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3. SOBRE O MÉTODO DE TRABALHO

3.1. Um encontro de epistemologias

Diante deste cenário metodológico podemos lançar a ideia de que para percorrermos o caminho das investigações e descobertas aos quais nos propusemos, assumiremos uma posição

de que há um encontro de duas linhas epistemológicas regidas por distintas relações com a cientificidade, aquela que sustenta a prática da medicina moderna e a que embasa a psicanálise, enquanto clínica e teoria.

Uma possível comprovação dessa posição de encontro é a ideia de Moretto (2013) de que entre a Psicanálise a Medicina existe uma antinomia radical, ou seja, são saberes que operam suas clínicas de acordo com princípios opostos, um de acordo com o referencial dos processos psíquicos regidos pelo inconsciente e o outro com referencial na doença, respectivamente. No entanto, existe um encontro necessário desses saberes no campo da saúde, quando seus objetivos são cuidar do paciente que chega com o pedido de ajuda.

A respeito do contexto epistemológico da medicina, sabe-se que com o nascimento da clínica médica entre o final do século XVIII e o início do século XIX, o conhecimento desta disciplina deixa de ser calcado na descrição de casos, o que a caracterizava como uma medicina individual, para se tornar uma área de saber na qual existe a inclusão de uma metodologia de comparação de doenças e sintomas, possibilitando um novo modelo de hospital, e conferindo a existência de uma medicina social.

Nesse momento, segundo Foucault (1998),

não apenas mudaram o nome das doenças e os agrupamentos dos sintomas; variaram também os códigos perceptivos fundamentais que se aplicavam ao corpo dos doentes, ao campo dos objetos a que se dirigia a observação, às superfícies e profundidades que o olhar do médico percorria, todo o sistema de orientação desse olhar. (p. 57)

Formou-se um consenso de que a experiência clínica é derivada da observação controlada e continuada dos doentes, fazendo uma articulação entre os sintomas aparentes e as lesões orgânicas, informa Dunker (2011). Para estabelecer uma relação de confiança entre uma semiologia consistente e uma diagnóstica segura, os clínicos precisavam de um sistema classificatório universal que tivesse referência orgânica e a investigação sistemática das causas etiológicas, o que ainda não existia e passou a ser possível neste momento.

Foucault (1998) considera que para concretizar o alcance do saber e da verdade sobre as doenças, a clínica médica privilegiou, num primeiro momento, o ato de observar, descrever, catalogar e classificar os fenômenos patológicos. Essas atividades possibilitavam a formação de signos clínicos, que passavam a ser referência para a investigação dos sintomas e, consequentemente, para a nomeação dos diagnósticos.

O autor afirma que os avanços na tecnologia e o conhecimento fisiológico do corpo se constituíram integrados sob a forma de uma estrutura da clínica, a qual promove uma mudança epistemológica e destina ao médico dois lugares, aquele no qual ensina e aquele no qual examina os doentes, de modo que viverá o personagem, daquele que cuida e daquele que detém a palavra do mestre, concomitantemente.

Neste sentido, a partir das considerações de Dunker (2011), o clínico ouve o paciente, mas não ocupa um lugar de quem o escuta. Ele o ouve para comparar as informações passadas pelo doente a uma referência teórica anatomopatológica, que indica o signo da doença. Portanto, esse signo exclui o sujeito doente e faz com que o médico estabeleça e legitime a doença. Nas palavras do autor, “o signo representa alguma coisa para alguém, mas o que ele representa para o médico é diverso do que ele representa para o paciente”. (p. 406)

É neste contexto da clínica médica que surge a psicanálise no final do século XIX, uma vez que Freud parte de seus estudos no campo da neurologia para desenvolver o que ele acreditava ser uma ciência da natureza, que não se pretendia uma forma de conhecimento fechado e contradizia o ideal científico daquele século, o qual sustentava a necessidade de uma só verdade, portanto, uma só ciência e um só método.

Contrariamente, a história da ciência pode ser descrita como uma migração de paradigmas, que pode avançar também pelo que é abandonado e pelo que será então incorporado, não se unificando como uma teoria de conhecimento verdadeiro.

O texto “As Pulsões e seus destinos” de 1916 é conhecido como uma introdução de Freud da epistemologia da psicanálise. O autor afirma que

não é raro ouvirmos a exigência de que uma ciência deve ser edificada sobre conceitos fundamentais claros e bem definidos. Na realidade, nenhuma ciência começa com tais definições, nem mesmo as mais exatas. O verdadeiro início da atividade científica

está na descrição de fenômenos, que depois são agrupados, ordenados e relacionados entre si. (p. 52)

Essas palavras de Freud nos demonstram como ele pretendia equiparar a psicanálise com o funcionamento científico mais amplo da época, convocando uma metodologia que a posiciona diante de uma área de conhecimento tradicional, descrevendo fenômenos para sua posterior ordenação estrutural. No entanto, Dunker et al (2016) sugerem que, na realidade, a indeterminação, a ambiguidade ou a dúvida, são o início da investigação psicanalítica, fundamentos para seu percurso metodológico. Os autores afirmam que “a conceitografia psicanalítica: ela é ao mesmo tempo convencional e intuitiva, ela envolve descoberta e invenção” (p. 52).

