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5. CAPÍTULO IV – EM BUSCA DE UM CRITÉRIO GENÉRICO DE

5.3. UM ESBOÇO DE SOLUÇÃO

Seria muita pretensão, de nossa parte, apresentar a solução para o problema da reparação danos causados por atividade de riscos via cláusula geral de responsabilidade objetiva genérica. Esse é um problema com o qual os principais pesquisadores da área ainda se ocupam seriamente. As opiniões doutrinárias e jurisprudenciais a respeito chegam a colidir de forma irremediável. Mas podemos oferecer algumas pistas com base em nossa pesquisa que, eventualmente, possam ajudar no encaminhamento das discussões.

Primeiro, queremos destacar que não parece razoável deixar que a definição de risco dependa das idiossincrasias do julgador. É notório que o uso

retórico das palavras pode conduzir o debate a aporias desnecessárias. Risco é um conceito usado pela política, pela economia, pela matemática, pela geografia, enfim, por muitas disciplinas científicas e com sentidos diferenciados. Talvez seja o caso de transformar o conceito de risco em um termo técnico do direito, definido em lei. Alguma coisa do tipo: “por risco entende-se...” ou, por “atividade de risco entende-se...”. Do contrário, parece inevitável que a confusão doutrinária e jurisprudencial tenha que continuar. Não que a cláusula deva deixar de ser geral, pelo contrário, deve continuar aberta, mas deve-se buscar formulações que limitem a inflação de responsabilidade objetiva, para usar um termo de Ricoeur.

Risco, repetimos, é um conceito usado por diversas ciências e de diversas formas e seria prolixo, aqui, enumerar as definições possíveis. Por exemplo, a geógrafa Yvette Veyret define risco em oposição à incerteza. Risco, segundo Veyret, é passível de cálculo probabilístico, a incerteza não. Ocorre que a própria autora reconhece que “risco é uma construção social” (VEYRET, 2007, p. 23). Por isso mesmo, ele existe em relação a um indivíduo, a um grupo social ou profissional, enfim, a uma comunidade que o apreende por meio de representações mentais e com ele convive por meio de determinadas práticas. Se pensarmos nas comunidades acadêmicas: a economia, as engenharias, a geografia, enfim, todas essas comunidades de pesquisadores trabalham com conceitos de risco, com uma ênfase peculiar. Não que o direito deva ter uma ênfase peculiar, no mesmo sentido da geografia, mas, pelo menos, um critério mais claro de responsabilização independente de culpa, tal como a sustentada pelo parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002. Por exemplo, da forma como está redigido o referido dispositivo legal não sabemos se dirigir um carro é uma atividade que, por sua natureza, implica risco para os direitos de outrem.

É preciso, sem dúvida, que haja uma cláusula genérica de responsabilidade civil objetiva, mas os contornos da abrangência não podem ser ilimitados. Além disso, em se tratando dos casos difíceis, talvez sem precedentes, reiteramos que a investigação ex-post é uma via adequada. Conforme destaca Schamps, a doutrina e a jurisprudência não puderam ser traduzidas em confiáveis parâmetros de graduação de periculosidade e isso implica dizer que é possível

que, diante do caso concreto, o magistrado fique em uma situação desconfortável. Em circunstâncias em que a certeza completa é rara, ou que as dúvidas são sempre possíveis no que se refere ao estabelecimento do nexo causal, a jurisprudência italiana, segundo Schamps, tem seguido o padrão da verossimilhança plausível. Aqui, queremos lembrar as convicções bem- ponderadas de Rawls, tal como interpretadas por Ricoeur.

Cabe destacar, além disso, que o desenvolvimento atual dos seguros privados e sociais tem sido apreciado com grande aceitação nos regimes contemporâneos de responsabilidade objetiva. O doutrinador italiano Trimarchi (Cf. HIRONAKA, 2005, p. 317), sob influência da teoria do risco de empresa, cujo fundamento são as teorias econômicas de distribuição dos custos e benefícios, concebeu como princípio geral da responsabilidade objetiva não na ótica de a riqueza obriga, mas na ótica de o seguro obriga. Nesse ponto, deve- se destacar que a ênfase contemporânea na responsabilidade objetiva foi, em seus primórdios, muito influenciada por defensores da idéia da richesse obligue (a riqueza obriga), pela qual a vítima deva ser indenizada por aquele que tem mais recursos. Por influência de Trimarchi, contudo, tem tido lugar a releitura desse mesmo princípio reconstruído em outros termos, isto é, em termos de assurance obligue (o seguro exige). Por isso mesmo, o assunto da generalização do mecanismo dos seguros privados ou sociais, no grande sistema da responsabilidade civil, ganhou espaço robusto, a ponto de receber referência constitucional.

Não queremos ser tão contundentes quanto Trimarchi, e reduzir a ideia de responsabilidade objetiva genérica a um capítulo da análise econômica do direito. Mas a ideia de uma sociedade amparada por seguros está presente, curiosamente, na ficção de Dworkin, descrita em A virtude soberana, dos náufragos que, em uma ilha deserta, são forçados a construir uma nova comunidade política. A ideia do seguro tenta corrigir possíveis desvios do ideal da igualdade proposto por Dworkin. O pensador americano está preocupado com o fato de que a igualdade inicial não seja suficiente para uma proposta de uma comunidade política que tenha igual consideração para com todos os seus membros. É preciso se pensar nas possibilidades de catástrofes naturais, acidentes, doenças. Enfim, Dworkin sugere que a ideia de um mercado se

seguros pode ser uma via possível para os desvios da igualdade de recursos. Contudo, trata-se apenas de uma sugestão teórica. Caberia, aqui, uma elaboração bem mais complexa se quisermos pensar na exequibilidade da proposta. Até porque, certamente, os seguros não funcionam hoje da forma concebida por Dworkin. Além disso, segundo Ricoeur, os problemas do direito privado não pode ser resolvidos, meramente, por um mercado de seguros.

Por fim, queremos reiterar a reflexão de Ricoeur, para quem as situações de injustiça apresentam-se de forma mais clara e evidente, que o conceito de Justiça. Não precisamos esperar uma definição acabada do que seja o Justo, para impedir o sofrimento humano e a negação de direitos. É preciso se pensar, ainda à maneira kantiana, na não-instrumentalização da pessoa humana, e impedir que o progresso tecnológico se dê em função de graves custos humanos e sociais, e, por que não dizer, em função da degradação moral das sociedades tecnológicas contemporâneas.