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PARTE II Ensinar e aprender através das Inteligências Múltiplas (IM): estudo de caso

2.2 Revisão da literatura

2.2.1 Um olhar sobre o conceito de «inteligência» ao longo do tempo

Quando se fala em inteligência consideramos ser unânime o facto de existir, na sociedade atual, um entendimento geral e claro sobre o seu significado (Roazzi & Souza, 2002), nomeadamente aquele que o associa a uma natureza unidimensional, estável e mensurável. A este propósito, atente-se à significação do termo «inteligência» (in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa, 2018): conjunto de todas as funções mentais que têm por objeto o conhecimento; pensamento; faculdade de compreender; conhecimento conceptual e racional; intelecto. Porém, a realidade do senso comum não é (de todo) compatível àquela que se tem verificado ao longo das últimas décadas, e até mesmo séculos, no campo da investigação psicológica, devido às múltiplas aceções do termo, quer fossem de ordem filosófica, religiosa, biológica e cultural (Gardner, 1993).

Afonso (2007) reforça a ideia de que, os valores e o contexto cultural de uma determinada sociedade, associados a um determinado período histórico, constituem fatores que influenciaram diretamente o entendimento face ao conceito de “inteligência humana”. As palavras de Sternberg (2011) vão ao encontro desta ideia, a de que o entendimento da inteligência (em cada sociedade) depende do leque de competências valorizadas e mobilizadas para e resolver problemas/entender o mundo, ou seja, “problems that are considered intelligent in one culture may be different from the solutions considered to be intelligent in another culture, the need to define problems and translate strategies to solve these problems exists in any culture”10 (p.506).

No campo de pesquisa da Psicologia não escasseiam definições para o termo inteligência humana. Aliás, a discussão e a procura por um entendimento são imemoráveis. Se reportarmos ao período da Antiguidade, da Antiga Grécia, percebermos que, segundo o ponto de vista filosófico de Platão (428/427-348/347 a.C.), a inteligência era associada a uma verdade (Mackintosh, 2011), ou seja, os seres humanos efetivamente inteligentes (poucos) eram aqueles que reconheciam a sua ignorância e o conhecimento que adquiriam não era suficiente, para atingirem “uma verdade vasta e perfeita”. Mais tarde, no período renascentista, as ideias de pensadores tão distintos, como Leonardo Da Vinci (1452-1519), Nicolau Maquiavel (1469-1527) e Thomas More (1477-1535), colocam ênfase nas capacidades humanas - razão e criatividade -, enquanto forças maiores do pensamento humano (Silver, Strong & Perini, 2011). No decorrer do século XX, registaram-se avanços significativos no que à definição do conceito de “inteligência humana” diz respeito. Ainda que o propósito do presente estudo não seja o de aprofundar a perspetiva histórica do constructo

10 Tradução do autor: Embora as soluções de problemas que são consideradas inteligentes numa cultura podem ser diferentes das soluções consideradas inteligentes noutra cultura, a necessidade de definir problemas e traduzir estratégias para resolver esses problemas existe em qualquer cultura.

de inteligência, é importante, julga-se, traçar uma breve contextualização acerca do mesmo. Genericamente, é possível nomear quatro correntes distintas.

A) Psicométrica - foco na conceção de instrumentos para mensuração e avaliação da inteligência - testes de QI (Quociente de Inteligência) -, valorizando apenas os aspetos intelectuais do indivíduo, ao invés das habilidades/talentos que estes demonstram em situações quotidianas. Neste campo, destaca-se o trabalho de Alfred Binet (1857-1911), pioneiro na conceção da «Escala Métrica da Inteligência para Crianças» (1905), em colaboração com Theodore Simon (1873-1961). Em 1909, na sequência da reformulação da escala, emerge o conceito de «idade mental», pelo facto de esta ter sido dividida por escalões etários - dos 3 aos 13 anos (Almeida; 1988; Dias, 2013).

B) Desenvolvimentista - complementa a corrente anterior, embora pressuponha ideais distintos esta corrente. Destacam-se os contributos do psicólogo suíço Jean Piaget (1896- 1980), pela proposta da teoria dos estágios11 do desenvolvimento cognitivo - marco para a

compreensão da mente humana (apesar das críticas subjacentes) -, que refuta a essência da corrente psicométrica, ou seja, o ‘quanto’ o indivíduo é inteligente. Por seu turno, a corrente desenvolvimentista valoriza o caráter qualitativo da inteligência, estuda a origem, os fatores e os processos/formas que influenciam e promovem o seu desenvolvimento, dado que cada indivíduo apresenta um ritmo de aprendizagem distinto (Almeida, 1988).

C) Cognitivista - foco na definição e delimitação do conceito de inteligência, em detrimento da utilização dos testes psicométricos tradicionais. Por outro lado, enfatiza-se a importância da compreensão das capacidades e os processos cognitivos (a forma como a informação é processada) do ser humano e em que medida pode contribuir para um ensino, que priorize as necessidades dos alunos no presente e promova aprendizagens significativas, ao invés de predizer o sucesso dos alunos (Almeida, 1988). Destacam-se os contributos de Howard Gardner (1943-), com a Teoria das IM, e de Robert Sternberg (1949-), com a Teoria Triárquica. Nesta última, a inteligência é entendida tendo em consideração a relação indivíduo-experiência-mundo e, por isso, engloba três vertentes: (i) componencial; (ii) experiencial; (iii) contextual (Rosário, 2014).

D) Neuropsicológica - ênfase no estudo concreto do processamento da informação, nomeadamente as operações mentais inerentes à realização de tarefas. Para tanto, destaca- se o modelo de Aleksander Luria (1902-1977), a Teoria PASS, que pressupõe a análise de pacientes com lesões cerebrais (Rosário, 2014).

Embora se tenham verificado avanços no decorrer do último século, no âmbito da investigação da avaliação psicológica, autores como Almeida et al. (2009), criticam a parca inovação relativamente às técnicas utilizadas na avaliação da inteligência. É, pois, neste contexto que, em 1983, surge a obra Frames of Mind, - da autoria do psicólogo americano

Howard Gardner -, a Teoria das IM. O autor pretendeu, desta forma, contribuir com uma proposta inovadora, no sentido de desmistificar o entendimento de inteligência vastamente difundido até então (Armstrong, 2009; Baum, Viens & Slatin, 2005; Campbell, Campbell & Dickinson, 2000), ou seja, a perspetiva tradicional, na qual a inteligência era entendida como a capacidade cognitiva estável, cuja mensurabilidade era obtida com um teste-padrão de QI. Verificou-se, assim, uma rutura de paradigma. Os pressupostos subjacentes à perspetiva tradicional deram lugar a uma nova perspetiva, com caráter mais pragmático. No Quadro II.1, comparam-se as principais diferenças subjacentes às duas perspetivas.

Quadro II.1

Perspetivas relativas à noção de inteligência (adaptado de Silver, Strong & Perini, 2011, p. 11)

Antiga perspetiva Nova perspetiva

− Invariável

− Mensurável e traduzível num número

− Unitária

− Medida de forma isolada

− Usada para tipificar os alunos e prever o seu sucesso

− Pode ser desenvolvida

− Não é numericamente quantificável e evidencia-se no contexto de um desempenho da vida real, de um processo de resolução de problemas

− Manifesta-se de várias formas: é múltipla

− Medida em contextos da vida real

− Usada para compreender as capacidades humanas e as variadas formas de como os alunos podem ser bem- sucedidos