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Um panorama das políticas governamentais de erradicação do trabalho escravo

rural

2.1 – Introdução

O objetivo deste segundo capítulo é o de apresentar um panorama das políticas de erradicação do trabalho escravo rural, de forma a mostrarmos a existência de períodos que se diferenciam pelas ações e políticas implementadas, bem como pelas avaliações e críticas feitas às medidas governamentais implementadas ao longo dos anos. A ideia central é a de descrevermos as definições e caracterizações sobre o trabalho escravo feitas por cada política, as suas aproximações e distanciamentos com relação a outros entendimentos existentes, e de que maneira elas se modificam ao longo do tempo. Trata-se, sobretudo de um exercício exploratório que nos permite excursionar dentro do tema escolhido e sugerir a importância de determinadas questões para pensarmos posteriormente na atuação do Poder Judiciário em cada caso analisado.

Defendemos a tese de que, do ponto de vista político institucional ou formal, é possível observar uma linha “evolutiva” no quadro das políticas governamentais que vem sendo implementadas desde meados dos anos 1980 até os dias de hoje para a erradicação do trabalho escravo rural. É possível identificar a existência de períodos distintos, cada qual constituindo “um passo à frente” na expansão e fortalecimento do dos direitos de cidadania no ambiente rural brasileiro. É possível observar a criação e a implementação de medidas institucionais cada vez mais integradas, estruturalmente fortalecidas e amplamente apoiadas por governantes e diversos setores da sociedade. É possível observar que a erradicação do trabalho escravo torna-se gradualmente o norte e a prioridade não somente dos governos, mas das instituições estatais (do Executivo, Legislativo e Judiciário) e da sociedade brasileira como um todo, no que a defesa da cidadania e da dignidade humana

é encontrada tanto na fala quanto nos diferentes projetos e propostas, como num grande uníssono ou apelo nacional.

Contudo, também podemos observar que esse quadro institucional “evolutivo” “co-avança-retrae” com um acirrado jogo político que adiciona diálogos e atuações truncadas entre diferentes atores e seus respectivos “projetos” de cidadania para o campo. Esse jogo político, por sua vez, expressa ou demonstra as contradições historicamente presentes na expansão dos direitos de cidadania, especialmente dos direitos trabalhistas, no ambiente rural brasileiro. Assim, podemos ver um entrelaçar constante entre aspectos institucionais, aspectos ligados aos interesses particulares, e aspectos estruturais.

Para mostrar isso, este capítulo está dividido em quatro partes. Primeiramente, descrevemos o período entre 1970 e 1984, no qual se registram as primeiras denúncias de trabalho escravo e as avaliações sistêmicas e estruturais feitas pelo clero progressista sobre o projeto desenvolvimento do regime militar e o avanço do capitalismo no campo. Num segundo momento, descrevemos o período entre 1985 e 1994, no qual surgem as primeiras políticas ou as políticas embrionárias voltadas para a questão do trabalho escravo no contexto político da abertura política e da transição democrática. Num terceiro momento, descrevemos o período entre 1995 e 2002, marcado, sobretudo, pelo reconhecimento público do trabalho escravo e pelo comprometimento governamental frente ao cenário internacional e frente às pressões internas. Na última parte, descrevemos o período entre 2003 e 2012, conformado pelo avanço de políticas institucionalmente integradas e fortalecidas e pelas pressões e embates em torno da caracterização do que é o trabalho escravo.

2.2 – Primeiras denúncias e sua visão sistêmica (1970-1984)

Entre o início dos anos 1970 e fins dos anos 1980, o quadro é marcado, sobretudo, pelo encaminhamento das primeiras denúncias de trabalho escravo rural, e pelo acirramento das lutas políticas no campo. Em 10 de outubro de

1971, dom Pedro Casaldáliga, em sua carta pastoral “Uma Igreja na Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”, denuncia as formas pelas quais o regime militar combinava de maneira perversa seu projeto nacional desenvolvimentista com políticas de incentivos fiscais para o setor privado, que levavam a uma crescente concentração de terras e a uma consequente expulsão e marginalização de grandes massas de camponeses.

