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O Dicionário Aurélio apresenta a definição de transgressão como algo que desobedece, viola e/ou está fora da lei, significa ainda, fazer algo errado, como uma infração ou violação às regras (Aurélio, 2004). Sob essa visão, uma mulher exercendo profissões tidas até então como masculinas, foi apontado como uma transgressão à regra. Para Foucault, a transgressão é um acontecimento do ser que ocorre nos limites do mesmo em momentos nos quais esses limites são simultaneamente violados, revelados e abolidos (FOUCAULT, 1963). Ao escrever sobre sexualidade, Foucault afirma que estar no limite da transgressão é caminhar sobre um terreno de excessos e romper o limite. Mas, é necessário separar a ideia de limite e a de transgressão, pois “o limite e a transgressão devem um ao outro a densidade de seu ser: a inexistência de um limite não poderia absolutamente ser transposto” (FOUCAULT, 1963, p.32).

Dessa forma, vemos que esse autor faz tal afirmação para argumentar que tudo aquilo que é, é limitado; segue uma regra de fundamentação; e, só pode ser entendido em sua completude quando se mostra com transparência, ou seja, quando se revela sem mistérios. Para ele o ser humano é composto de sua fundamentação e os limites que elas trazem, assim, o fato é que toda fundamentação do “eu” está sob fronteiras e atravessá-las é praticar uma violação que é levada a uma transgressão, isso porque essa fronteira nunca é atravessada pelo ser que a tem como fundamentação. (SARDINHA, 2010)

É importante entender também que, não existe nem um limite intocável nem uma transgressão fora dos limites, uma vez que, “nem o limite, nem a transgressão são definitivos, ambos são provisórios. Nenhum possui sentido em si mesmo, mas apenas em função do outro”. (SARDINHA, 2010, p.05) Dessa maneira, podemos refletir que:

A transgressão é a decisão como ato de passar além, de ir mais longe do que se crê possível e, por tal ato, prosseguir com as descontinuidades ou as decisões: “[...] a transgressão transpõe e não cessa de recomeçar a transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente se fecha de novo em um movimento de tênue memória, recuando então novamente para o horizonte do intransponível”. (SARDINHA, 2010, p.10).

Sob esse aspecto ao participarem de espaços de produção e reprodução da ciência e tecnologia, as mulheres cometeram uma transgressão as leis de comportamento vistas como naturais pelos costumes de épocas e gerações. Defender as mulheres em tais condições era cometer uma transgressão deliberada, ou seja, falar de algo que está fadado a não ser comentado por ser “proibido” (FOUCAULT, 1963). Em entrevistas, as mulheres que estudaram na Escola Politécnica da Paraíba informaram que escutavam comentários impertinentes sobre as habilidades que suas profissões exigiam. Por exemplo, Eduarda Silva, ex-aluna de Engenharia Elétrica da Escola Politécnica da Paraíba relatou que os amigos costumavam perguntar como a mesma conseguiria “subir num poste”. O estranhamento que gerou as brincadeiras entre os colegas de graduação só foi possível porque uma mulher engenheira era vista como uma transgressão pela sociedade, imagem tão estranha na mentalidade das referidas pessoas que pouco se conseguia imaginá-la em certas condições de trabalho.

Esse olhar de estranhamento ou de recusa vem se modificando e políticas de incentivo aos profissionais têm ajudado para a desconstrução discursiva dessa realidade, mas essa melhoria só é possível graças ao rompimento do limite imposto, do saber monopolizado e do poder exercido em alguns ramos profissionais. Um caso exemplar ocorreu na Universidade de Harvard, em 1901 quando Edward Charles Pickering, um notável astrônomo, resolveu dar oportunidade a um grupo de mulheres que queria estudar astronomia. No final de um dos corredores desse setor, no campus universitário, estava uma sala separada para esse astrônomo e nela trabalhavam as calculadoras, mulheres que mapeavam e classificaram um grupo de estrelas.

O trabalho dessas mulheres possibilitou desenvolver a chave para a composição das estrelas e o cálculo para o tamanho do universo, mas certamente o leitor dessa pesquisa não ouviu falar nelas, ou pouco tem conhecimento da contribuição direta que deram a física e a astronomia. Isso porque a desvalorização do trabalho das mulheres em tal setor e em tal época era alta.

Annie Jump Cannon era a líder do laboratório feminino, tida como a mais sábia entre as calculadoras, ela catalogou 250 mil estrelas no universo, seguida de Henrietta Swan Leavitt que criou a lei que os astrônomos ainda usam para medir a distância da terra até as estrelas e o tamanho do cosmos. Além desses feitos, ambas chegaram à conclusão que os mesmos elementos que compõem a terra

também compõem as estrelas. Cannon descobriu que as estrelas estão numa sequência de sete categorias, formando um espectro principal, porém algumas apresentam pequenas variações, e para diferenciar, a astrônoma criou dez subcategorias numéricas, que permitem a identificação a olho nu. Resumindo, Annie Jump Cannon organizou a classificação das estrelas.

