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Capítulo 2. Psicanálise e os anos 60: as estruturas que um dia perambularam pelas

2.5 Um saber que ordena (They don't know that we know they know we know)

Lacan (1969-1970) irá nos dar algumas pistas acerca da escrita dos discursos e aquilo que denominaremos de seus “giros paraláticos” no que tange a questão da “dominância”, ou seja, o termo que ocupará o lugar do agente, acima e a esquerda e que irá mudar a estrutura dos discursos. A dominância do discurso do mestre, por exemplo,

é a lei (S1). Lacan fará uma diferenciação da lei a que se refere daquilo a que se

conhece por justiça e todo a sua articulação com o direito, mas sim, “leis de estrutura que fazem com que a lei seja sempre a lei situada nesse lugar que chamo de dominante no discurso do mestre”Lacan (1969-1970:44)

Discurso da Universidade/Universitário

O discurso universitário, ou discurso da universidade, tal como o do mestre, são discursos de domínio. Resumidamente, tal como mostra o matema acima, no lugar do

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agente encontra-se S2, que é o saber que o mestre um dia usurpou do escravo uma tirania do saber que se constrói a partir dos grandes textos, das citações e da reprodução de um saber a qual não lhe é autorizado a questionar: “O S2 aí é o lugar dominante na medida em que foi no lugar da ordem, do mandamento, no lugar primeiramente ocupado pelo mestre que surgiu o saber” (Lacan 1969-1970:109) O saber em posição de agente (S2) se endereça ao estudante (a) que Lacan irá denominar de astudado “porque como todo o trabalhador – situem-se nas outras pequenas ordens – ele tem que produzir alguma coisa” (Lacan 1969-1970:110). Os astudados produzem artigos, dissertações, teses e tudo o que for necessário para movimentar a máquina acadêmica na ilusão dessa impossibilidade freudiana que é o educar.

Žižek (2014) identifica um viés reducionista no entendimento do discurso universitário - como a percepção de algo pertencente a maquinaria interpretativa acadêmica - entretanto ele recorda que, para Lacan, esse discurso não está diretamente ligado à universidade como instituição social. Lacan vai afirmar, por exemplo, que a União Soviética foi o puro reinado do discurso universitário. Žižek faz uma provocação ao destacar o nível superior fórmula do discurso universitário – S2 diante de a – que poderia também ser lido como representando o saber universitário que se empenha em integrar, domesticar e apropriar o excesso que lhe resiste e rejeita. Zupančič (2006) reitera a diferenciação entre o discurso da histérica, como uma reação ao discurso do mestre e o discurso da universidade que se tornou a nova forma do discurso do mestre. Nesse ponto retomamos a questão foulcautiana de oposição/paralaxe entre os dispositivos da aliança e da sexualidade, sendo que o segundo é o que inaugura “a vontade de saber”, domínio das práticas discursivas. Para Zupančič o discurso da universidade é

um discurso novo e reformado do mestre. Em sua forma elementar, é um discurso que é pronunciado do lugar de um conhecimento supostamente neutro, cuja verdade (escondida abaixo da barra) é o poder, isto é, o significante mestre. A mentira constitutiva deste discurso é que ele nega sua dimensão performática: ele sempre apresenta, por exemplo, aquilo que leva a uma decisão política, fundada no poder, como uma simples percepção do estado fatual das coisas (pesquisas públicas, relatórios objetivos, e assim por diante) (Zupančič 2006:168)

Podemos começar então a pensar em um conjunto de paralaxes que situam em um horizonte próximo o discurso do Mestre e sua lei (S1); o discurso da universidade e o seu saber (S2). Ambos irão performar dogmatismos ordenadores muito além do que poderia imaginar a juventude dos anos 60 a qual Lacan endereçava amargas doses de ceticismo quanto às suas efetivas pretensões libertárias. O discurso do mestre deu o seu primeiro quarto de volta e legou S1 na posição da verdade e no lugar do outro o objeto a, na qual recordamos que Žižek (2008) o considera como o “objeto paralático puro”, moldável de acordo com aquilo que se deseja dele. Isso terá um entendimento diferente do que iremos examinar no discurso do analista, já que engendra certa objetificação do outro naquilo que Lacan vai identificar como o mal estar dos estudados ao qual

solicita-se que constituam o sujeito da ciência com a sua própria pele, o que, segundo as últimas notícias parece apresentar algumas dificuldades na área de ciências humanas E é assim para uma ciência tão bem assentada por um lado e tão evidentemente conquistadora por outro – o bastante para se qualificar de humana, sem dúvida porque toma os homens como húmus – ocorrem coisas que nos permitem sair-nos bem e compreender o que comporta o fato de substituir no plano da verdade o puro e simples mandamento, o do mestre. (Lacan 1969-1970:111)

A produção do discurso universitário é o sujeito dividido ($), este que tende a se revoltar ao ser disposto como objeto a, como astudado, o novo escravo, ou como sarcasticamente Lacan nos coloca na passagem acima, como húmus. Tal discurso vai exprimir uma tirania do saber científico que busca de certa forma dissociar o sujeito de seus significantes primordiais. O que pode ser isso? Ao outro restará tão somente um

silêncio ou a repetição de enunciados do saber universitário. Zupancic (2006) se vale do discurso universitário para analisar as ações americanas durante a guerra do Iraque (2003-2011) ao assinalar a posição cínica dos "mestres democráticos" que jogam pelas regras do discurso universitário, ao exigirem que todas as decisões políticas sejam fundamentadas em um conhecimento objetivo, o que vai da ordem dos drones e “bombardeios cirúrgicos” que aparentemente promovem uma “guerra científica” com pretensões assépticas e legitimadas por um conjunto de saberes que desumanizam o inimigo.

Para Žižek (2014) a fórmula dos quatro discursos de Lacan permite desdobrar as duas faces da modernidade (administração total e dinâmica capitalista-individualista), uma dualidade que em si acaba por enfraquecer historicamente o discurso do mestre. O viés iluminista cartesiano que atenta para a eficácia da figura do mestre é substituída, ou suplementada, pelo governo direto dos experts que são legitimados por seu saber, e as dúvidas, o permanente questionamento, pode muito bem ser integrado em um laço social de permanente conflito e que irá, mais adiante, construir alguns entendimentos no que concerne aos ditames do capitalismo tardio pós Bretton Woods.