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Uma civilização toma corpo

No documento Em Busca Da Idade Média- Jacques Le Goff (páginas 109-156)

Mercadores, banqueiros e intelectuais

4. Uma civilização toma corpo

No comecinho dos anos 1960, Raymond Bloch — que era, antes de mais nada, um grande especialista nos povos etruscos — me fez uma sugestão inquietante. Diretor, nas edições Arthaud, de uma coleção consagrada às grandes civilizações, propôs que eu escrevesse o volume sobre o Ocidente medie- val: um livro de importante dimensão, apresentando uma iconografia original. Ura estudo sintético de conjunto, como o que me pediam, pressupunha um vasto saber assim como uma reflexão aprofundada. Na época, eu tinha 36 anos e não se podia considerar, com base em meus dois pequenos livros precedentes, que tivesse uma "obra". De modo que eu não estava certo de ter suficiente experiência para o desafio.

Dois trunfos me levaram a bancar a aposta. Graças ao CNRS e a minhas temporadas no estrangeiro, tinha consa- grado muitos anos à pesquisa, livre de qualquer preocupação de ensinar. Isso tinha permitido que eu esrudasse um número considerável de documentos, especialmente em Oxford (1951-

1952) e em Roma (1952-1953). Além disso — como profes- sor — tinha me dedicado a desenvolver entre os estudantes a noção de cultura geral, a fim de que eles não tivessem uma visão fragmentária ou seccionada desse longo período.

Tinha lido, para esses cursos, muitos textos medievais, privilegiando a literatura, enquanto os medievalistas mergu-

lhavam tradicionalmente no domínio dos documentos: o ju- rídico, o administrativo. Também me interessavam as ima- gens e, mais amplamente, a arte. Em uma palavra, o projeto respondia, na minha opinião, às idéias dos Annales, segundo as quais a história para se renovar deve recorrer a documen- tos desconhecidos ou insuficientemente explorados.

O pedido de Raymond Bloch coincidia com uma outra encomenda. Pierre Bordas tinha me confiado a redação de um manual de ensino para as classes de Quatrième — crian- ças de 12 ou 13 anos. Exatamente como Arthaud, o que Bordas visava, com a iconografia, não era "ilustrar" uma obra, mas fazer "compreender" através de uma visão mais ampla do mundo, fazer com que se penetrasse nas sensibilidades, nos códigos que fazem uma civilização. Não se tratava de mergu-

lhar numa documentação já pronta e acabada: era preciso buscar, propor, produzir — e isso me parecia significativo. A necessidade de me dirigir a colegiais me levava ao esforço da síntese e da explicação.

A palavra civilização não cobre uma área muito vasta? Falar de uma cultura do Ocidente medieval poderia ser uma possibilidade.

Não, estamos diante de uma civilização; diante de um corpo com uma força coerente. Isso se organiza a partir dos séculos VI e VII,completa-se por volta do século XIII para se desfazer pouco a pouco no correr dos séculos XVII, XVIII e XIX. Prefiro, aliás, essa palavra corpo, muito medieval, à pa- lavra sistema. As maneiras de sentir e de pensar, caras a Mare Bloch (meu grande mestre, ainda que eu não o tenha conhe- cido), a percepção do espaço e do tempo supõem, em relação

U M A C I V I L I Z A Ç Ã O T C M A C O R P O

a esse longo período, a adesão comum a uma concepção do mundo — uma Weltanschauung, para retomar o vocabulário de um Max Weber.

Eventualmente, eu poderia adaptar essa expressão alemã, mas ela me parecia ao mesmo tempo muito filosófica, muito ideológica e muito limitada, tornando mais consistente essa "cultura material" que a arqueologia medieval nos permite conhecer melhor desde a segunda metade do século XX. Pa- recia-me também, mergulhando nos manuais de confissão, percorrendo os numerosos sermões dos pregadores, que a Idade Média tinha modelado noções de polidez, de códigos morais, até de urbanidãde extremamente novas, na medida em que essa expansão das cidades, dominada, não tinha pre- cedente. Constituiu-se uma civilidade urbana, paralela à cor- tesia do mundo dos nobres. Só a palavra civilização integrava harmoniosamente os valores de cima e os valores de baixo. Lucien Febvre falava da importância dessa oposição: as vi- sões à francesa falam de civilização;a ciência germânica fala de cultura.

