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Um outro caminho: aspectos protetivos na história de vida

5 NARRATIVAS DE ADOLESCENTES SOBRE O ABUSO SEXUAL

5.1.1 Primeira 1ª Entrevista de 2011

5.1.1.4 Um outro caminho: aspectos protetivos na história de vida

Neste tópico iremos discutir acerca da rede de proteção que contribui para a significação e superação da violência sexual.

[...] Aí teve uma vez que um homem entregou esses panfleto aqui ó (apontando para a parede da sala).

P: Esse aqui? Exploração sexual de crianças e adolescentes é crime.

Foi, aham, aí ele ficou entregando lá e eu só olhando né. Aí a minha prima, “Rosa vem aqui, deixa eu ler esse negócio pra ti”, aí ela pegou leu né. Aí eu “Elane o que é isso?”, “Pronto se uma pessoa vai e abusa de tu, tu tem que ir delunciar, denunciar”, aí eu peguei minha tia tava no colégio, aí eu “Elane eu preciso te contar uma coisa”, ela “O que foi?”, “Elane eu não sou mais virgem” eu disse assim pra ela, “Elane eu não sou mais virgem” aí ela já era assim mais ativa “tu perdeu tua virgindade com quem?”, eu, “não, não é assim do jeito que tu tá pensando, eu perdi minha virgindade foi o meu pai tirando de mi'm, aí ela “ai foi”, “foi”. Aí assim, “quando a mãe chegar nós conversa”, aí eu peguei e fui conversar com a minha tia, eu “a tia meu pai faz isso, faz aquilo comigo ele, quer que eu seja a mulher dele”, [...] meu tio não acreditava em mim de jeito nenhum.

Este trecho é relevante, pois nele temos três aspectos protetivos importantes que contribuem na superação de situações adversas e na posição de relatos sobre a vivência de violência sexual, quais sejam: a atuação da rede pública e a participação da comunidade no momento da Caminhada em alusão ao dia 18 de maio, que por meio da sensibilização da comunidade busca coibir práticas de violência sexual. Apesar de ser apenas um caso diante das estatísticas de violência, o caso de Rosa possibilita refletir como a prevenção, quando bem planejada, pode ser uma das melhores estratégias no enfrentamento da violência sexual, pois empodera a população sobre o assunto e contribui para disseminar os serviços que atendem esses casos. Percebemos, também, o apoio da família nesse primeiro momento através do suporte da prima em discutir sobre o abuso sexual e da tia que dá credibilidade ao relato de Rosa, e, em contrapartida, também temos a própria ação da jovem que, ao ter acesso a informações sobre a violência sexual, usa-os para empoderar-se e toma a iniciativa de revelar o abuso sexual, mesmo que seja algo difícil de se fazer.

Quando eu contei pra ela eu me senti muito aliviada né, eu chorei muito porque eu não contava pra ninguém. Antes eu era revoltada com as minhas amigas, eu não ficava muito brincando com elas. Se chegasse alguém perto de mim eu dizia logo “ah esse homem quer alguma coisa comigo” já dizia logo assim.

dessa situação, no entanto, sem o suporte adequado, ou como propõe Cyrulnik, sem os tutores de resiliência, que facilitam, por meio da escuta das vítimas, apoio e compartilhamento de significados, esse trabalho de elaborar cognitivamente o abuso sexual e posteriormente dar sentido a esse tipo de violência, seria quase impossível. Ainda sobre o papel do Estado, esse, por meio do trabalho dos profissionais que atuam com crianças e adolescentes vítimas de violência, também possibilita ressignificar o abuso sexual, contribuindo para a elaboração de novas significações e narrativas sobre a violência e o relacionamento da jovem com outras pessoas. Como demonstram os trechos a seguir:

Assim eu me sinto bem porque eu era ... eu era presa com esses negócios assim eu não conseguia dormir direito pensando... agora não, eu sou livre, eu falo com, eu falo com qualquer pessoa menos com as minhas amigas eu não falo isso de jeito nenhum.

[…] mas eu era muito revoltada mesmo, mas aí depois eu vim vindo com as psicóloga aí fui falando e agora que eu tô melhorando, eu ia pras terapias que a minha tia faz. [...] porque quando a pessoa chegasse perto de mim e falasse sobre isso eu dizia “ah eu não quero falar sobre isso não, não gosto disso não”, agora não, eu já converso bem já vou explicando é só a pessoa ter calma comigo [...]. […] do Conselho Tutelar eu fui fazer inxame. Aí a minha tia decidiu que queria pegar a nossa guarda, aí ela pegou a minha guarda e a guarda do meu irmão, mas eu era muito revoltada mesmo com isso, revoltada mesmo com a minha mãe, mas eu sou revoltada com a minha mãe e com o meu pai, mas eu não, assim eu não tenho coragem de abrir a boca e dizer que ele é meu pai não […].

Diante do exposto, percebemos que a rede de apoio, quando está minimamente estruturada, consegue realizar um atendimento qualificado. No caso de Rosa, encontramos a família apoiando e cuidando da jovem, o Conselho Tutelar que, desde o recebimento da denúncia, mostrou-se como referência no encaminhamento para as políticas públicas das quais Rosa teve acesso, sendo encaminhada para a Delegacia de Combate à Exploração de Crianças e Adolescentes – DCECA, para o Instituto Médico Legal – IML e para o CREAS, contribuindo para as mudanças nas ações e narrativas de Rosa sobre a violência sofrida.

Conforme foi relatado pela tia de Rosa, o período pós denúncia foi complicado tanto para a jovem quanto para a família ampliada. Durante a conversa que tive na residência dos tios paternos em agosto de 2013, eles relataram que, no início, ela teve problemas de comportamento, sendo um deles a falta na escola durante dois, o que gerou na família um receio sobre se estariam fazendo a coisa certa, principalmente no tio por estar denunciando seu irmão. Quando eles tocaram nesse assunto, e o tio de forma mais enfática expressou como era difícil para eles terem se responsabilizado pelos dois sobrinhos, logo a tia muda seu discurso amenizando a situação ao dizer o motivo de Rosa faltar a escola, pois o suposto agressor insistia em ir buscá-la, e reconhecendo as

consequências do abuso sexual ao dizer que “mexe com a cabeça” (sic).

Essa tia tem sido o principal suporte de Rosa, estabelecendo uma mútua relação de afeto e respeito, algo que é notado nas expressões e até no tom de voz das duas durante as conversas que tivemos. Sendo possível dizer que este apoio da tia foi o propulsor de mudanças significativas na história de vida de Rosa, não só com a denúncia da violência sexual, mas com o compartilhamento de significados que contribuíram para que Rosa ressignificasse a violência, construindo um novo projeto de vida e, com exemplos de perseverança e de amor familiar, inclusive mudando a trajetória de vida de toda a família ampliada, como veremos na segunda entrevista. Tais aspectos refletem indicadores na direção de resiliência, resultante desses diferentes suportes pessoal e social, mudando o curso de vida da adolescente.