Entre os diversos problemas que Casaldáliga identifica como sendo os resultados da expansão do capitalismo e da agropecuária sobre a região amazônica, ele dedica uma seção especial de sua carta para falar da questão da mão-de-obra que era empregada na derrubada da mata para a construção de pastos e plantações, descrevendo de forma ampla e detalhada a situação e as condições de vida e de trabalho dos que ele chamou de “peões escravos”:

“o método de recrutamento é através de promessas de bons salários, excelentes condições de trabalho, assistência médica gratuita, transporte gratuito, etc. (...). Os peões, aliciados fora, são transportados em avião, barco ou pau-de-arara para o local da derrubada. Ao chegar, a maioria recebe a comunicação de que terão que pagar os gastos da viagem, inclusive transporte. E já de início têm que fazer suprimento de alimentos e ferramentas nos armazéns da fazenda, a preços muito elevados. (...). Para os peões não há moradia. Logo que chegam, são levados para a mata, para a zona da derrubada, onde tem que construir, como puderem, um barracão para se agasalhar, tendo que providenciar sua própria alimentação. As condições de trabalho são as mais precárias possíveis. (...). Os medicamentos quase sempre são insuficientes e em muitas vezes pagos, inclusive amostras grátis. Por tudo isto, os peões trabalham meses, e ao contrair malária ou outra qualquer doença, todo o seu saldo é devorado, ficando mesmo endividados com a fazenda. (...). Esse trabalho pesado, e nestas condições, é executado por gente de toda idade, inclusive menores. (...). Não há com os peões nenhum contrato de trabalho. Tudo fica em simples combinação oral com o empreiteiro. Os pagamentos são efetuados ao bel-prazer das empresas. Muitas vezes, usa-se o esquema de não pagar, ou pagar só com vales, ou só no fim de todo trabalho realizado, para poder reter os peões. (...). Muitos, doentes, sentindo-se sem forças e temendo morrer naquelas condições, não conseguindo receber o que lhe é de direito, fogem para sobreviver. Outros ainda fogem por se verem cada vez mais endividados. E nestas fugas são barrados por pistoleiros pagos para tanto” (Casaldáliga, 1971: 19-20).

O que podemos notar nesta descrição, bem como no teor da carta escrita por dom Pedro Casaldáliga é que ela abrange um conjunto amplo de

características que ajudam a configurar não apenas as situações de exploração extrema, mais difíceis de negar (como as que se dão através do não- pagamento e do uso da violência física e vigilância armada), mas também as situações “propiciadoras” dessa exploração extrema, que vulnerabilizam e submetem, tanto quanto a violência, os trabalhadores rurais ao trabalho escravo (como o seu aliciamento e deslocamento para locais ou estados muito distantes de sua residência, as condições degradantes de habitação, alimentação e de saúde, e o endividamento com o fazendeiro). Para Casaldáliga, o uso da violência física claramente aparece como um elemento importante para a caracterização do trabalho escravo rural na contemporaneidade; porém, a sua ausência de modo algum descaracteriza a situação enquanto tal. Ela é “apenas” o instrumento mais extremo e visível da expansão do capitalismo aliado ao latifúndio.

Essa caracterização feita por Casaldáliga sobre a situação da exploração do trabalho rural e sua denominação como “trabalho escravo” marcou uma diferenciação muito importante frente a outras caracterizações e denominações já existentes e formalmente reconhecidas pelas instituições políticas brasileiras. Tal importância se deu, sobretudo, por ela ter “holofotizado”, no momento de ápice do projeto agrário do regime militar, as contradições perversas desse projeto, e por ter iniciado uma delimitação de entendimentos e posicionamentos políticos acerca do trabalho escravo rural que se acirram até os dias de hoje.

De 1940 até a publicação da carta-denúncia de dom Pedro Casaldáliga em outubro 1971, podemos encontrar cerca de 8 medidas institucionais brasileiras relacionadas às condições de trabalho do trabalhador rural e 5 relacionadas especificamente à questão do trabalho escravo.

