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Um estudo de caso: a lei da Ficha Limpa, combate à corrupção,

CAPÍTULO 5. ENTRE A LEITURA MORAL E O PRAGMATISMO: UM ESTUDO DE

5.1. Um estudo de caso: a lei da Ficha Limpa, combate à corrupção,

Em 07 de junho de 2010 foi publicada a Lei Complementar nº 135, batizada popularmente de Lei da Ficha Limpa, que alterou a Lei Complementar nº64/90 para prever novas hipóteses de inelegibilidade, bem como alterar o período

93 de afastamento das urnas para aqueles que nela se enquadrarem para oito anos. A lei fortalece as punições aplicadas aos cidadãos e candidatos que violarem a ética das eleições ou que tenham contra si condenações na esfera eleitoral, administrativa ou criminal. Nasceu de projeto de lei de iniciativa popular encabeçada pelo Movimento Nacional de Combate à Corrupção Eleitora (MCCE) por meio da assinatura de cerca 1,3 milhão de brasileiros51.

A lei da Ficha Limpa entrou em vigor na data de sua publicação e assim ficou estabelecida a dúvida. O art. 16 da Constituição Federal disciplina o princípio da anterioridade eleitoral, pelo qual, uma lei eleitoral que modifique o processo eleitoral não poderá ser aplicada às eleições que ocorram até um ano de sua vigência. Antes mesmo da sanção da lei da Ficha Limpa, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foi instado a responder a duas consultas sobre a sua aplicabilidade para as próximas eleições. Em agosto de 2010, o TSE decidiu que a lei seria aplicável às eleições gerais daquele ano52.

Apesar da latente controvérsia constitucional, somente às vésperas do pleito chegou ao Supremo Tribunal Federal o primeiro processo envolvendo a lei da Ficha Limpa, em que o candidato ao governo do Distrito Federal teve sua candidatura recusada pelo TSE em virtude de renúncia ao mandato de senador em

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Fonte: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/09/29/lei-da-ficha-limpa-sera-aplicada-pela- primeira-vez-em-eleicao-geral. Acesso em nov 2014.

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Afirmou o TSE na primeira consulta, em 10 de junho de 2010, que a LC n° 35/2010 seria aplicada nas Eleições 2010, afastando a interpretação que levaria a incidência do art. 16 da Constituição. Caso entendesse incidente este dispositivo constitucional, as alterações na Lei de Inelegibilidades só seriam aplicáveis para as eleições que ocorressem um ano após a sua publicação. Além deste ponto, o TSE respondeu a Consulta n° 114709, afirmando que a ‘incidência da nova lei a casos pretéritos não diz respeito à retroatividade de norma eleitoral, mas, sim, à sua aplicação aos pedidos de registro de candidatura futuros, posteriores à entrada em vigor’, conforme voto do ministro Arnaldo Versiani acolhido por maioria pelo Tribunal Superior Eleitoral.” Para mais ver: LAGO, Rodrigo Pires Ferreira. A novela da Ficha Limpa. Os Constitucionalistas. Brasília. 15 fev. 2012. Disponivel em: http://www.osconstitucionalistas.com.br/a-novela-da-ficha-limpa. Acesso em: 10 fev. 2013..

94 2007 para escapar de processo de cassação por quebra de decoro parlamentar. A decisão no Recurso Extraordinário nº 630.147/DF tornou-se mais complexa após o empate em 5x5 no Plenário e ausência do 11º Ministro, uma vez que ainda não havia sido nomeado substituto para a cadeira vaga após aposentadoria do Ministro Eros Graus. Diante do impasse, o STF “decidiu não decidir”, suspendendo o julgamento até a nomeação de um novo ministro. Roriz, entretanto, renunciou à candidatura, o que levou a extinção do processo, sem julgamento do mérito, por perda de objeto.

