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PROBLEMATIZANDO A NOÇÃO DE FRACASSO ESCOLAR

1. UM NOVO TERRITÓRIO DA INFÂNCIA: a criança a corrigir

Monstro banalizado e empalidecido, o anormal do século XIX é também um descendente desses incorrigíveis que apareceram à margem das modernas

técnicas de “disciplinamento”127

A constituição dos discursos sobre as crianças com trajetórias escolares que se ca- racterizam por um conjunto de experiências cuja rentabilidade, segundo expectativas escola- res são significadas no sentido de uma negatividade ─ e aqui, particularmente os discursos sobre o fracasso escolar ─ pode ser buscada, em termos de seus começos,no próprio surgi- mento das ciências humanas e nos modos históricos de subjetivação dos seres humanos. Diz Foucault que “o limiar de nossa modernidade não está situado no momento em que se preten- deu aplicar ao estudo do homem métodos objetivos, mas no dia em que se constituiu um du- plo empírico-transcendental a que se chamou homem”.128

Essa transformação está ligada às mudanças na nova ordem constituída a partir da modernidade, quando o homem se constitui em objeto e sujeito do conhecimento; ou, melhor dizendo, quando ocorreu o surgimento do homem, quando o mesmo deixa de ser mero espec- tador do mundo, ou não quer apenas entender os objetos do mundo, mas a si mesmo. Quando, no seu envolvimento com os próprios objetos que quer conhecer, sabe que os conteúdos- objetos de seu saber lhes são exteriores “e mais velhos que seu nascimento [que] antecipam- no, vergam-no com toda sua solidez e o atravessam como se ele não fosse nada mais do que

127 FOUCAULT, Michel. Os anormais. In: FOUCAULT, 1997e. 128 FOUCAULT, 2002a, p. 439 (grifos do autor).

um objeto da natureza [...] A finitude do homem se anuncia ─ e de uma forma imperiosa ─ na positividade do saber”.129

Nesse caldo cultural de mudanças político-sociais e nas formas de sociabilidade, dois acontecimentos importantes ligados à história da invenção do homem são fundamentais para a presente análise: refiro-me ao domínio da anomalia, à trajetória genealógica do homem anormal ─ ou como o homem anormal é constituído nas práticas e nos saberes do século XVI- I, tendo como elementos ou figuras articuladoras o “monstro”, “o indivíduo a ser corrigido” e o “masturbador”─ e o internamento. Para o interesse dessa Tese, em relação ao domínio da anomalia, discutirei apenas a segunda figura, ou seja, o “indivíduo a ser corrigido” e o seu sucedâneo, o anormal, o qual é o correlato secular, por assim dizer, da criança com problema escolar.130

O campo de aparecimento no século XVIII do “individuo a ser corrigido”, ou o seu contexto de referência é a família “no exercício de seu poder interno ou na gestão da sua economia; ou, no máximo, é a família no jogo conflituoso com as instituições que lhe são vizinhas ou que a apóiam [...] a escola, a oficina, a rua, o bairro, a paróquia, a igreja, a polícia, etc”.131 Esse “indivíduo a corrigir” está no limite da indizibilidade: é difícil determiná-lo por-

que ele está muito próximo da regra e seu aparecimento é muito freqüente; ele é inassimilável ao sistema normativo de educação.

Trazendo essas reflexões para a análise da origem da preocupação com essa espé- cie particular de anomalia, a criança com problemas escolares ou da constituição do lugar de aluno fracassado, como o tem tratado os discursos sobre o fracasso escolar, o sujeito a ser corrigido assim se apresenta quando “fracassaram todas as técnicas, todos os procedimentos, todos os investimentos familiares e corriqueiros de educação pelos quais se pode ter tentado corrigi-lo”.132

A visão do aluno com problemas escolares como “anormal”, essa sua condição e- xige a intervenção de novas tecnologias de reeducação, de sobrecorreção: novas práticas de educação institucional na família, na escola e, antes, e junto com elas, o dispositivo tecnológi- co constituído pelo saber científico. O indivíduo anormal do século XIX é forjado, é produzi- do a partir do eixo, do jogo de incorrigibilidade e de corrigibilidade que constitui o indivíduo

129 FOUCAULT, 2002a, p. 432.

130 Para maior detalhamento acerca dos três elementos que configuram a anomalia, ver FOUCAULT, Michel. Os

anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002c, ─ sobretudo as página 69-100. E sobre os anormais, mas em

uma outra perspectiva de análise, consultar ALVAREZ-URIA, Fernando & VARELA, Julia. Arqueologia de

la escuela. Madrid: La Piqueta, 1991, p. 209-234.

