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2 UM OLHAR HISTÓRICO

2.1 UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO

À medida que a Revolução Industrial evidenciava, intencionalmente ou não, o papel do progresso tecnológico no modo de produção e vida da sociedade ocidental, o tema foi encontrando mais espaço e interesse entre o público dos mais diversos tipos de entretenimento. Foi no encontro com o fantástico e com a Literatura de Aventura que os temas da Tecnologia e da Ciência encontraram um nicho propício para seu desenvolvimento fora do contexto da pesquisa científica.

Ao lado de contos de faroeste, vampiros, aventuras e guerras, as histórias de Literatura Especulativa, que exploravam a possibilidade de outros mundos, começaram a especializar-se em temas como alienígenas, viagens espaciais e futuro. Os textos sobre o fantástico são mais antigos que a Ficção Científica e, para Roberts (2006, p. 38), não podemos realmente identificar textos de Ficção Científica anteriores a 1.600 d.C. É nesse período que as explicações teológicas e místicas começam a, com o advento da Ciência moderna, ceder algum espaço na Literatura para um mundo racionalizado e empírico.

O Iluminismo na Europa do século XVIII exigiu que todos os costumes e instituições se justificassem como úteis para a humanidade. Sob o impacto dessa demanda, a ciência e a tecnologia se tornaram a base para as novas crenças. A cultura foi reformada gradualmente para ser o que pensamos como racional. Por consequência, a tecnologia tornou-se onipresente na vida cotidiana e os modos técnicos de pensamento passaram a predominar acima de todos os outros. (FEENBERG, 2010, p. 51).

Nessa virada epistemológica, a Ficção Científica começa a se aglutinar como gênero distinto das demais variantes fantásticas, ainda que compartilhando elementos estilísticos. Um exemplo da mudança de paradigma são os contos sobre viagens lunares. Claeys (2013, p. 164) comenta que o tema das viagens lunares era recorrente, mas foi com o advento do telescópio que os mitos lunares deram lugar a “verdades científicas”6. Para Roberts (2006, p. 39), é uma distorção chamar obras

sobre a lua ou viagens espaciais anteriores a 1600 de Ficção Científica, porque elas foram “concebidas puramente no reino religioso, uma série de esferas geocêntricas

6 Roberts (2006, p. 38)(2006, p. 38) cita várias obras anteriores a 1600 a trabalhar com o tema:

Somnium Scipionis (O sonho do escorpião) de Cícero (51 a.C), kuklô tês selênês (O círculo da lua) de Plutarco (80 d.C.), Alêthês História (A verdadeira história) de Lucian de Samo (170 d.C.) e Orlando furioso de Ludovico Ariosto (1534).

das quais apenas a mais baixa (nossa) era sujeita a mudança, e tudo acima do nível da Lua era incorruptível, eterno e divino”.

Quando Galileu aponta seu telescópio para a Lua e descreve suas montanhas e vales, a lua é derrubada da esfera divina e reinventada na esfera material. Na descoberta está simbolizada uma mudança epistemológica essencial para o advento da Ficção Científica, a Teologia dá lugar à Física. Novas terras e novos conhecimentos confluem no texto quase poético de Galileu, como nota Parrinder (2000, p. 4). Nas palavras de Claeys (2013, p. 163), “no mundo moderno, a especulação teológica foi, de modo geral, substituída pela especulação sobre Ciência e Tecnologia”.

O próprio Asimov (1981, p. 17–20), ao especular sobre o porquê de a Ficção Científica tomar mais peso culturalmente conforme o mundo é transformado pela nova Ciência, afirma que ao longo da história mudanças ocorriam de forma lenta e gradual, à exceção de grandes eventos históricos como guerras ou súbitas trocas de governantes. De modo geral, o modo de vida e a realidade eram percebidos como estáticos. O mundo era imutável e conhecido, a dificuldade de grandes viagens, de ver algo diferente de sua própria realidade e as certezas inabaláveis da religião reafirmavam a familiaridade de tudo que se conhecia. Nesse mundo, o outro era demoníaco, era uma aparição inexplicável a ser expurgada, pois não encontrava parâmetros em nada que era certo e imutável.

Com a Revolução Industrial, o mundo também se comprimia e o confronto com novas realidades era cada vez mais comum a um número crescente de pessoas. As estradas de ferro combinadas com os trens movidos a vapor desenvolvidos por George Stephenson tornavam possíveis viagens antes logisticamente impensáveis. Outras invenções, como o tear mecânico do clérigo anglicano Edmund Cartwright, reduziam drasticamente o tempo de trabalho necessário à produção de tecidos, invenção que tornava o produto mais acessível, mas também desempregava os artesãos que antes controlavam todo o processo (SANTOS, 2005, p. 137–139).