O CÉU DESCE S03RE A TERRA

Há portanto um quadro tacitamente ou explicitamente admitido.

A civilização do Ocidente medieval é profundamente, in- timamente, marcada pela noção de Criação. Os homens e as mulheres da Idade Média crêem no Deus do Gênesis. O mun- do e a humanidade existem porque Deus quis assim, através de um ato generoso.

Esses homens, essas mulheres, também querem saber mais. Sábios se põem a calcular a datada Criação, segundo um côm- puto tirado das Escrituras. Até o século XVII, pensa-se gene- ralizadamente que essa criação remonta a 4.000 ou 5.000 anos antes do nascimento do Salvador. Acrescento imediata- mente que esse número não é entendido como o entendemos hoje. Quando se diz 5.000 anos, na Idade Média, isso vale como valem para nós milhões de anos. Trata-se de um tempo longuíssimo, inimaginável.

Os sábios estabelecem, não sem debates, uma cronologia; situam os fatos, etc. Isso supõe uma leitura crítica. Não se fica na simples repetição da Bíblia, que é analisada como uma fonte "incontestável" de dados. Tudo começa pela narrativa da queda (Adão e Eva), Vem a seguir a lenta escalada — atra- vés da história dos patriarcas e de Israel — no sentido do nascimento do Salvador. Depois disso, cada episódio da vida de Jesus, cada um de seus ensinamentos, oferece o modelo que cada homem, cada mulher deve imitar. Por fim, fechan- do o conjunto das narrativas canónicas, o Apocalipse de João, de Patmos, oferece um completo material figurado, metafó- rico, com o objetivo de pensar o Juízo Final e o fim dos Tem- pos que se seguirá; numa tentativa de imaginar essa vida eterna, afinal plena e completa em uma Criação totalmente transfigurada. Sou dos que deploram que, com a escolha apo- calíptica, esse pensamento do fim da história se perca em elo- cubrações, belas mas irracionais e mistificadoras.

Em Cambridge, noséculo XVIII, ainda se ensinava que o mundo tinha sido criado 4.004 anos antes do nascimento de Cristo, em 26 de outubro, às 9 horas da manhã. Hoje rimos desses cálculos. Alguns fundamentalistas americanos, que se dizem criacionistas, mantêm contudo em nossos dias — ape- sar do absurdo científico — uma crença no texto ao pé da

letra. Claro, sem nenhuma concessão a seu sistema, podemos compreender-lhe a lógica, que repousa na idéia de que a Bí- blia é um livro de história e o Gênesis uma cosmologia.

Desse ponto de vista, os criacionistas refletem uma con- cepção dos textos sagrados muito próxima daquela partilha- da pelos grandes espíritos durante séculos. Os exegetas medievais buscam sem dúvida o sentido segundo textos, suas interpretações alegóricas e espirituais. Consideram, entretanto, o sentido primeiro, literal, como um documento informativo. Para a Idade Média, e mesmo mais remotamente, a narrativa da Criação não trazia problemas como narrativa. Simples- mente continha pontos obscuros, elipses e contradições pre- tensamente aparentes — e havia um esforço no sentido de delas fazer um levantamento.

A essa abordagem não faltava audácia. Tentar "fazer his- tória" assim, com a Bíblia, antecipa alguns de nossos méto- dos modernos — ainda que as premissas sejam, como o são, equivocadas. O grande salto só se dá no fim do século XIX quando outros livros — mais antigos do que a Bíblia — são descobertos e quando os eruditos deixam de ver nas Escritu- ras uma base de dados. Antes que fossem conhecidos os pri- meiros avanços da egiptologia, persistia um acordo geral: a Bíblia é o livro mais velho do mundo, portanto o mais vene- rável e o mais verdadeiro, uma vez que o antigo por definição parece ser mais confiável do que o presente.

É preciso então distinguir com clareza de que maneira se via a Criação, e a crença em um Deus criador. Porque afinal essa crença é que é central.