131 FOUCAULT, 2002c, p. 72. 132 Ibidem, p. 73.

a ser corrigido do século XVIII:[...] “um incorrigível que vai ser posto no centro de uma apa- relhagem de correção [...] ele é marcado [o indivíduo anormal] por esse segredo comum e singular, que é a etiologia geral e universal das piores singularidades”.133

Diferente das sociedades de soberania da Idade Clássica, nas quais era a interdição jurídica que (parcialmente) desqualificava os indivíduos como sujeitos de direito, na Moder- nidade vai haver uma transposição desse contexto, uma descontinuidade em relação aos pro- cedimentos de atuação sobre o indivíduo; a sua codificação como sujeito vai se dar por outras vias: pelo submetimento a um “conjunto de técnicas e de procedimentos mediante os quais se tratará de disciplinar os que resistem ao disciplinamento e de corrigir os incorrigíveis”.134

O individuo a corrigir nasce com a instauração das técnicas de disciplinamento ─ primeiro nas escolas e depois nas famílias: “os novos procedimentos de disciplinamento do corpo, do comportamento, das aptidões, abrem o problema dos que escapam dessa normativi- dade que não é mais a soberania da lei”.135 Para Foucault, a institucionalização do interna-

mento no século XVIII foi o meio termo, a fórmula intermediária entre as formas de controle das sociedades de soberania e os procedimentos de correção. O internamento se constitui em uma tecnologia singular de governo dos indivíduos que se legitima a partir da “justificativa da necessidade de corrigir, de melhorar, de conduzir à resipiscência, de fazer voltar aos “bons sentimentos”.136

A instituição do espaço fechado representado pela escola ocorreu em finais do sé- culo XVII, com a separação da criança dos adultos, quando a aprendizagem deixa de ser a forma privilegiada de educação.137 Como as prostitutas, os mendigos e os loucos, as crianças a

partir de então passam a ser recolhidas em instituições fechadas: os albergues, as casas de misericórdia, os hospitais, os seminários e no espaço da escola e dos colégios, “uma quarente- na física e moral”; espaço fechado de disciplinamento e governo da infância, sucedâneo do convento, ─ espaço de regulação e transformação da personalidade dos noviços em bons cris-

133 FOUCAULT, 2002c, p. 73-75. 134 Ibidem, p. 415.

135 FOUCAULT, Loc. cit.

136 Esses espaços de internamento não eram homogêneos quanto à sua função e “pacientesl” que atendiam. A

percepção de uma maior ou menor “qualidade” dos educandos, dependendo da posição que ocupavam no es- paço social, era determinante das diferenças nos modos de disciplinamento e de ensino. (Ibidem, p. 415, gri- fos do autor).

137 Para maior compreensão sobre o movimento que veio a desembocar na Institución Libre de Enseñanza e suas

principais características, consultar ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. De armazém a campo cultivável: a instrução e a formação como diferentes formas de aprendizagem e como diferentes relações com o saber e com a leitura, produzindo subjetividades e sujeitos outros. Barcelona, 2000 (mimeo).

tãos, afastando-os dos perigos mundanos dos prazeres, dos “pecados da carne”─ as institui- ções fechadas são espaços por excelência da correção e instrução das crianças e dos jovens.138

É assim que, a partir de então, estarão circularmente ligados a novas instâncias de poder e de saber a invenção de diferentes instituições corretivas, e, com elas, novas categorias de indivíduos a serem “cuidados”, cercados por tecnologias de disciplinamento, sobretudo os novos saberes das ciências modernas. É a formação de uma “sensibilidade social” em meados do século XVII, que faz surgir uma preocupação com a população e sua assistência: “a con- cepção de população se transforma, passando a ser compreendida como fonte econômica e social da maior relevância, devendo, portanto, ser observada para tornar-se organizada e pro- dutiva”.139 Emerge uma nova sensibilidade e visibilidade para os problemas econômicos como

o desemprego, e o interesse para com os desocupados, os famintos, mendigos e desregrados. São essas condições de possibilidade político-social e o que representavam de perigo para a cidade que tornaram necessárias e possíveis as instituições de internamento.