Tabela 1 - Medidas Formais para o Trabalho Rural e para o Trabalho Escravo (1940-1969)

Ano Medida

1940 Art. 149 do Código Penal estabelece a pena de 2 a 8 anos de reclusão para quem "reduzir alguém a condição análoga à de escravo"

1957

Ratificação da Convenção nº 11 da OIT (Direito de Sindicalização na Agricultura)

Ratificação da Convenção nº 12 da OIT (Indenização por Acidente de Trabalho na Agricultura)

Ratificação da Convenção nº 29 da OIT (Trabalho Forçado ou Obrigatório) Ratificação da Convenção nº 99 da OIT (Salário Mínimo na Agricultura) Ratificação da Convenção nº 101 da OIT (Férias Remuneradas na Agricultura) 1963 Estatuto do Trabalhador Rural

1965

Ratificação da Convenção nº 110 da OIT (Condições de Emprego dos Trabalhadores em Fazendas)

Ratificação da Convenção nº 105 da OIT (Abolição do Trabalho Forçado) 1966 Promulgação da Convenção sobre a Escravatura de 1926

Promulgação da Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura de 1956 1969 Ratificação da Convenção nº 117 da OIT (Objetivos e Normas Básicas da Política

Social)

1971 Criação do PRORURAL (Programa de Assistência Técnica e Extensão Rural) e de sua agência executiva, o FUNRURAL (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural)

O que podemos observar é que a maioria dessas medidas, em conjunto, ajuda a conformar uma diferenciação entre trabalho escravo e trabalho forçado ou obrigatório, direta ou indiretamente. O trabalho escravo propriamente dito seria a antiga forma de mão-de-obra do sistema escravista, chancelada por um ordenamento jurídico, ainda que ele pudesse ser encontrado até início do século XX e não mais amparado juridicamente. O trabalho forçado ou obrigatório, por sua vez, seria o que de fato encontraríamos na contemporaneidade, tendo por fator essencial não mais um “sistema escravista”, mas ocorrências “particularizadas”, embora massivas, a serem enfrentadas com um avanço progressivo dos direitos do trabalhador. Seriam situações extremas de violação das leis e normas trabalhistas, nas quais um indivíduo se vê forçado ou obrigado a realizar um trabalho contra a sua vontade, sob imposição, ameaça ou violência. Vejamos isso dentre as medidas por nós listadas.

As Convenções nº 29 e nº 105 da OIT, ratificadas pelo Brasil em 1957 e 196523, assim como a “Convenção sobre a Escravatura de 1926”, promulgada no país em 196624, falam justamente em “trabalho forçado ou obrigatório”, até então caracterizado como “todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”. Não se trata de um “sistema” de trabalho forçado, mas de situações em que ele ocorre, e contra as quais os países signatários das convenções devem promover medidas para a sua erradicação completa25. Sendo central a questão da voluntariedade, ou seja, sendo o trabalho forçado somente o trabalho para o qual o trabalhador não se apresentou por livre e espontânea vontade, mas obrigado ou sob ameaça, os países signatários devem tomar todas as medidas necessárias, como as estabelecidas pelas Convenções de nº 11, 12, 99, 10126, 11027 e 11728 da OIT e pelo “Estatuto do

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A convenção nº 29 foi aprovada pela OIT durante a 14ª Reunião da Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra, em 10 de junho de 1930; e entrou em vigor no plano internacional a partir de 01 de maio de 1932. No Brasil, foi aprovada através do Decreto Legislativo Nº 24, de 29/05/1956, do Congresso Nacional; ratificada em 25/04/1957; promulgada através do Decreto 41.721, de 25/06/1957; e passou a ter vigência nacional a partir de 25/04/1958. A convenção nº 105 foi aprovada pela OIT durante a 40ª Reunião da Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra, em 05 de junho de 1957. E ela entrou em vigor no plano internacional a partir de 17/01/1959. Ela foi aprovada no Brasil através do Decreto Legislativo Nº 20, de 30/04/1965, do Congresso Nacional. Foi ratificada em 18/06/1965, e foi promulgada através do Decreto 58.822, de 14/07/1966. Passou a ter vigência nacional a partir de 18/06/1966.

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Promulgada pelo Decreto n. 58.563, de 1º de junho de 1966.

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A convenção nº 29 era mais restritiva que a de nº 105. Ela não proibia por completo e em todas as suas formas a utilização de trabalho forçado ou obrigatório, mas apenas descrevia os casos e as condições para que ele fosse utilizado, de modo a não ocorrerem “excessos” nessa exploração. Ele poderia ser aplicado por autoridades públicas sobre indivíduos condenados e julgados pela Justiça, desde que justificada a finalidade pública e coletiva do serviço, que não ultrapassasse o período de 60 dias dentro de um ano, que houvesse remuneração, que as horas de trabalho e a remuneração se dessem nas mesmas bases de um trabalhador livre, que houvesse indenização por acidente de trabalho, que o trabalhador não fosse transferido para lugares distantes e muito diferentes de seu habitat, e caso assim ocorresse que as autoridades propiciassem todas as condições de adaptação. Já a convenção nº 105 proibia toda e qualquer forma de trabalho forçado ou obrigatório.