Antes ainda da escolha do novo ministro para vaga de Eros Graus, mais outro recurso chegou ao STF, com a mesma fundamentação jurídica do caso Roriz: o candidato Jader Barbalho (RE 631.102/PA) teve sua candidatura barrada pelo TSE pela aplicação da Lei da Ficha Limpa às Eleições 2010. Para Barbalho, o STF se viu novamente diante do empate, e decidiu aplicando, por analogia, o art. 205, parágrafo único, inciso II do seu Regulamento Interno (RISTF), pela permanência da decisão do TSE. O STF, nesse caso, decidiu sem aprofundar o debate e sem decidir sobre a aplicabilidade da referida lei face ao art. 16 da Constituição Federal.

Somente em março de 2011, com a posse do Ministro Luiz Fux para a 11ª cadeira, o STF decidiu pela não aplicação da lei da Ficha Limpa para as eleições gerais de 2010. Destacamos aqui o RE 633.703/MG, do candidato à deputado federal Leonídio Bouças, que teve seu registro negado em razão de condenação por improbidade administrativa.

Passada essa primeira controvérsia, em fevereiro de 2012, o STF julgou conjuntamente três ações de controle de constitucionalidade envolvendo a lei

95 da Ficha Limpa: a) ADC n° 29, proposta pelo Partido Popular Socialista – PPS; b) ADC n° 30, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil; e c) ADI 4578 proposta pela Confederação Nacional das Profissões Liberais. Dentre as várias questões levantadas, se destaca o debate sobre a aplicação das novas inelegibilidades a fatos pretéritos à vigência da lei. Decidiu-se pela constitucionalidade das hipóteses de inelegibilidade questionadas, bem como pela aplicabilidade da nova lei a fatos ocorridos antes do início da sua vigência.

O objetivo dessa pesquisa de mestrado é testar os argumentos levantados pelos ministros nos julgados acima citados à luz da teoria da integridade e da abordagem pragmática. Nossa preocupação não é necessariamente com o resultado, e sim com a argumentação adotada no que diz respeito à aplicabilidade da lei da Ficha Limpa nas Eleições 2010 e a irretroatividade dessas novas hipóteses de inelegibilidades. Por se tratar de um estudo focado na teoria da decisão judicial, queremos analisar, através do estudo de caso, os possíveis resultados na adoção de duas posturas interpretativas diversas, verificando o implemento democrático realizado pela integridade e pelo pragmatismo.

É interessante esclarecer que sob os casos paira um tema recorrente na sociedade brasileira: o combate à corrupção. Apesar do apelo popular que o debate tem, precisamos analisar o fenômeno pela ótica que nos compete, qual seja, a ótica jurídica. Como bem alerta Fernando Filgueiras, a característica essencial da corrupção é o fato de ela ser um juízo moral formulado por uma determinada comunidade contra um conjunto de ações específicas que degeneram o interesse público. É um conceito normativamente dependente uma vez que representa juízos emitidos contra a legitimidade de atores e instituições a partir de normas pressupostas que definem o conteúdo do interesse público. Conforme exemplifica o

96 autor, o desvio de recursos públicos é uma ação específica, de natureza própria, que ganha status de corrupção a partir do momento que subverte normas pressupostas do interesse público. Logo, corrupção traz em si um elemento jurídico indissociável, sendo um juízo moral dependente do processo de justificação e aplicação de normas no direito. A correção e probidade que se espera dos agentes públicos liga- se a ideia de justiça, fortalecendo a comunidade de princípios que serve de pressuposto para essa realização (FILGUEIRAS, 2013, p.56-57).

No próximo tópico iremos descrever os principais argumentos formulados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal nos seguintes processos: RE 630.147/DF, RE 631.102/PA, RE 633.703/MG, ADC 29 e 30 e ADI 4578. Nosso foco aqui é o juízo moral sobre a corrupção a partir da questão jurídica de se aplicar ou não a Lei da ficha Limpa para casos ocorridos antes de sua vigência e para as eleições gerais do ano de publicação. Num segundo momento, testaremos essas argumentações à luz das teorias de Richard Posner e Ronald Dworkin.