São os discursos das ciências humanas que vão circunscrever, que vão produzir esses indivíduos, que vão subjetivá-los, esquadrinhá-los para discipliná-los. Esse foi um pro- cesso lento, mas produtor, através do qual se deu o nascimento técnico-institucional de outras anomalias, de outros desvios da norma, ao quais era preciso ser corrigidos. E, juntos, os sabe- res das ciências humanas e as anomalias, foram se sofisticando e se complexificando junto com as mudanças que ocorriam nas sociedades e nas relações sociais. Foi assim que emergi- ram a cegueira, a surdo-mudez, os imbecis, os retardados, os nervosos, os desequilibrados e, mais tardiamente, os problemas de rendimento escolar e o sujeito fracassado.

Somente no século XIX, quando há uma junção dos sistemas de poder e dos sis- temas de saber a que as três figuras são referidas ─ o monstro, o indivíduo a ser corrigido e o masturbador ─ é que vai se compor o domínio da anomalia. Contudo, mesmo que não inde- pendentes umas das outras, as tecnologias de poder que garantem o funcionamento dessas três figuras são diferentes. O mesmo pode ser dito das instâncias de saber relacionadas a essas figuras. O tipo de saber que se refere ao indivíduo a corrigir se constituiu muito lentamente no século XVIII: “é o saber que nasce das técnicas pedagógicas, das técnicas de educação coleti- va, de formação de aptidões”.140 Assim, as instâncias de saber e de poder que, no século XVIII

estão dispersas quanto ao seu funcionamento, vão ser organizadas, codificadas e articuladas a

138 DESCARTES, René. O discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 76 (Coleção os Pensadores). 139 DREYFUS & RABINOW, 1995, p. 8.

partir da organização dos controles de anomalia, como técnica de poder e de saber no século XIX.

É na relação com as práticas econômicas, sociais e políticas que a percepção e as preocupações em relação aos escolares vão ser construídas sob uma negatividade, e por isso exigindo uma intervenção “prática”, a qual foi diferente para os diferentes momentos históri- cos. Para a reflexão presente acerca da produção dos discursos sobre as crianças com trajetó- rias minoritárias na escola, é esse o fio que irá tecer uma rede de hipóteses, de suposições, segundo critérios higiênicos e de raça (predominante no discurso eugenista), critérios econô- micos de déficit (predominante no discurso do planejamento) e pedagógicos e psicológicos (presente, sobretudo no discurso da eficácia), para explicar as diferenças individuais e os mo- dos como os alunos respondem às exigências colocadas pela escola no processo de ensino- aprendizagem.

Mesmo aparentemente se tratando de um mesmo objeto, essa problemática─ as trajetórias minoritárias de alguns alunos e alunas ─ vai ser sistematizada com enunciados di- versos, tais como “problemas de rendimento escolar”, “dificuldades de aprendizagem” e “fra- casso escolar”. Esses discursos, portanto se diferenciam por não se referirem aos mesmos ob- jetos, por dizerem deles coisas diferentes, e por utilizarem diferentes linguagens no modo co- mo produzem suas “verdades” particulares.

Contudo, não se pode falar do conceito de fracasso escolar, que é o objeto deste estudo, até a década de sessenta, momento em que se inicia o esquadrinhamento e a subjetiva- ção do sujeito escolarizável numa perspectiva psicológica e pedagógica diferente das codifi- cações presentes no discurso do eugenismo sobre os “problemas de rendimento escolar”. É a partir dessa década, em outras realidades culturais, e na década de setenta no Brasil, que as trajetórias minoritárias na escola passam a ser nomeadas de “fracasso escolar” ─ portanto no contexto que possibilitou o engendramento da modalidade discursiva que chamo de discurso do planejamento.

A subjetivação das diferenças das trajetórias escolares de alunos nas três modalidades de discursos ─ bem como da escola e da educação da infância etc, ─ os constitui como dispositi- vos tecnológicos de governo da infância, como tecnologias de governo do eu. São, portanto, dis- cursos que reforçam a legitimação de um dispositivo contemporâneo, o fracasso escolar, instituin- do-o como realidade a partir de sua inscrição como categoria do conhecimento “verdadeiro”.