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Ratificadas pelo Brasil através do Decreto 41.721, de 25 de junho de 1957.

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Promulgada pelo Brasil através do Decreto 58.826, de 14 de julho de 1966.

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Trabalhador Rural” de 196329

, para evitar o abuso de poder por parte dos empregadores.

O interessante a se notar nessas medidas, sobretudo nas Convenções nº 29 e 105, e na Convenção sobre a Escravatura de 1926, é que elas mostram a importância de se regularizar algumas situações descritas por dom Pedro Casaldáliga. Elas dizem, por exemplo, que é preciso regularizar os contratos de trabalho, evitar os deslocamentos dos trabalhadores para longe de suas residências, garantir e regularizar pagamentos e salários, e garantir condições de habitação, alimentação e saúde adequadas, ainda que nada fosse realizado em termos concretos. Contudo, diferentemente de Casaldáliga, essas Convenções apontam que a ausência ou a precariedade dessas condições de trabalho são apenas “propiciadoras” e não “características” de trabalho forçado e, muito menos, de trabalho escravo. O que é determinante para a configuração de um quadro de trabalho forçado é a presença da violência, da imposição, da exigência de trabalho de um indivíduo contra a sua vontade. Para Casaldáliga, no entanto, as condições “propiciadoras” podem, por si mesmas, caracterizar um quadro de imposição, pois elas são tão ou mais mais capazes que a violência de retirar dos indivíduos sua autonomia e capacidade de escolha de um determinado trabalho. Aqui, a ideia de que os trabalhadores são livres para escolher um trabalho é contestada, dadas as condições de miséria, de marginalidade e de extrema necessidade, que reduzem as opções de sobrevivência para esses trabalhadores.

Se nos voltarmos mais atentamente para o “Estatuto do Trabalhador Rural” de 1963, podemos extrair algumas considerações importantes acerca das condições propiciadoras. Do ponto de vista do avanço dos direitos dos trabalhadores rurais, o Estatuto pode ser considerado um avanço formal significativo, na medida em que foi o documento que regulamentou, pela primeira vez, as relações de trabalho no setor agrícola, reconhecendo direitos trabalhistas aos assalariados rurais, e fixando as condições do exercício do trabalho agrícola e proteções especiais aos trabalhadores (Wanderley, 2013).

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Contudo, do ponto de vista do que significou a “proletarização” no campo, e do ponto de vista do que o Estatuto deixou de regular, ele se apresenta como um atestado de entendimentos e posicionamentos parciais acerca da exploração do trabalhador rural e da expansão dos direitos de cidadania no campo.

Como nos mostra Margarida Maria Moura (1988), por exemplo, a regulamentação jurídica e a defesa judicial do trabalhador rural assalariado abriu um caminho de cidadania contraditório e perverso para uma grande massa de camponeses30. O projeto desenvolvimentista do regime militar, que incluía a expansão das fronteiras agrícolas através de incentivos fiscais para a iniciativa privada, resultou na saída ou na expulsão, sobretudo, de agregados e de posseiros do campo. Nesse quadro, as possibilidades que se abriram para esses camponeses foram duas, ficar ou sair das terras em que trabalhavam, possibilidades estas que, para Moura, levaram ambas a uma situacão crescente de marginalização e precariedade sistêmicas.

Para aqueles que ficavam, dois caminhos eram possíveis: ficar nas terras sob um acordo informal, oral, com o proprietário, mantendo relações de favor para com ele e, assim, mantendo-se sob uma situação de insegurança, ao passo que podiam ser novamente expulsos em casos de mudança de proprietário e de rompimento do acordo feito; e o outro caminho seria ficar nas terras, mas, agora, sob a chancela jurídica de um contrato de trabalho, em que o camponês, inevitavelmente, acaba por abdicar de seus direitos sobre a terra para reivindicar acesso aos seus direitos enquanto trabalhador rural assalariado.

