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UM, DOIS, TRÊS NO PICADEIRO – A FIGURA DO CONTRA AUGUSTO NA

5. PEQUENO ITINERÁRIO DE PESQUISA OU ROTEIRO DE UMA

2.1. UM, DOIS, TRÊS NO PICADEIRO – A FIGURA DO CONTRA AUGUSTO NA

Reprilhadas e Entralhofas – um concerto para acabar com a tristeza17 estreou em março de 2010, na semana de comemoração ao Dia Internacional do Circo e do Teatro. É o segundo espetáculo da Cia. 2 em Cena criado a partir da pesquisa Laboratório de Palhaçaria. No palco, Alexsandro Silva, o Palhaço Risadinha, Arnaldo Rodrigues, o Nobre Brasão e Paula de Tássia, a Palhaça Carambola.

O enredo do espetáculo narra a saga de um trio de Palhaços, que ao descobrirem quanta tristeza há no mundo resolvem fazer um concerto, um espetáculo de Palhaçaria para amenizar as amarguras da vida. Missão impossível para nós, meros humanos, mas não para um trio de bobos e atrapalhados. A estrutura dramática do espetáculo serve como um pretexto para a apresentação dos números desenvolvidos para o espetáculo ou compilados do repertório clássico clownesco.

O espetáculo é dividido em duas partes: a primeira mostra o cotidiano do trio, as relações entre si e a descoberta da tristeza do mundo, bem como a ideia de criação do “concerto”; A segunda parte apresenta as reprises e entradas, os números cômicos apresentados pelos palhaços no picadeiro. Ao final, o trio descobre que há muita tristeza para pouco Palhaço, mas não desiste e segue mundo afora apresentando o seu concerto. Ao decidir espantar a tristeza, o Nobre Brasão acredita que a junção humor e música é a fórmula ideal, trazendo à cena a relação histórica entre os clowns/palhaços e a musicalidade. Tudo pode até ter sido bem planejado, mas na hora da execução dos números, função que fica a cargo de Carambola e Risadinha, tudo finda em muita palhaçada.

Em Reprilhadas e Entralhofas, a Companhia desenvolve uma dramaturgia a partir do trio cômico: O Clown Branco, o Contra-Augusto e o Augusto. Segundo Simon (1988), a criação de um terceiro tipo entre os cômicos circenses é atribuída, na história europeia dos clowns, aos Irmãos Fratellini, em 1909.

67 Imagem 10. Reprilhadas e Entralhofas. Foto de André Ramos.

Até aquela data, a comicidade no picadeiro circense era conduzida pelo binário: o Augusto e o Clown Branco, estabelecendo, claramente, a relação entre o dominado e o dominador. Foram os irmãos Fratellini que criaram o trio cômico formado pelos irmãos Paolo (Paul) que fazia um tipo Contra-Augusto, Valentino-Alberto (Albert) que fazia o Augusto e François, que personificava um Clown Branco.

Bolognesi afirma que “o Contra-Augusto se posta entre os dois extremos: a sublimidade, a delicadeza, a inteligência e o autoritarismo do Branco e o grotesco, a rudeza, a tolice, a ingenuidade e a subordinação do Augusto” (BOLOGNESI, 2013, p.89).

Carambola, Palhaça criada pela atriz Paula de Tássia, é uma típica Contra-Augusta. Ela apresenta a subversão do Augusto e a esperteza do Branco, dialoga tanto com o Risadinha, seu parceiro e bode expiatório em muitas trapalhadas, como com o Nobre Brasão, a quem ela adora ludibriar. Ela gosta do jogo, de estar na brincadeira, seja com o patrão ou com o outro empregado. Quando indagada sobre a tipologia da sua cômica, a atriz afirma...

Contra-Augusto. Embora, para mim o que encaixa o palhaço nessas denominações é a predominância de alguns aspectos de personalidades que atendem as especificidades de cada tipologia,

68 mas o palhaço sempre estarão para o jogo e dependendo deste essas características aumentam ou diminuem muito (TASSIA, 2019). Carambola é uma dessas meninas que, para ser aceita entre os meninos, igualava-se a eles e é tão travessa quanto. Afinal, independente do gênero, criança é criança e foge à regra dos padrões sociais pré-estabelecidos de como homens e mulheres devem ser comportar. A atriz afirma, em entrevista, que era assim quando criança, adorava brincar e andar sem camisa, subir em árvores, jogar futebol com os meninos. Paula interpreta a sua persona-criança na Carambola, e ao lado de dois tipos fortes de Palhaços afirma-se como uma mulher cômica e reivindica o seu espaço no picadeiro, trazendo um humor peculiar do universo feminino. Sobre a composição de sua Palhaça, a cômica afirma que toma como referência...