No ano de 1923, na Inglaterra, as mulheres ainda eram proibidas de frequentar os cursos de ciência nas universidades, foi sob essa pressão que Cecilia Payne ao escutar a palestra do astrônomo Arthur Eddington – evidenciou a teoria da relatividade de Einstein correta – decidiu seguir seu sonho a todo custo e emigrou para América do Norte, após aceitação do pedido de estudo e trabalho em Harvard. As descobertas de Payne desafiaram a crença da astronomia e o resultado foi o berço da astrofísica moderna20. Nos primeiros anos ela recebeu todos os

ensinamentos de Annie Cannon e em pequenas observações determinou a verdadeira composição química e os estados físicos das estrelas através do que hoje chamamos de física teórica e anatômica.

As descobertas estavam apenas começando. Os astrônomos acreditavam que as estrelas tinham o mesmo elemento que a terra e na mesma proporção, o mais abundante deles era o cálcio e o ferro, dessa forma, em 1924 Henry Norris Russell21 alegava que havia elementos do Sol na Terra e foi a partir dessa hipótese

que Payne calculou os espectros das estrelas descobertas por Cannon e observou que eles combinavam perfeitamente com a classificação desenvolvida nas categorias e subcategorias. Payne descobriu que os espectros estavam divididos em suas longas escalas de temperatura (perto e longe do Sol), complementando o trabalho de Annie Cannon, que criou uma cadeia de organização estrelar, mas não sabia que o fator que determinava essa organização era a temperatura.

Além dessa descoberta, Payne analisou que as estrelas são feitas de hidrogênio e hélio em maior abundância que o metal. O passo seguinte foi escrever sua tese e enviá-la a Russell, mas esse classificou o trabalho como sem fundamento, pois não haveria condições do metal ser em menor quantidade que o

20 Astrofísica é o ramo da Astronomia que lida com a Física do universo, incluindo suas propriedades

físicas (luminosidade, densidade, temperatura, composição química) de objetos astronômicos como estrelas, galáxia e meio interestelar, bem como suas interações.

21 Henry Norris Russell, (1877- 1957), foi um astrônomo americano mais influente durante a primeira

metade do século 20. Ele desenvolveu um papel importante no estabelecimento de astrofísica e teóricos modernos, desenvolvendo o diagrama de Hertzsprung-Russell, um gráfico que demonstra a relação entre brilho intrínseco de uma estrela e seu tipo espectral e que representa a teoria da forma como as estrelas evoluem.

hidrogênio. O fato é que Payne estava desafiando a sabedoria científica e recebendo a desaprovação do astrônomo, isso ocasionou desmotivação e mesmo acreditando na tese, ela escrevera em arquivos próprios um desabafo: “como posso estar certa, se isso indica que um notável cientista estava errado?” Dessa forma, Payne acrescentou a tese que era “altamente improvável e quase com certeza não real” que o hidrogênio estivesse em abundância na composição estrelar. Foram necessários quatro anos para que Russell percebesse que Payne estava certa, ele reconheceu que a descoberta pertenceu a astrônoma e assim a tese intitulada “Atmosferas Estelares” é a mais lida até hoje e reconhecida como a mais brilhante da astronomia, pois permitiu que os cálculos para as pesquisas e viagens espaciais fossem possíveis.

Payne teve colocada à prova sua competência, mas não foi aceita porque além de desafiar o conhecimento científico com uma descoberta de grande alçada, ela pôs em questão os conhecimentos e descobertas de seus colegas de trabalho que eram especialistas renomados na área. Cabe-nos interrogar a força da tradição, a dimensão de como o conhecimento exerce poder. Nessa pesquisa o conhecimento a que falamos é a ciência e tecnologia e a contestação fundante mais clara nesse ramo, é a participação das mulheres no setor. Por esses fatores possivelmente é que o percentual de mulheres se mostra ainda tão pequeno em determinadas profissões e que participar deles é visto como desbravar e transgredir um limite, questão que abordaremos nos próximos capítulos.

Já no Brasil, na mesma época, o governo buscando incentivar o ensino específico à ciência e tecnologia criou faculdades específicas. Em 1939, por exemplo, foi criada a Faculdade Nacional de Filosofia (FNFI) com o objetivo de formar professores secundários e pesquisadores, para os estudos no ramo das ciências biológicas e biomédicas existia o curso de História Natural, no Distrito Federal, que ganhou força e reconhecimento com o passar dos anos formando profissionais requisitados em todo o país, e a Faculdade de Medicina, que por décadas foi conhecida por receber um número mínimo de mulheres. Havia também a Escola Nacional de Química, criada em 1934, constituindo outra via de acesso à educação superior, tendo atraído um número significativo de mulheres na época. A Escola Nacional de Química era vinculada ao Ministério da Agricultura e voltada para o ensino profissional de Química, área que despertava grande interesse em virtude do início da expansão industrial do país.