Aguiar (2006) indica que a psicanálise se preocupa em se separar epistemologicamente da disciplina que se encontra mais próxima dela, a psicologia, e em se aproximar de disciplinas que aparentemente não encontrariam uma forma de conhecimento comum, como a sociologia, a antropologia. Nesse sentido, o corte epistemológico introduzido pela disciplina freudiana legitima uma nova relação com diversos saberes, uma vez que sabemos que Freud se interessava por diversos campos do conhecimento e acreditava que a própria psicanálise teria interesse nesses campos, na medida em que eles são parte constitutiva dela própria.

Podemos indicar que a posição epistemológica da psicanálise renuncia a qualquer concepção de homem e de mundo que se atrele a um pressuposto metafísico, ela sustenta uma ética que conta com a hipótese do inconsciente.

É fundamental ressaltarmos o fato de que podemos entender a psicanálise como um método de tratamento, um método de investigação, uma teoria e um discurso. Ou seja, a psicanálise não é uma visão de mundo porque ela se inclui na visão de mundo proposta pela ciência, mas aquela ciência que não se acredita um sistema completo. Em relação a isso, Dunker et al (2016) afirmam que o “critério de cientificidade, um critério que resiste ao tempo, não é o acúmulo triunfal de saber, mas o contrário, a capacidade de errar, de reinterpretar e criar problemas” (p. 23).

Os autores fazem referencia a Lacan ter demonstrado que a concepção de psicanálise é historicamente covariante com a concepção de ciência, ele sustentou uma tentativa de mudar o fundamento epistemológico da psicanálise das ciências da natureza, como almejava Freud, para

as ciências da linguagem. O psicanalista centra seu trabalho na linguagem e defende que os sintomas só podem deixar de existir em uma operação de linguagem, porque eles possuem estrutura de linguagem. Aqui podemos fazer alusão a máxima conhecida de Lacan, que sustenta o conhecimento da psicanálise: o inconsciente se estrutura como uma linguagem.

Em relação a isto e retomando o breve percurso histórico da clínica médica moderna no ocidente mencionado acima, podemos referir a psicanálise como uma experiência de cura, um conjunto de técnicas de palavra, mas inclusive um capítulo da história da clínica no ocidente, que subverte especificamente a clínica médica. Dunker et al (2016) indicam que esse movimento subversivo promove

a transposição do olhar como fundamento da perspectiva clínica na medicina, para a escuta, como fundamento da clínica psicanalítica. Com isso a semiologia psicanalítica deixa de se estruturar por referência às perturbações do organismo, (...) e passa a ser regulada pela semiologia como ciência geral da linguagem. (p.18)

Nos estudos diante desse tipo de saber, cada problema de pesquisa construirá uma forma única de se organizar metodologicamente, com um esforço para atingir seu campo de descoberta, não se orientando pela prática da produção de conhecimento das ciências objetivas. Aguiar (2006) nos conta que o pesquisador em psicanálise se percebe convocado a sempre sustentar a irredutibilidade da experiência analítica, tendo uma constituição como um campo epistemológico singular e autônomo em relação aos demais, tem sua metodologia compatível com sua racionalidade e suas problemáticas próprias.

Acreditamos que cada epistemologia se caracteriza por um discurso especifico da realidade e que cada área do conhecimento não dá conta sozinha do seu objeto. Nesse sentido, nossa pesquisa de doutorado se encontra em um campo de produção de conhecimento trans/interdisciplinar, está amparada pela psicanálise, fiel ao rigor de seus princípios, para propor um diálogo com o saber médico, na tentativa de atingir novos conhecimentos sobre o sofrimento daquele que adoece.

Com o propósito de trazer breves esclarecimentos sobre a organização da pesquisa proposta, descreve-se o plano estrutural do texto: a princípio foram descritos os primeiros

passos do nosso caminho de pesquisa; em seguida, explicitamos os objetivos geral e específicos e a apresentação do método utilizado para o alcance dos objetivos e suas trilhas epistemológicas; posteriormente, temos um capítulo dedicado ao estudo teórico e bibliográfico dos fundamentos do processo diagnóstico, estabelecemos um contexto histórico da construção do conhecimento sobre o diagnóstico moderno no campo do saber médico, para finalizarmos nossa linha de raciocínio alcançando os efeitos que o discurso médico, portanto as consequências deste saber, provocam na subjetividade. Seguido a isso, construímos um capítulo fundamental, que apresenta e defende a tese da nossa pesquisa ao estabelecer a diferenciação entre três tempos distintos da relação do individuo com seu diagnóstico que chamamos revelação, identificação e nomeação, demarcando suas diferenças conceituais e seus usos na pesquisa. Para finalizar a arquitetura do plano de pesquisa, estruturamos a exposição das vinhetas clínicas e apresentamos o caso clínico, ambos articulados à teoria lacaniana. Esse trabalho traz à tona, por meio do discurso dos pacientes, a relevância real da temática pesquisada. Além do mais, para representar algumas considerações finais, refletimos sobre os elos entre os saberes médico e psicanalítico e costuramos o que pensamos ser uma proposta psicanalítica para o cuidado dos sujeitos com essa experiência, com base nos alcances de um possível diálogo nas instituições de saúde.

Assim como a língua é uma relação, a doença é epidêmica : nós vivemos mergulhados na doença e transmitimos a doença transmitindo a língua : a língua é o vírus dessa doença que chamamos homem. (Ferdinando Camon, 1984, p.164 )

4. UMA BREVE RETROSPECTIVA DA HISTÓRIA DO DIAGNÓSTICO MÉDICO E

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