Foi necessária uma intensa campanha pedagógica para universalizar os valores industriais. Como parte dessa, estratégia podemos citar as exposições universais, feiras grandiosas, que tiveram seu auge entre 1851 e 1914, em que cada país participante procurava celebrar seu desenvolvimento industrial e econômico (PESAVENTO, 1997, p. 43–55). As feiras reuniam o estado da arte da Tecnologia e promoviam um ambiente de espetáculo para os participantes com o objetivo de produzir encantamento e mistificação da Tecnologia de modo que “parecia que a

humanidade havia atingido uma etapa dourada, em que tudo era possível mediante um prodigioso progresso técnico” (PESAVENTO, 1997, p. 77). Parecia que o visitante poderia levar um pouco daquela magia para casa ao entregar-se à revolução social prometida pela indústria7.

Até no Brasil havia uma grande campanha em favor dos valores industriais. Queluz e Queluz nota que as elites procuravam difundir uma nova cultura tecnológica, na qual estava presente a própria noção de homem enquanto máquina, e tinham um papel central no processo “as escolas, as novas tecnologias, as próprias cidades, as exposições, as mídias” (QUELUZ; QUELUZ, 2015, p. 38):

Para concretizar-se a modernização conservadora do país – o progresso da ordem – era necessário civilizar-se, estar em ligação direta com o mercado internacional. É neste contexto que se compreende a ênfase da participação do Brasil nas Exposições Universais, as reformas urbanas facilitadoras da circulação de mercadorias e a necessidade de estar atualizado com as inovações técnicas do período (ferrovias, telégrafos, telefones, gramofones, luz elétrica, bondes elétricos, cinematógrafos). (QUELUZ; QUELUZ, 2015, p. 37–38).

Os instrumentos de difusão construíam a idealização de uma sociedade urbano-industrial, ligando passado, presente e futuro, por um conjunto de símbolos hegemônicos (QUELUZ; QUELUZ, 2015, p. 38). Para Pesavento (1997, p. 46), o homem do século XIX tinha o futuro como uma conquista assegurada pelo progresso tecnológico ilimitado. Se até então o presente era uma repetição eterna de um passado idealizado pelo simbólico da sociedade, agora este era uma preparação, um estágio para se alcançar um futuro grandioso. Um novo conjunto simbólico dava à humanidade os instrumentos para construir seu presente não mais com os olhos no passado, mas voltada para uma visão de futuro.

Segundo Fanini, a propagação de uma nova ordem social no contexto europeu, que abria espaço a pluralidade se refletia na própria linguagem. Todas essas transformações e mudanças na percepção e concepção social da realidade são integradas discursivamente não apenas nos temas e motivos da literatura, mas em sua própria natureza discursiva.

O contexto europeu, sobretudo do capitalismo mercantilista, da queda das monarquias absolutistas, das grandes navegações, do colonialismo, das forças da ciência e tecnologia que adentram o universo da produção material e o âmbito das ideias, propagando uma nova ordem social, afastando-se da

7 Em um artigo orginalmente publicado em 1953, Asimov (1971, p. 290) defendia que era papel da

Ficção Científica acostumar seus leitores à inevitabilidade e necessidade da contínua transformação para que não se opusessem ou fossem cegamente levados.

escolástica e da tradição religiosa, propicia um estado social mais plural e de embate. Forças centrífugas rompem o poder das forças centrípetas anteriores. Esse dinamismo econômico, político e social também repercute no reino da linguagem, que incorpora essa multiplicidade e nova ordem revolucionária. A ordem liberal-burguesa se instaura, derrubando a ordem anterior no terreno tanto econômico quanto das ideias. (FANINI, 2013, p. 27).

O mundo que aparentava ser estático passou a se transformar rapidamente, tanto por uma mudança real no modo de produção quanto na percepção dessa mudança, graças à intensa campanha de difusão dos valores industriais. Se antes uma pessoa nascia, vivia e morria conhecendo apenas a sua realidade, o mundo ao qual estava circunscrita, fisicamente e temporalmente, agora, nesse novo mundo mediado pela Ciência e pela Tecnologia, a transformação da realidade material e dos valores culturais era uma promessa certa, “eventualmente, a taxa de mudança, e a extensão do efeito da mudança na sociedade tornou-se grande o suficiente para ser detectado no tempo de vida de uma pessoa” (ASIMOV, 1981, p. 18)8.

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