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CAPÍTULO I: OS DIREITOS DA CRIANÇA COMO DIREITOS HUMANOS

4. UM SISTEMA DE JUSTIÇA ADAPTADO ÀS CRIANÇAS

Os direitos da criança desenvolveram-se consideravelmente nas últimas três décadas e consequentemente tornou-se evidente que as crianças têm necessidades particulares que devem ser tidas em conta, especialmente quando a criança contacta com o sistema de justiça (Parliamentary Assembly, 2014: 1). Foi nesse sentido que o Comité de Ministros do Conselho da Europa (2013: 7-31) desenvolveu e adotou, em 2010, um conjunto de diretrizes sobre a justiça adaptada às crianças, instrumento de carácter não vinculativo, com o principal objetivo de garantir que a justiça é adaptada às crianças, independentemente das circunstâncias em causa, e que trata as mesmas com “dignidade, respeito, cuidado e equidade”, isto é, pretende assegurar que todas as crianças têm acesso à justiça de igual forma e são tratadas com o devido respeito e de forma apropriada. As diretrizes sobre a justiça adaptada às crianças foram elaboradas com o propósito de proteger as crianças e jovens da vitimização secundária muitas vezes resultante do contacto dos mesmos com o sistema judicial, sobretudo pelo meio da promoção de uma abordagem integral da criança, fundamentada em procedimentos multidisciplinares. Como mencionaram as crianças e jovens consultados a respeito da elaboração destas diretrizes, este tipo de sistema de justiça não precisa de ser muito amigável e/ou protetor, mas deve constituir-se como um sistema responsável, alicerçado no profissionalismo, que assegure a administração da justiça e, por conseguinte, transmita confiança a todos os intervenientes processuais.

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Um sistema de justiça adaptado às crianças fundamenta-se nos seguintes elementos gerais:

Esquema 1. Elementos gerais da justiça adaptada às crianças. Fonte: Comité de Ministros do Conselho

da Europa (2013: 20-24).

As diretrizes da justiça adaptada às crianças subdividem-se em antes, durante e depois do

processo judicial, porém, como o intuito deste estudo é verificar se o direito da criança a ser ouvida nos processos judiciais que lhe dizem respeito é efetivamente garantido, é pertinente fazer uma análise mais pormenorizada das diretrizes relacionadas com a justiça adaptada às crianças durante o processo judicial, que são as seguintes:

Acesso ao tribunal e ao processo judicial: As crianças, como titulares de direitos, devem

ter acesso a recursos que possibilitem o exercício efetivo dos seus direitos ou a oposição ao desrespeito dos mesmos. Desse modo, a legislação nacional deve, de forma adequada, facilitar o acesso das crianças ao tribunal pelo meio da utilização de recursos que salvaguardem os direitos das crianças, a partir de um aconselhamento jurídico apropriadamente concedido.

Aconselhamento jurídico e representação: As crianças devem ter o direito a serem

individualmente representadas por um advogado nos processos judiciais em que subsistem conflitos de interesses entre a criança e os seus pais ou outros intervenientes processuais. Os advogados que representam as crianças em tribunal devem ter conhecimentos sobre os direitos da criança e assuntos relacionados, mas também receber formação constante e aprofundada, com o intuito de serem capazes de comunicar com as crianças de acordo com o seu nível de compreensão. Estes devem facultar à criança todas as informações e esclarecimentos necessários no que se refere às prováveis consequências das opiniões que estas venham a expressar.

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Direito a ser ouvido e a exprimir a sua opinião: O direito da criança a ser ouvida é um direito e não um dever. As crianças devem ser inquiridas acerca da forma como querem ser ouvidas e as suas opiniões devem ser tidas em conta de acordo com a sua idade e maturidade. Nunca se deve impedir a audição de uma criança somente em razão da sua idade, pelo que um juiz não deve, a não ser em atenção ao interesse superior da criança, recusar ouvir uma criança que tenha tomado a iniciativa de depor num processo judicial que lhe diga respeito. Também deve ser facultada às crianças toda a informação necessária sobre o modo como podem exercer eficazmente o direito a serem ouvidas, incluindo o esclarecimento de que o direito a serem ouvidas e a que as suas opiniões sejam tidas em conta não determinará, obrigatoriamente, a decisão final. As decisões judiciais em que as opiniões das crianças não tenham sido consideradas devem ser corretamente fundamentadas e explicadas às mesmas numa linguagem adequada ao seu nível de compreensão.

Evitar demoras injustificadas: A todos os processos que digam respeito a crianças deve ser aplicado o princípio da urgência para dar uma resposta rápida e, consequentemente, salvaguardar o interesse superior da criança.

Organização dos processos, ambiente e linguagem adaptados às crianças: As

crianças devem ser tratadas de acordo com a sua idade, necessidades especiais, maturidade e nível de compreensão em todos os processos. Antes mesmo do início da audição, as crianças devem estar familiarizadas com as instalações do tribunal e respetivos funcionários, nomeadamente nomes e funções. Estes profissionais devem relacionar-se com as crianças com o devido respeito e sensibilidade. As salas de interrogatório ou audição e de espera devem proporcionar um ambiente adaptado às crianças. As crianças podem ser autorizadas a fazer-se acompanhar pelos pais ou por adulto à sua escolha, caso não haja uma decisão estabelecida em contrário em relação a essa pessoa. As gravações de vídeo ou áudio e as audiências preliminares à porta fechada devem ser empregadas e tidas como provas admissíveis. No entanto, as crianças devem ser protegidas, sempre que possível, no que respeita a imagens ou informações que possam comprometer o seu bem-estar. As audiências em tribunal nas quais participem crianças devem ser adequadas ao ritmo e à capacidade de atenção da criança. Não devem ser muito longas e deve-se evitar o mínimo de interrupções e de distrações durante as mesmas, ainda que possam estar previstas algumas pausas.

Provas/depoimentos das crianças: A recolha do depoimento de crianças deve, sempre que

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nível de compreensão e as dificuldades de comunicação que as crianças possam ter. Por tudo isto, é necessário que o interrogatório seja sempre realizado pelo mesmo profissional, de modo a garantir a coerência da abordagem. O número de interrogatórios deve ser o mínimo possível e a sua duração deve ser adequada à idade e à capacidade de atenção da criança. Relativamente aos intervenientes processuais presentes no momento da audição, deve-se evitar o contacto direto ou a comunicação entre a criança-vítima ou testemunha e o provável infrator, com exceção dos casos em que criança-vítima o solicite. Apesar de não haver tantas exigências em matéria de prestação de depoimento, tais como a dispensa de juramento, não se deve, por causa disso, descredibilizar o depoimento prestado pela criança, do mesmo modo que não podem considerar-se inválidos ou não fiáveis depoimentos e provas apresentadas por uma criança em razão da sua idade. O interesse superior e o bem-estar da criança são as razões pelas quais o juiz deve poder autorizar que uma criança não preste depoimento. Contudo, deve ser analisada a possibilidade de recolher depoimentos de crianças vítimas e testemunhas em espaços especialmente configurados e adaptados às crianças.

Em conclusão, a adoção destas diretrizes constitui um grande passo na criação de um sistema de justiça adaptado às crianças e às suas necessidades enquanto intervenientes processuais. A aplicação destas diretrizes na prática poderia originar uma melhoria significativa no contacto das crianças com o sistema de justiça, um universo geralmente associado e concebido para os adultos.

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CAPÍTULO II: O DIREITO DA CRIANÇA A SER OUVIDA NOS PROCESSOS JUDICIAIS QUE