• Nenhum resultado encontrado

2.2 O conluio necessário

2.2.1 Um sentido de escola

Nessa altura e nesse tempo a que me vou referindo, consciente do sentido que gostaria de imprimir à minha passagem pela Escola, fui tomando posse de alguma mudança e assumindo algumas estratégias de sobrevivência26 que me possibilitavam lidar com alguns constrangimentos, fui,

desempenhando vários papeis, ensinando de várias formas, aprendendo de outras tantas, assumindo riscos, conseguindo alguns êxitos, passando por cima de alguns fracassos e, longe de ir acumulando muitas verdades, fui antes assistindo ao desmoronar de algumas, uma vez "que a verdade já não tem o seu registo sagrado num qualquer grande livro", como nos recorda Ricoeur (1993:71).

Desse modo e ano após ano, com melhores ou piores performances27,

seduzindo, surpreendendo e surpreendendo-me, fui alterando a minha forma de estar, fui ouvindo, constatando, duvidando, aprendendo, errando, comparando, observando, abandonando alguns conceitos, construindo alguns projectos, envolvendo-me noutros, buscando um certo sentido de progresso, consciente, no entanto, de que, como diz Touraine (1992:269), "a crença no progresso não garante, de forma alguma, nenhuma protecção contra os «danos do progresso»", e dispondo-me a aceitar desafios propostos e...pressentidos, numa tentativa de, e não sei se utopicamente, dar aos alunos

26 Segundo Nias in Hargreaves (1998:34) estas foram-se desenvolvendo como forma de lidar com constrangimentos situacionais. 27 Performances que para Goffman citado por Hargreaves (1998:123), se constituem em lugares nos quais, num certo sentido, se

está em cena - regiões frontais - que se opõem às regiões de rectaguarda onde mais facilmente se promovem relações informais que criam confiança, solidariedade e sentimentos de camaradagem entre os professores.

que por mim foram passando, marcando-me e ensinando-me, a possibilidade de interiorizarem imagens mais atractivas da sua escola, como espaço que usaram e de que gostaram. Como referiam algumas colegas desse meu tempo...

"...os projectos que íamos construindo com os nossos alunos, talvez não fossem projectos muito organizados, talvez não tivessem todos os «esses» e «erres» necessários, mas davam, a nós e a eles, um estar na escola de outra maneira..."

Pequenos projectos realmente foram acontecendo, projectos de escola, de sala, de grupos de professores, que foram constituindo não só pequenas fugas a um currículo prescrito, mas também fôlegos necessários ao meu quotidiano - embora as performances também o fossem...28- reinvenção de mim própria, descoberta, pequenas aventuras educativas construídas num colectivo de alunos e professores que me foram ajudando a ter uma maior consciência crítica da minha prática, libertando-me de processos óbvios e descobrindo novos e mais interessantes percursos e contextos relacionais. Como Nóvoa (1995:41), penso que é "preciso olhar para a escola como uma «topia», isto é, como um tempo e um espaço onde podemos exprimir a nossa natureza pessoal e social".

Através desses projectos foram-se ainda estabelecendo ou procurando estabelecer, em conjunto com todos os outros que embarcavam nessas aventuras, dinâmicas que criaram sinergias, de modo a não deixarem cair mudanças que se iam consolidando e que foram sendo motivadoras da emergência e desenvolvimento de outras iniciativas e de outros projectos, nem sempre muito formais, mas que se imbricavam com os meus propósitos de vida que ia dando a conhecer aos que comigo partilhavam os "dias da escola".

De facto os contextos profissionais e pessoais entrosam-se, uma vez que no trabalho do professor entram sempre em jogo todos os traços da sua personalidade, os seus afectos, as suas crenças, os seus temores, os seus sonhos e os seus interesses, alicerçados nas suas estruturas cognitivas e que marcam o modo singular como age, reage e interage com os seus contextos,

28 "Afinal gostei sempre de representar para esse público (26,28, 30...) de sentir que eles gostavam, que sorriam, que aplaudiam, que

cruzando efectivamente a sua maneira de ser e estar, com a sua maneira de ensinar e aprender. Tal como afirma Nias (in Woods, 1996:71) "(.-)os sentimentos intervêm fortemente no reportório dos professores" e quando agimos em função das crenças ou convicções que temos, as suas causas constituem uma sequência de razões que aparecem de facto com um forte poder persuasivo.