A noção de criação se liga a uma concepção de Deus, da natureza e do homem. A coerência nesse caso é mantida, pen- sada, ordenada, reordenada, por um organismo coerente ele próprio: a Igreja. A isso corresponde uma sociedade hierár-

quica, centrada em torno do dominium: a dominação da se- nhoria. O dominium insere — encarna — a função divina na sociedade humana. Supõe uma visão hierárquica. Hierarquia que não deve ser compreendida como uma relação de forças unívoca: o rei no alto, o súdito embaixo. O movimento é recíproco. Deus se encarna, o homem se diviniza.

Vemos aqui a descida do Céu sobre a Terra a que já nos referimos. O Céu vem viver entre nós. Isso reforça, claro, nossa deferência diante da Majestade. Mas se o Céu se põe no nível da Terra, isso também significa que há uma transfi- guração da Terra, que nos vemos num movimento ascenden- te. Para os homens e as mulheres da Idade Média, a hierarquia não tem a rigidez que terá no absolutismo e no Antigo Regi- me. Não esqueçamos, na verdade, que o "horror feudal" tão abominado pelos revolucionários — o Antigo Regime — não passa de um sistema de governo remodelado a partir dos anos 1600. O Estado monárquico e hierarquizado que precede, na França, o Antigo Regime não tem as mesmas características.

Se o rei medieval está no alto, debruça-se sobre os súditos e os súditos podem subir até ele. O mais humilde habitante da aldeia está convencido de que pode falar com o rei, que o rei é acessível, como um bom pai, ou antes como Deus na terra. E os próprios reis se vêem como pais de seus povos ou antes como intermediários entre Deuse esses povos. Mais tarde tentei com- preender, através de São Luís, o ordenamento de um corpo monárquico medieval —que os escolásticos consideram o me- lhor entre os corpos políticos possíveis, no sentido aristotélico. A Encarnação supõe igualmente a existência de uma His- tória. Há uma História antes de Jesus e outra depois de Jesus. O tempo do Antigo Testamento se orienta no sentido da vin- da do Cristo. Com a ascensão aos céus, o Cristo inaugura um novo tempo, também este com uma orientação: é o tempo

que leva ao fim do Tempo. Esse tempo que virá não supõe realmente um progresso, no sentido em que o entendemos, uma vez que a sociedade medieval — já o vimos — pratica- mente não aprecia a novidade, mas fixa uma direção. A hu- manidade, depois da queda, recebeu a promessa de uma salvação. A salvação nos foi dada, num momento preciso, por alguém muito preciso: Deus feito homem. E tudo se diri- ge, desde então, no sentido do momento de sua volta. Está nisso o fim do tempo cíclico caro à Antigüidade, ainda que esse tempo cíclico subsista absorvido pelo calendário litúrgico. O cristianismo medieval não subverte somente a relação com o tempo, os ciclos e a duração. Esforça-se por encarnara encarnação, se assim posso dizer, graças à eucaristia: cada missa, cada dia, em todo lugar, põe Deus entre os homens hic et nunc, aqui e agora. Receber a hóstia é se tornar membro do corpo de Cristo, participar do grande corpo místico for- mado pela totalidade dos homens, os vivos e os mortos.

Tudo isso nada tem de uma longínqua teoria. A Igreja me- dieval — a sociedade medieval em seu conjunto — esforça-se para viver a prática, vivê-la concretamente. Chega a isso graças a um constante trabalho sobre a liturgia e os sacramentos. A própria eucaristia, a comunhão, só acha sua expressão "defini- tiva" no século XIII, com a instauração do dia de Corpus Christi. Desde as origens do cristianismo, a eucaristia é o modelo de tudo que existe, de tudo que tem valor. Ela é o corpo de Cristo. Ela une o corpo de cada fiel a um corpo superior, místico. Melhor: a eucaristia antecipa a ressurreição. Presen- ça do Cristo ressuscitado, ela introduz o crente na ressurrei- ção, que ele só virá a conhecer plenamente depois da morte, quando será transfigurado em corpo glorioso, se preparou sua salvação através de um encontro de seu esforço pessoal com a graça de Deus. Sem dúvida, nunca houve idade tão carnal

como essa idade espiritual. A crença na ressurreição da car- ne, que é o contrário da reencarnação, estrutura essa socieda- de de maneira totalmente inédita se comparada com outras religiões e outras sociedades do mesmo período.

