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Uma “cartografia” da alimentação durante o intervalo

3.1 A alimentação no cotidiano escolar e em seus espaços circundantes: caracterizando e

3.1.7 Uma “cartografia” da alimentação durante o intervalo

A organização do espaço escolar além de levar em consideração as questões físicas e pedagógicas, é também relacionada a questões sociais e etárias. No CEFTI Raldir Cavalcante Bastos pode-se perceber que existem distinções entre os diferentes espaços alimentares da escola, especialmente expressas nos momentos de intervalo das aulas.

Para se compreender as relações grupais-etárias e sociais construídas no espaço escolar denominou-se “cartografia da alimentação” a distribuição/ locação/ agregação dos

alunos em diferentes grupos a partir do tipo de alimento que consomem e da faixa etária, que evidencia parâmetros da educação do gosto alimentar fomentado pela instituição.

NOTA DE CAMPO 14:

Os intervalos para recreação matutino e vespertino, em que ocorre a merenda na escola, me traziam algumas percepções conforme dias e o primeiro mês de observação do novo ano letivo (março de2011) se passavam. Percebia que alguns alunos do 2º ano, ou seja, aqueles que iniciaram a pouco tempo a trajetória escolar no Raldir Cavalcante, levavam snacks (pipocas, batatas fritas e afins, industrializados) para merendar. E, dessa maneira, não consumiam os gêneros alimentícios dispostos na merenda escolar, na verdade consumiam apenas durante o almoço.

Como existia uma divisão dos alunos quanto à ordem de oferecimento da merenda – primeiro os mais novos, depois os mais velhos – os alunos acabam ficando subdivididos entre os pavimentos da instituição escolar. No segundo pavimento, mais adentro e próximo à direção e coordenação pedagógica, estavam aqueles alunos do 2º e 3º anos, enquanto que os do 4º e 5º anos, como se merendavam posteriormente, permaneciam no primeiro pavimento, ou seja, no mesmo em que dava acesso ao refeitório e quadras da escola.

Diante desta configuração em torno da circulação dos alunos no espaço

escolar, percebi que existia uma “cartografia” da alimentação durante o

intervalo/recreio. Ou seja, um espaço específico no qual a presença de alimentos trazidos de casa como salgadinhos e frituras, apesar de pouco freqüente, ainda é presente somente no primeiro grupo de alunos (2º e 3º anos), ou seja, no segundo pavimento da escola, fato este que também é visível ao se observar os lixeiros, contendo resíduos dos citados alimentos. Fato que não foi observado no outro espaço, no qual está presente o grupo de alunos veteranos do Raldir Cavalcante. Desse modo, pode corresponder a mais uma ilustração acerca da transição/ mudança do gosto alimentar.

FOTOGRAFIA 24 - Merenda matutina: na imagem mais à esquerda, duas alunas do 2º ano do ensino fundamental comendo snakcs/ salgadinhos; e à direita, um grupo de alunos está

comendo os “snakcs”, trazidos por outro aluno, que logo foram socializados para vários

presentes.

A observação da rotina alimentar da escola denota que aqueles do 2º e 3º ano merendam primeiro, por serem menores e ficam no segundo corredor da escola, separados para melhor organização; enquanto que os alunos do 4º e 5º ano permanecem no primeiro corredor, mais próximos ao refeitório. Contudo, esse agrupamento apesar de ser uma determinação da escola para organizar/ melhorar a distribuição da merenda, permite evidenciar os hábitos de determinados grupos por hábitos semelhantes.

Como evidência tem-se a presença de alimentos trazidos de casa como salgadinhos e as frituras que, apesar de pouco freqüentes, ainda são presentes somente no primeiro grupo de alunos – 2º e 3º ano –, ou seja, no segundo corredor da escola (visível também ao se observar os lixeiros). Ao passo que os alunos dos anos subseqüentes que já vivenciaram o processo de educação do gosto alimentar são vistos consumindo exclusivamente os alimentos fornecidos no refeitório da escola. Ou seja, o gosto alimentar expressando aspectos de diferenciação de grupo social/ etário no intervalo das aulas entre os alunos do CEFTI Raldir Cavalcante.

O gosto alimentar, na perspectiva de Bourdieu (2007), é produzido pelas condições econômicas e sociais geradoras de dispositivos de distinção, ao apresentar as variadas classes sociais que se constituem associadas ao gosto.

Afinal, o autor conduz sociologicamente a compreender como o gosto diferencia as pessoas e desenvolve mecanismos de distinção entre os grupos sociais, cujas estruturas das posições objetivas ocupadas pressupõem a aproximação de uma determinada fração de classe que compartilha do mesmo habitus. No caso, um dos elementos que caracteriza as crianças no momento atual é a preferência e maior consumo de salgadinho, frituras e produtos industrializados. Desse modo, Bourdieu (2007) entende esse conceito como as práticas vivenciadas no passado que se refletem no presente, cujo alimento e projeção de sua continuidade no futuro persistem de acordo com seus pressupostos. Comporta, em sua expressão, um sistema de disposições que abrange as estratégias e as práticas sociais pelas quais a ordem social se materializa, tornando-a significativa e evidente à medida que essas disposições são incorporadas e interiorizadas mediante um processo de interação social e em um contexto constituído historicamente.

Com isso, a preferência por algum alimento ou por uma receita desenvolvida e passada de geração em geração, ou mesmo o modo de se vestir, de pentear, de ir a um evento cultural, são habitus, práticas socialmente percebidas, classificáveis e reproduzidas. Esses hábitos de vida legitimados são reflexos do capital social herdado dos pais e da família.

Muito embora Bourdieu (2007) afirma que esses capitais herdados são estreitamente relacionados com o capital cultural – caso visualizado no CEFTI Raldir Cavalcante Bastos – adquirido durante a formação educacional legitimada pelos diplomas emitidos junto às instituições escolares, universidades etc, aplicando-se acerca daquilo que é instituído nesses

espaços como “correto”, “adequado”, “saudável”. E, por conseguinte, atribui-se um valor

simbólico negativo em torno daquele gosto alimentar constituído no âmbito do grupo familiar do aluno.

A utilização desses capitais, somados ao capital econômico, montante de capital que possui liquidez e possibilidade de apropriar bens de consumo, gera a produção do capital simbólico citado, cujo processo de uso e consumo das coisas, bem como a participação ou não de eventos culturais – alimentação escolar, por exemplo –, gera a distinção de classes sociais. O habitus de consumo de um bem recebe um valor social pelo uso social a que é submetido – comer snacks faz mal à saúde, já a merenda da escola é saudável –, passando a ser condicionado pelo capital simbólico constituído pelo consumidor – comida ruim (sem gosto) e comida boa (gostosa) – e a sua necessidade de consumo, frente à distinção promovida – comer snacks em detrimento da merenda da escola faz-lhe sentir excluído do grupo escolar, enquanto que seu inverso, alimentar-se nas refeições escolares e não consumir salgadinhos, lhe faz pertencente àquele grupo.