Hargreaves (1998:9) salienta a este respeito "que a forma como os professores ensinam está enraizada nos seus antecedentes, nas suas biografias, no tipo de docentes em que se tornaram".

Por tudo isso , reflectir sobre contextos que vamos vivenciando, é com toda a certeza um processo fundamental para o desenvolvimento pessoal e profissional, iniciando-se, seguramente, um processo hermenêutico de nós próprios. Penso, aliás, que em termos factuais, a pré - existência de um entendimento é o que permite a distinção de novos aspectos, factos e situações que vão dando corpo aos nossos quotidianos feitos de percursos vários a que cada um de nós dá um sentido que, como aponta Habermas (1993:138), "abre o acesso aos factos" e, às representações que vamos construindo e que se constituem em verdadeiros mecanismos de relação social.

Todos esses projectos29 a que me referi e que vivi, penso me foram permitindo aceder a novos contextos, estabelecendo relações que, longe de serem neutras, se foram caracterizando por um capital de influência e interferência com registo afectivo de fundo e que me levaram a assumir responsabilidades na recriação do quotidiano, já que, como Pessoa, "a vida prática sempre me pareceu o mais cómodo dos suicídios"...e o mundo, tal como refere Heidegger (1987), um vasto campo de possibilidades onde o ser se actualiza e se explicita, procurando influenciar o fluxo de alteridade a que chamamos tempo.

Os professores são, efectivamente, a resultante complexa e, em certa medida imprevisível dos papeis que vão assumindo na instituição e como escreve Hargreaves (1998:111) "o nosso trabalho, as nossas ocupações, os

papeis que desempenhamos na vida, imbricam (...) projectos, actividades e interesses de formas particulares, pelo que os nossos sentidos de tempo variam com os diferentes tipos de trabalho que fazemos e com o tipo de papeis que assumimos na vida..."

A partir de 76 - ano em que pela primeira vez no Direito Constitucional português se reconhece, formalmente, o direito à «educação», articulado com o direito à «cultura» e à «ciência» - tive sempre a mesma escola e nela fiz todas as aprendizagens que fui conseguindo, tentando vê-la não e apenas como locus de reprodução e produção, mas geradora de alguns processos de transformação embora nem sempre conseguidos nem incorporados no quotidiano escolar, surgidos da militância de muitos dos professores que por ela foram passando e se integrando numa equipa de trabalho que aos poucos se foi organizando e gerando cumplicidades e que, como Canário (1996:68), acreditavam que "a mudança da escola e a mudança dos professores não são aspectos dissociáveis, devendo produzir-se de forma concomitante", e que as mudanças comunicacionais que urge aconteçam cada vez mais, darão, por certo, um outro sentido às necessárias mudanças instrumentais.

As afinidades que se foram estabelecendo entre os elementos que dela faziam parte e que se sentiam no interior e exterior da escola extravasando para fora do tempo escolar, possibilitaram a emergência de "uma plataforma interpessoal que pôde servir de base a actividades e a tomadas de decisões mais formais na vida escolar..." (Hargreaves, 1998:123) diluindo desconfianças e evitando alguns desentendimentos e a relação de grupo, dentro dessa equipa, foi ainda correspondendo, ao longo do tempo, ao que Dubar (1997:94) aponta como a construção de um «mundo específico» necessariamente subjacente a uma redefinição de identidades profissionais, exigindo, para além de todo um processo de «socialização secundária», a ruptura com socializações anteriores e uma descentração quanto ao trabalho que ia tendo lugar, permitindo situações de partilha e de análise de uma forma cooperada, onde as falhas iam sendo assumidas colectivamente, e as inovações acontecendo no decorrer desses vários espaços de tempo.

"...esse tempo com o qual é preciso contar e que é preciso contar"

(Ricoeur, 1989)

Documentos relacionados