limite é o ‗capitalismo tardio‘ –, os meios são postos como fins.‖ Nesse sentido, segundo Adorno e Horkheimer (DE, p. 61) ―o domínio sobre si mesmo, em que se funda o seu ser, é sempre a destruição virtual do sujeito a serviço do qual ele ocorre.‖ Aquilo que é dissolvido, aniquilado e dominado em nome da autoconservação é a natureza do próprio indivíduo que domina. (DE, p. 61).

Como visto os conceitos centrais nesse momento que fazem compreender a passagem da natureza à cultura é sacrifício e astúcia. Os autores afirmam que ―o recurso do eu para sair vencedor das aventuras: perder-se para se conservar, é a astúcia‖ (DE, p. 57), e mais adiante afirma ainda, ―a história da civilização é a história da introversão do sacrifício. Ou por outra, a história da renúncia.‖ (DE, p. 61). Ulisses sabe-se mais fraco que as potências míticas – como quando deixa-se amarrar ao mastro do navio para não sucumbir ao canto das Sereias –, assim, para vencê-las, é necessário assimilá-las, submeter-se ao contrato de modo que a vida humilhada, submetida à totalidade, assim como a racionalidade burguesa exige, possa sobreviver. Nesse sentido, e sabendo que Ulisses é sempre mais fraco fisicamente que as potências míticas com as quais deve lutar – de tal forma que não pode entrar em conflito com tais forças, deve sempre ―reconhecer o estatuto das cerimônias sacrificiais para apaziguá-las.‖ (MATOS, 1989, p. 155). Mas essa submissão por parte de Ulisses representa o eterno ciclo de repetição do mito,161 em que o destino está sempre traçado e em eterna repetição

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―[Ulisses] não ousa contrariá-las, pois cada uma dessas figuras míticas está ‗programada‘ para fazer sempre a mesma coisa. Cada uma delas é uma figura da repetição e da compulsão; cada uma delas representa um aspecto do ciclo da natureza à qual o homem está ligado. Assim, Ulisses não pode desafiar o poder das sereias diretamente, pois é impossível ouvir seu canto sem sucumbir. Sua estratégia consiste em escapar às condições legais que o restringem, mas observando estritamente a letra da lei. Quer descobrir uma fórmula de dar à natureza o que é dela e ao mesmo tempo traí-la.‖ (MATOS, 1989, p. 155- 156).

cíclica,162 no entanto, é exatamente a isso que Ulisses se opõe. ―O eu representa a universalidade racional contra a inevitabilidade do destino.‖ (DE, p. 63).

Para vencer as forças míticas Ulisses tem que reconhecer sua inferioridade, assim, ―quando, porém, encontra potências do mundo primitivo, que não se domesticam nem se afrouxam, suas dificuldades são maiores. Ele não pode jamais travar luta física com os poderes míticos que continuam a existir à margem da civilização.‖ (DE, p. 62). Ulisses tem de reconhecer a superioridade dos mitos que enfrenta, sabe que não pode enfrenta-los fisicamente, e essa ―disparidade de forças legitima a conquista pela astúcia, do mesmo modo que a burguesia mais tarde irá encontrar a legitimação moral do lucro no risco de ruína [grifo do autor].‖ (FREITAS, 2001, p. 92). Para lograr os mitos e vencê-los Ulisses usa da astúcia ao submeter-se e sacrificar-se, ele ao mesmo tempo está ganhando a si e vencendo os mitos embora por meio de um autosacrifício. ―Ele tem que reconhecer como um fato os cerimoniais sacrificiais com os quais acaba sempre por se envolver, pois não tem força pra infringi-los.‖ (DE, p. 62).