A criança que fui, e algumas palhaças e personagens que faziam parte de mim como mulher e artista, entre elas: Catirina (personagem da dupla Mateus e Catirina) e uma palhaça do teatro de Anônimos que não lembro o nome dela, mas ela representava também o meu desejo de não se encaixar nos padrões normativos de gênero e eu até ouvia alguns comentários de amigos sobre Carambola, que ela era feia, maloqueira, quase um menino etc. e quando eu ouvia isso pensava: estou no caminho certo. Eu não queria parecer uma palhaça que representassem uma criança ideal, mas uma palhaça que representasse uma criança real, pelo menos a criança que fui e tenho em mim, pois somos ela quando saímos dos padrões sociais de comportamentos esperados para um adulto e principalmente para uma mulher adulta (TASSIA,2019).

Sem paciência para muito embelezamento, Carambola anda meio desajeitada, duas flores no cabelo para esconder a falta de tempo e cuidados com as madeixas, uma blusa florida e uma saia de chita que usa abaixo dos seios, fugindo da lógica, usa um sapato masculino que revela o lado “menino travesso” da Palhaça. Mas porque o nome CARAMBOLA? Indaguei.

Eu queria um nome que não fosse muito esperado para uma palhaça, que este nome tivesse a ver com minha personalidade, pois essa palhaça tem muito a ver com a criança que fui e que tenho em mim e a mulher que sou hoje, e quando escuto essa palavra me vem na cabeça travessura, brincadeira de moleque, menina fora dos patrões normativos de gênero etc. Então em casa fui escrevendo e dizendo em voz alta e com os olhos fechados várias palavras que poderiam me suscitar esses sentimentos e CARAMBOLA foi a palavra que mais me tocou (TASSIA,2019).

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O tipo desenvolvido pela atriz e cômica Paula de Tássia e apresentado por Albert Simon (1988) dialoga diretamente com o homem comum, o cidadão das grandes cidades. Se o Augusto representa a inocência e a incapacidade de adequação do homem camponês na vida urbana e o Branco personifica a aristocracia e sua relação de poder, o Contra-Augusto é o entremeio. Ele é matreiro, sabe lidar com as relações de poder e não se mostra totalmente submisso ao Branco, ao contrário, tenta ludibriá-lo, às vezes, e quase sempre, consegue. O Contra-Augusto herda do Augusto o gosto pela brincadeira, pela farra, pelo jogo e traz em si à esperteza do Branco, a capacidade de comandar, a ponto de, em sua ausência, ele tomar o Augusto como seu servo.

No Brasil, os Palhaços abandonaram as características dos clowns europeus e vemos prevalecer o tipo Contra-Augusto. É o pesquisador Mário Fernando Bolognesi que faz tal afirmação ao dizer que:

O caso brasileiro é exemplo dessa necessidade de relativização. Desde a passagem do século XIX ao XX, os palhaços escaparam da fixação tipológica e oscilaram com frequência entre os opostos apontados como definidores dos tipos originais da comicidade circense (BOLOGNESI, 2013, p.90).

Paula traz em sua persona cômica a mescla que origina o nosso cômico circense, as experiências do teatro popular, da personagem Catirina dos folguedos e características do Palhaço de picadeiro adquiridas pela atriz na pesquisa empreendida pela Cia.

Carambola foi acionada, gerada e parida nos nossos processos de ensaios, experimentos e desenvolvimento da pesquisa, e nossa pesquisa representava o que eu acredito enquanto Palhaça. Nossa pesquisa tem o Palhaço brasileiro como centro, nossas identidades culturais, nossas referências regionais no que concerne o brinquedo cultural singular e social (TASSIA, 2019).

A aquisição dessa figura clownesca é o mote principal para a montagem do Reprilhadas. Compreender, experimentar e vivenciar na cena o jogo em trio deu-nos outras possibilidades de interação entre os Palhaços, a descoberta de novos tempos, ritmos, da própria divisão da gag. Entendemos que o jogo em trio requer maturidade na cena, generosidade e um estado de prontidão diferente do jogo em dupla.

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Imagine um jogo de bolinha com dois jogadores, o tempo do mesmo é mais ágil, a triangulação entre o jogador um e dois estabelece-se muito mais rápido, a sintonia acontece com maior agilidade. Agora pensemos no mesmo jogo a três, e essa triangulação é duplicada exigindo outro tempo rítmico e mais sintonia entre os jogadores. A metáfora utilizada para diferenciar o jogo díade e tríade parte do jargão circense “um bom Palhaço não pode deixar a bolinha cair”, ouvi muito essa frase nas minhas andanças de picadeiro. Manter a bolinha é manter o ritmo da cena, do jogo, é estar de prontidão, estar inteiro, estar com o parceiro.

2.2. GAGS, REPRISES E ENTRADAS – BRINCADEIRAS DE PALHAÇO.