Parte expressiva das mulheres que ingressaram nas principais instituições de pesquisa no Rio de Janeiro à época estiveram no Museu Nacional, Instituto de Biofísica, e Instituto Oswaldo Cruz, era originada da Escola de Química. Essas informações foram colhidas na apresentação dos Cadernos Pagu22, plataforma, já

apresentada, em que são registrados pesquisas de gênero ligadas à ciência e tecnologia no Brasil e que traz também ao conhecimento público algumas identidades femininas de importância no país. Dentre elas, destacamos Aída Hassón-Voloch, proveniente de uma família de imigrantes judeus socialmente bem posicionada, desfrutou o privilégio de frequentar uma escola privada inglesa em nível secundário. Ingressou na Escola de Química em 1941 com a aspiração de se tornar química industrial e obter uma colocação no mercado de trabalho, contudo, seu destino profissional foi alterado, pois não apenas as oportunidades de trabalho para os químicos no âmbito da indústria eram restritas - o que a levou a conseguir apenas alguns estágios depois de formada - mas porque foi convidada a estagiar no Instituto de Biofísica, onde permaneceu em sua vida profissional. (Informações colhidas na Academia Brasileira de Ciências).

Aída foi chefe de laboratório, orientadora renomada, cotada em publicações científicas, teve reconhecimento na admissão na Academia Brasileira de Ciências, como membro associado, em 1962; e, membro titular, em 1992. Foi condecorada, em 2000, com a Ordem Nacional do Mérito Científico, concedida pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Ela afirma em entrevista transcrita nos Cadernos Pagu que não ficou isenta de discriminação, nem sempre explícita, mas por ela percebida, sob a forma de uma bem humorada e sutil ironia.

Maria Lígia Moreira e Léa Velho colocam:

22 O nome do caderno é em homenagem a Patrícia Galvão ou simplesmente Pagu, apelido que

recebeu aos 18 anos e com o qual se tornou conhecida nos anos de 1920 quando, fazia às vezes de mascote do modernismo paulista criado pelo casal Tarsila e Oswald de Andrade. Anos mais tarde ela teve um romance com Oswald, com ele um filho e ambos entraram para o partido Comunista. A isso se sucedeu uma série de acontecimentos que marcariam a vida de Patrícia Galvão no decênio de 1930: a mudança para o Rio de Janeiro em 1932, a publicação no ano seguinte de Parque industrial, tido como o primeiro romance proletário brasileiro, a viagem pelo mundo em 1934 (quando estreia como repórter), os meses que morou em Paris (sem Oswald e o filho) onde foi presa como militante comunista estrangeira. Repatriada, voltaria ao Brasil em 1934 e, por duas vezes, em 1935 e 1938, seria presa novamente. Libertada em julho de 1940, Pagu se casou com Geraldo Ferraz, com quem viveu até o fim da sua vida e com quem entrou pra valer na cena cultural, ligando-se ao periódico Vanguarda Socialista, em 1945, e iniciando, no ano seguinte, a sua colaboração regular no Suplemento literário do Diário de S. Paulo.

Entre as possíveis explicações para as causas da representação desproporcional de mulheres em C&T, está a que atribui o problema a diferenças biológicas, cognitivas ou de socialização entre os dois sexos. Segundo Soares (2001), os argumentos mais comuns em favor dessa hipótese são que mulheres não possuem controle emocional para suportar as pressões frequentes em cargos de comando, que mulheres não tomam decisões objetivas e são socialmente educadas para serem protegidas e, dessa forma, não adquirem a agressividade necessária para competir. Uma segunda perspectiva propõe que os padrões institucionais determinam as escolhas individuais, que, por sua vez, mantêm e reforçam ciclicamente esses mesmos padrões. (MOREIRA, VELHO, 2009). O fragmento revela uma construção cultural de mentalidade que foi muito atuante em 1920 e 1930. Nota-se que o discurso que prende a mulher a características emocionais é forte e que foi esse o motivo que levou as cenas de movimento por liberdade feitas nos movimentos feministas já descritas nesse capítulo. Questiona-se: essa mentalidade ainda se mantém? De certa forma sim, a mulher na Ciência e Tecnologia ainda é vista como transgressora e tal participação, embora em crescimento em determinadas subáreas, ainda é pequena, a atuação delas ainda é limitada, pois pensar na participação feminina na Ciência e Tecnologia é pensar na transgressão à crítica da produção cultural que estabeleceu o lugar nesse campo como masculino.

Nessa perspectiva, vimos nesse capítulo, a consequência que os discursos de limitação a atuação feminina causaram e a dificuldade de desconstrução dos mesmos. Conseguimos ainda relatar que durante todo o progresso histórico, um grupo de mulheres tentaram provar o contrário e lutaram pela igualdade de direitos. Tomamos, por fim, conhecimento de algumas descobertas importantes feita por mulheres na Ciência e Tecnologia.

Assim posto, daremos continuidade a essa análise tratando da reinvenção dos lugares. Estando as mulheres estabelecidas em direitos e buscando permanências nos setores tidos como masculinos, interrogamos: o que mudou? Sabemos que a ocupação por mulheres nesses espaços foi transformadora e desestabilizou papéis sociais e discursos culturais. Logo, como a Ciência e Tecnologia vem lidando com essa nova realidade? A partir dessas questões propomos problematizar sobre uma nova trajetória na reinvenção dos lugares sociais.

CAPÍTULO 2