Por não ser problematizado como uma construção histórica que deve ser discutida no campo das relações de poder-saber, e de um determinado regime de verdade141de uma é-

poca particular, os discursos e os saberes que deram visibilidade ao conceito de fracasso esco- lar centralizam toda a argumentação desse dispositivo em torno do aluno, de um determinado tipo de aluno, mesmo que se utilizem de enunciados diferentes para compor suas narrativas particulares: seja “o sistema” (político, educacional), seja o déficit do ambiente em que vive o aluno ou o déficit nutricional, sejam as diferenças de inteligência, ou cognitivas, sejam os problemas psicológicos. Todos essas maquinarias supõem um processo de transformação no aluno e/ou na sociedade e são endereçadas a um único personagem: o aluno.

Mesmo as propostas veiculadas nos saberes que propunham como horizonte a transformação de um determinado modelo de sociedade, não conseguem estabelecer uma rup- tura com a moral cristã da “reparação” (da sociedade, do indivíduo etc), ou com uma solução do tipo darwinista de “regeneração” da raça, contidas nos discursos sobre os alunos. De qual- quer modo, nas três modalidades discursivas, trata-se não somente de uma disputa política e/ou social, mas também da busca de legitimação de um saber.

O que se percebe desses discursos muitas vezes é que reiteram significados e retó- ricas que se propunham a denunciar e a denegar; inclusive em termos epistemológicos, está a maioria deles atrelada a paradigmas positivistas e racionalistas: a idéia de planejamento, a possibilidade de produção de um saber mais objetivo ou mais verdadeiro sobre um determina- do objeto, a legitimação estatística dos dados, entre outros elementos. Assim, esses discursos com seus enunciados mostram que continuam presos, alienados aos projetos da modernidade, entre outros, às políticas de educação como uma forma de inclusão para subordinar, controlar, disciplinar.

Uma nova ordem vem a delinear as novas cartografias da infância e da escola com o advento das ciências modernas. Sobretudo no que se refere à passagem da educação como “instrução” para a educação como “formação”. Esse movimento nos é contado em alguns escritos142 no cenário da Espanha moderna. Varela e Alvarez-Uria nos fala a respeito dos sen-

tidos que estariam na base da concordância entre os distintos grupos sociais em aceitar como natural e, portanto inquestionável a necessidade de um espaço específico para a civilização da infância ─ no caso, a escola:

141 Utilizo aqui o termo “regime de verdade” para referir-me ao que “pode” ser dito em um determinado momen-

to histórico; ao que tem visibilidade em determinado momento da realidade política e educacional, que é o campo em particular que trata o presente estudo.

[...] se a escola primária (pública ou privada) é potenciada precisamente nes- ta época se deve a que é então quando existe um consenso social, um acordo praticamente unânime em considerá-la como a instituição mais idônea para proporcionar aos futuros trabalhadores a suma de conhecimentos indispen-

sáveis a toda pessoa civilizada.143

A partir da análise de farta documentação, esses autores mostram, por exemplo, a não diferenciação entre os discursos dos socialistas e dos conservadores da Espanha do século XIX, em alguns pontos, ao defenderem a necessidade da escola: tanto os socialistas como os conservadores tecem “elogios a Herbart, Spencer, Haeckel, Lombroso etc, [...] um dos indí- cios de que existe uma amálgama teórica que serve de marco e neutraliza, até certo ponto, as divergências que os distintos grupos apresentam. Trata-se sem dúvida do culto à ciência posi- tiva introduzida pelo krausismo e reforçada pela Instituição Livre de Ensino.144

Se consideramos alguns aspectos da genealogia em relação à invenção moderna da escola, a qual se insere no movimento mais amplo de estruturação do modelo burguês de sociedade ─ que é quando surgem os sistemas nacionais de ensino ─ o que se percebe dos escritos e das práticas de época é uma unanimidade entre os educadores e pensadores da ne- cessidade de um espaço de disciplinamento civilizatório da infância, bem como da escola co- mo o lugar ideal para tal empreendimento e garantia para a construção de uma sociedade atra- vés do modelamento da “conduta e da alma da criança”.