Forque o senhor faz menção especial da festa de Corpus Christin Corpus Christi — que a Igreja continua a celebrar hoje sob o nome de festa do Santíssimo Sacramento — tem lugar, em princípio, na quinta-feira que se segue ao domingo da Trindade (8o domingo depois da Páscoa). Sua primeira cele-

bração data de 1264, em Liège. O papa Urbano IV, nesse ano de 1264, estende a toda a Igreja essa festa do c o r p o de Cristo, marcada p o r unia procissão solene que cada cidade organiza, ou cada aldeia. O Santíssimo Sacramento tem, nessa festa, uma "entrada" verdadeiramente real, seguido pela comuni- dade urbana que se dá em espetáculo a si mesma em torno do Corpo de Deus. Porque uma procissão medieval põe em cena toda a hierarquia: cada um corn seu lugar, suas cores, suas insígnias, etc; dos mais importantes aos mais humildes.

O poderoso dispositivo das festas e do calendário consti- tui o quadro temporal fundamental de toda a sociedade. En- tre esses momentos excepcionais que são os dias feriados (do latim cristão feriatus, dia de festa), Corpus Christi coroa um longo esforço da Igreja. Urbano IV o instaura para marcar com clareza a importância da eucaristia, num tempo em que os fiéis só comungavam raramente. Antes do Corpus Christi, só os que comungavam freqüentemente viam o corpo de Cris- to. Agora esse corpo passa a ser mostrado a todos de maneira suntuosa e gloriosa. E uma das conseqüências do famoso con- cílio de Latrão IV: generalização da confissão, importância destacada da comunhão.

Corpus Christi confirma assim de maneira forte a escolha feita pelo cristianismo ocidental. C o m o qualquer religião, o catolicismo dispunha de dois métodos contrários para garantir o culto e organizar a liturgia. Seja a ostensão, a "monstran- cey\ como se dizia no francês antigo. Seja a ausência, o segredo.

O Ocidente escolheu o primeiro caminho. Bizâncio e o cristianismo oriental preferem uma certa forma de retração, sob influência da pressão anicônica* que o judaísmo e depois o islam não cessavam de exercer. Na tradição ortodoxa, tudo repousa sobre a revelação do que está oculto: dentro da igreja mesmo, o santuário não está imediatamente acessível nem visível. Está no coração da iconostase, pequena divisão fechada por três portas e decorada por ícones. Há certamente uma gradação compa- rável nas igrejas ocidentais. O fiel não tem acesso diretamente ao coro, e a hóstia consagrada fica depositada no interior do tabernáculo — mas no Ocidente tudo é imediatamente visível, mesmo do fundo da nave. Não há a sensação do mistério es- condido e depois desvelado que caracteriza a liturgia ortodoxa. Os ocidentais nem hesitam em ajustar o Santíssimo Sacramento a um ostensório e depois sair com ele da igreja em procissão. No Oriente, as procissões são feitas em torno dos ícones. Da mesma forma o rei medieval mergulha simbolicamente no coração de seu povo, enquanto que o absolutismo do Antigo Regime in- verte a tradição medieval. Nenhum rei da Idade Média seria "isolado" como Luís XIV foi em Versalhes.

Para o Corpus Christi, instala-se o ostensório debaixo do objeto mais sacralizado — e mais sacralizante — da Idade Média ocidental: o pálio. Percorrer a cidade sob um pálio, eis o a t o real por excelência. Compreendamo-nos bem. N ã o se