Para aqueles que saíam, também se abriam dois caminhos: sair, mas tentar conseguir através de um processo judicial uma pequena indenização pelo tempo de serviço prestado ao proprietário, e depois tentar conseguir um pedaço de terra e sobreviver sob condições precárias, dada a falta de incentivos estatais e a concorrência desleal com os grandes produtores rurais financiados pelo Estado; e o outro caminho seria deixar a terra sem qualquer

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A autora estuda os conflitos de terra e de trabalho vivenciados pelos trabalhadores rurais do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais nos anos 1970 e 1980.

direito, ressarcimento ou indenizacão, ficando submetido à busca por trabalhos temporários e precários, conformando o que ficou conhecido por trabalhadores “bóias-frias”, trabalhadores volantes, ou como chamou Casaldáliga, por “peões escravos”.

Diante desses diferentes caminhos, especialmente para aqueles que ficaram nas fazendas sob contrato de trabalho e para aqueles que saíram em busca de trabalhos temporários, o que significava o “Estatuto do Trabalhador Rural” de 1963?

Para aqueles sob contrato de trabalho, o Estatuto, como já apontamos, tinha um sentido dúbio. Ele constituía o documento oficial da transformação do camponês no que José Graciano da Silva (1981) chamava de “proletário rural”, no tipo de trabalhador necessário às novas exigências do processo produtivo. Essa transformação, formalizada pelo Estatuto em 1963, seria, alguns anos depois, reafirmada e complementada pelo regime militar, com a criação, em maio de 1971, do “Programa de Assistência Técnica e Extensão Rural”, o PRORURAL, juntamente com sua agência executiva, o “Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural”, o FUNRURAL31

, poucos meses antes da publicação da carta pastoral de dom Pedro Casaldáliga. Como aponta Peter Houtzager (2004), com esse programa o regime militar consolidava seu projeto agrário, incorporando a legislação e a justiça trabalhista, bem como a sindicalização dos trabalhadores rurais, como instrumentos e estratégias centrais de integração nacional e de fortalecimento do Estado no campo, desmobilizando ou fragmentando a luta por terras.

Por outro lado, no entanto, o Estatuto de 1963 e, especialmente o PRORURAL e o FUNRURAL de 1971, acabavam se apresentando como mecanismos ou instrumentos importantes de defesa dos direitos dos trabalhadores rurais frente aos proprietários empregadores, ainda que isso fosse, ao fim, funcional para o projeto agrário do regime militar. O Estatuto estabelecia regras sobre a remuneração e sobre o salário mínimo, de forma a garantir o pagamento em dinheiro e evitar as relações com base no favor;

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estipulava que a jornada máxima de trabalho não deveria ultrapassar oito horas diárias; garantia o repouso semanal e as férias remuneradas; e estabelecia normas de segurança no trabalho. O PRORURAL e o FUNRURAL, por seu turno, e de forma efetiva, implementavam uma série de benefícios sociais, como pensões por aposentadoria, assistência médica e dentária, pensões para aposentados e deficientes físicos, ajuda financeira para funerais e, mais importante, não exigia a contribuição direta dos trabalhadores ao programa, recorrendo a um mecanismo de transferência da área urbana para a área rural.

Assim, era apresentado aos camponeses, agora “trabalhadores rurais assalariados”, um “jogo” que eles não teriam como se recusar a jogar, dados os custos ainda maiores da sua não adesão, ainda que as medidas apresentassem limitações mesmo do ponto de vista da defesa dos direitos dos trabalhadores.

O Estatuto de 1963, por exemplo, mantinha a possibilidade do empregador realizar descontos dos salários dos trabalhadores para gastos com moradia e com alimentação32. Tratava-se de uma limitação na medida em que a possibilidade do desconto salarial, como denunciada por Casaldáliga, acabava se tornando um instrumento de retenção dos trabalhadores contra a sua vontade, dado o seu envidamento para com o empregador, no que o Estatuto apresentava um entendimento limitado acerca de um dos principais mecanismos de submissão e vulnerabilização do trabalhador rural. Além disso, o Estatuto também apresentava algumas regulamentações dúbias acerca das condições de moradia e de higiene. Ele estabelecia que as habitações deviam respeitar os “mínimos preceitos” de higiene, mas que deviam, ao mesmo tempo, levar em consideração “as condições peculiares de cada região”33

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