Um dos momentos emblemáticos no surgimento da astúcia é na aparente rendição de Ulisses às leis mitológicas. O herói logra o mito ao mesmo tempo em que se submete a ele. ―A lógica consiste na aparente rendição às normas da natureza, assimilando-a para poder logo em seguida negá-la veementemente.‖ (ZUIN; PUCCI; OLIVEIRA, 2001, p. 49). Desse modo, Ulisses submete-se ao contrato, mas descobre lacunas que o possibilita de escapar às normas cumprindo-as. A inevitabilidade do destino é combatida pela astúcia, como no canto das sereias no qual Ulisses é amarrado ao mastro do navio para que possa ouvir a bela canção sem que se jogue ao mar e pereça afogado. ―O contrato antiquíssimo não prevê se o navegante que passa ao largo deve escutar a canção amarrado ou desamarrado.‖ (DE, p. 64). O herói consegue ouvir o canto das sereias sem sucumbir à tentação de unir-se à natureza, engana o mito ao submeter-se a ele. Mas paga o preço de sacrificar a si mesmo na medida que é amarrado ao mastro, não lhe sendo possível entregar-se completamente ao poder sedutor das sereias – à união mimética entre homem e natureza. Com isso Adorno e Horkheimer buscam esclarecer que a passagem da natureza à cultura é feita através da dominação da natureza interna por parte dos indivíduos. As potências míticas que Ulisses enfrenta constituem a representação das pulsões internas dos indivíduos.

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―Tal como no mito, situamo-nos diante de uma sociedade em que seus fatos suplicam pela reprodução do sempre idêntico. E a mesmice caminha de mãos dadas com o conformismo e com a resignação ao horror.‖ (ZUIN; PUCCI; OLIVEIRA, 2001, p. 53).

Na verdade a astúcia ocupa o lugar do sacrifício. Conforme Matos (1989, p. 158) a astúcia é injustiça, pois ela logra a natureza para que Ulisses subtraia-se do seu destino pré-definido. Ao utilizar da astúcia o herói da Odisseia opõe suas faculdades cognitivas à natureza para que conquiste o controle racional de seu em torno. Nesse sentido, Ulisses constitui o indivíduo que luta por uma vida que seja independente das vicissitudes de um destino que se repete ciclicamente, é a unidade do eu que luta contra a diversidade – a razão luta contra a força da mímesis que quer se lançar à natureza e restabelecer um passado de prazer pulsional. ―Apenas através da repressão dos instintos e do um sacrifício contínuo – negação da natureza do homem para o bem da dominação sobre a natureza não-humana e sobre outro homens – pode sobreviver Ulisses.‖ (MATOS, 1989, p. 158).

A dominação da natureza por Ulisses é feita pelo cálculo racional, é a racionalidade representada por Ulisses frente ao poder do destino. Os desafios de Ulisses em face da natureza selvagem são desafios contra sua autonomia do indivíduo, e para garantir sua sobrevivência o protagonista da epopeia lança mão da repressão dos instintos por meio de um sacrifício contínuo. ―A passagem da natureza para a cultura se faz pela prática da renúncia.‖ (MATOS, 1993, p. 159). É nesse sentido que Adorno e Horkheimer viam o herói homérico como o proto-burguês, é dizer, viam em Ulisses os primeiros traços do indivíduo burguês tal como estabelecidos pela ética protestante de Lutero. (MATOS, 1993, p. 159). O indivíduo burguês é assim como Ulisses amarrado ao mastro de seu navio que ―tanto maior se torna a sedução, tanto mais fortemente ele se deixa atar‖ (DE, p. 45). Como destaca os autores, assim como os ―burgueses, que recusavam a si mesmos a felicidade com tanto maior obstinação quanto mais acessível ela se tornava com o aumento de seu poderio.‖ (DE, p. 45).

O sacrifício é uma peça chave para compreender o pensamento dos autores, pois é por meio do sacrifício que Ulisses renuncia a si para preservar sua identidade. Porém, mais do que isso, o sacrifício ritual e a razão abstrata possuem em comum a ideia de equivalência – o próprio princípio da troca. ―Se a troca é a secularização do sacrifício, o próprio sacrifício já aparece como o esquema mágico da troca racional.‖ (DE, p. 57). Para os autores tanto o sacrifício como a troca constituem-se como uma cerimônia organizada pelos homens para dominar os deuses, que são usados exatamente

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