adapta ao Corpo de Deus um rito real: é o rito real que se ins- pira no Corpus Christi, não o inverso. O rei, corpo físico e corpo místico, está presente sob um pálio porque o Santíssimo Sacramento o esteve antes dele. A primazia é da Encarnação. O Ocidente guardava uma memória, mais ou menos exata, dos ritos imperiais. E por muito tempo houve hesitação entre os que rodeavam os reis: o rei devia permanecer inacessível, à moda oriental, ou devia, ao contrário, mostrar-se? A festa de Corpus Christi determinou para que lado a balança se inclinaria: o rei se mostra. Até o fim da Idade Média política, prefere-se que ele permaneça em sua cidade, no meio de seu povo. Quan- do viaja, o rei de França "entra" em cada uma de suas cidades de maneira solene — "entradas" dignas de Corpus Christi — para deixar bem claro que está na cidade. Quando o povo de Paris vai procurar em Versalhes "o Padeiro, a Padeira e o Padei- rinbo"* estamos diante de um velhíssimo sentimento: é preci- so que o rei volte a viver na cidade, no meio dos seus. Não há nenhum acaso no fato de os parisienses terem escolhido a metá- fora do pão de um modo simbólico, para além do medo con- creto das fomes: o pão verdadeiro é a hóstia, na qual está a presença real. Não digo, evidentemente, que os revolucionários tenham tido um programa teológico. Seu simbolismo, entretan- to, mergulhava profundamente nas raízes. E se sabe, graças a Mona Ozouf, a que ponto a festa revolucionária tenta reinven- tar, com finalidades republicanas, os velhos hábitos litúrgicos.

A derrota do utópico e poético calendário revolucionário é assim a contrario* a demonstração do brilhante sucesso do calendário ocidental cristão. Para "descristianizar" a França, julgaram os revolucionários que seria preciso desmantelar o instrumento que tir.ha sido adotado pela Igreja — Igreja que tinha feito do tempo simultaneamente um q u a d r o e um ensinamento.

A Idade Média, até o concílio de Trento e o calendário gregoriano no século XVI, não pára de trabalhar sobre o ca- lendário, sob a conduta da Igreja. Resulta disso uma remode- lação completa da maneira de organizar e de viver o tempo.

O tempo cristão medieval baseia-se nos dois mais impor- tantes calendários anteriores, os mais significativos na zona geográfica em que o cristianismo se instalou. Para a vida pro- fana e cotidiana, adota-se o quadro do calendário pagão anti- go instituído por Júlio César, o calendário juliano, com seus doze meses. Mas o calendário juliano sofre transformações profundas a partir do calendário judeu: a centralidade da data de Páscoa e a noção de semana, basicamente. O calendário cristão é decididamente solar, mas os especialistas cristãos do calendário, os computistas, não chegaram a dar uma data fixa para a Páscoa. Restou assim essa instabilidade do calendário que mostrou, no período contemporâneo, seus inconvenien- tes, especialmente em matéria de calendário escolar.

A França, por exemplo, só recentemente desligou as da- tas das férias ditas de Páscoa do dia da festa de Páscoa. Con- sidero a adoção da semana uma das grandes revoluções do calendário. O ritmo dos sete dias e a sacralização do domin- go (sobre o modelo da criação), até hoje objeto de lutas sindi-

cais, deu u m a atenção particular ao trabalho e ao descanso (o respeito ao repouso dominical foi objeto de uma rigorosa re- gulamentação na época carolíngia). Essa divisão determina um ritmo de atividade econômica que, penso, foi muito favo- rável à boa produtividade do Ocidente medieval.

Um problema importantíssimo era a determinação da data da criação, data do início da história e do calendário. A Igreja medieval adotou cálculos de iirn monge grego do século VI, Dionísio, o Pequeno, que se baseou sobre as raras observa- ções nesse sentido do Novo Testamento. Fixa o nascimento de Jesus, a Encarnação, no ano 754 do calendário romano (que tomava como base a data suposta da fundação de Roma). E o ano I. A partir daí o calendário se divide em antes e de- pois de Jesus Cristo, não existindo ano 0, o que complica ainda hoje o cálculo dos séculos (divisão surgida no fim do século XVI) e dos milênios.*

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Mas Dionísio se enganou. Pensa-se hoje que o nascimen- to de Jesus na realidade teve lugar por volta do ano 4 a.C. De qualquer maneira, esse calendário só muito lentamente se estabeleceu na Cristandade. Só no século X sua difusão atin- ge a todas as elites. A lentidão dessa difusão foi uma das ra- zões para que não se desse crédito aos pretensos "medos do ano Milw, inventados pelo romantismo: só um pequeno nú-

mero de clérigos sabia que se vivia o ano 1000!

A Antiguidade tardia e a Alta Idade Média também intro- duziram outras inovações importantes no domínio da medi- da do tempo e do tempo vivido. Nessa época em que o modelo monástico exercia influência forte, os monges adotaram uma divisão do tempo cotidiano em horas canónicas, desde o des-

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