Conduta e alma: ciência e religião. Sob a égide desses saberes, a infância vai ser pormenorizada, perscrutada nos seus mínimos detalhes, tornando-se previsível, controlada. Para tal empreendimento são fundamentais a utilização de mecanismos de dominação, não como instrumentos que estão “fora”, ou que são exteriores aos e/ou exercidos sobre os sujei- tos “dominados”, mas que estão inscritos nas práticas sociais e nos próprios saberes, como será visto no desenrolar desse capítulo. Os efeitos do poder não se localizam nem somente, nem principalmente em lugares “macro” ─ do político e/ou do social ─ mas encontra-se en- tranhado nas relações, nos corpos e nas subjetividades mesmas dos indivíduos.

Descartes145 já no século XVII condenava os males da alma humana ao fato da

des-razão governar a vida da criança: “A primeira e principal causa dos nossos erros são os preconceitos de nossa infância. Trata-se de substituir o homem à criança”.146 Inicia-se assim, o

143 VARELA & ALVAREZ-URIA, 1991, p.204. Na verdade, o destaque dos autores refere-se a um texto de

SÁNCHEZ, R. B. Nociones de legislación escolar vigente em España. 7. ed. Madrid, 1913, p.15.

144 VARELA & ALVAREZ-URIA, 1991, p. 38.

145 DESCARTES, 1987, apud CHAUÍ, Marilena. S. Convite à filosofia. 8. ed. São Paulo: Ática, 2002, p.116. 146 Ibidem, p. 69.

percurso da infância “anormal”. A reforma da condição humana dependeria então da supera- ção da infância, obstáculo ao desenvolvimento da natureza humana.

É a partir de então que uma visão do homem como centro vai orientar o pensa- mento das ciências; “o penso, logo existo” de Descartes, eleva o homem à capacidade de pen- sar através da dúvida metódica. Para esse filósofo, a primeira verdade indubitável se origina na reflexão: “para que o gênio maligno” [metáfora que utiliza para tratar da verdade e da dú- vida metódica, cuja função seria alimentar a hipótese do pensamento como um conjunto de falsidades], “me engane, é necessário que eu, enquanto estou sendo enganado, me mantenha pensando e disso tenha certeza. Penso, logo sou ─ eis a primeira verdade”.147

A justificação filosófica, more geometrica de Descartes, através da polarização corpo e mente inaugura uma idéia sobre o homem como um ser cindido, atravessado por duas possibilidades, as quais seriam responsáveis pelas “idéias confusas”; segundo o filósofo, a condição primordial para resolver a imersão do homem no erro seria a ascese propiciada pela meditação que o elevaria à condição de sujeito, de pura res cogitans. Para ele, o conhecimento “absolutamente certo” viria do seu submetimento à dúvida constante e seria uma variável re- sultante apenas do intelecto. O erro seria resultante de duas atitudes que classificou de “infan- tis”:

[...] a prevenção, que é a facilidade com que nosso espírito se deixa levar pe- las opiniões e idéias alheias, sem se preocupar em verificar se são ou não verdadeiras. [E] a precipitação, que é a facilidade e a velocidade com que nossa vontade nos faz emitir juízos sobre as coisas, antes de verificarmos se nossas idéias são ou não são verdadeiras. São opiniões que emitimos em conseqüência da nossa vontade ser mais forte e poderosa do que nosso inte- lecto.148

A Razão triunfante do Iluminismo vai exacerbar a crença na razão humana, dei- xando para trás a visão da realidade como mistério transcendental e religioso. A condição humana, a passagem para o processo civilizatório estaria na dependência do homem atingir a razão pura e de ser instruído; ou seja, a possibilidade de vencer a “menoridade”, significava a superação da infância.

Somente com Rousseau é que vai ocorrer um deslocamento em relação à idéia de subjetividade e de infância. A subjetividade para Descartes se configurava pela estrutura as- séptica do sujeito do conhecimento, enquanto a perspectiva de Rousseau era de uma subjeti- vidade marcada pela disciplina interior, pela interiorização das normas. A pedagogia iluminis-

147 CHAUÍ, 2002, p.116. 148 Ibidem, p. 116-117.

ta situa o sujeito numa perspectiva universalista, livre da memória e da cultura, o sujeito de- miurgo, capaz de construir o conhecimento puro ─ mito da neutralidade do sujeito diante do conhecimento e, portanto, mais próximo da verdade.

A pedagogia de Rousseau re-significa o homem da nova ordem social (burguesa) do contrato como o cidadão formado pela nova forma de educação. Mesmo que os saberes produzidos durante os dois séculos seguintes reflitam uma continuidade dessas duas perspec-

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