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Em Busca Da Idade Média- Jacques Le Goff

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Jacques Le Goff

com a colaboração de Jean-Maurice de Montremy

Em busca da

Idade Média

TRADUÇÃO Marcos de Castro CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Rio de Janeiro 2005

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Esta obra tem sua origem numa série de conversas entre Jacques Le Goff e Jean-Maurice de Montremy. O texto foi inteiramente revisto por Jacques Le Goff.

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Sumário

PRÓLOGO 11

1. Tornar-se medievalista 15

IDADE MÉDIA SOMBRIA, IDADE MÉDIA CLARA: LUGARES-COMUNS 22 UMA REVOLUÇÃO: 0 LIVRO. UM PROBLEMA: AS FONTES 34

2. Uma longa Idade Média SI A NOÇÃO DE "RENASCIMENTO" 57 UM MILÊNIO E SEUS PERÍODOS 63

1215: LATRÃO IV, O CONCÍLIO CAPITAL 73

3. Mercadores, banqueiros e intelectuais 87 A INVENÇÃO DA ECONOMIA 96

UM OUTRO ESPAÇO: 0 PENSAMENTO 104

FRANCISCO DE ASSIS. MENDICANTES NA CIDADE 110

4. Uma civilização toma corpo 121 O CÉU DESCE SOBRE A TERRA 125

INFERNO, PURGATÓRIO, PARAÍSO 139 EUROPA OU OCIDENTE? 147

A FEUDALIDADE 156

O PRESTÍGIO DO DIREITO 161

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S U M Á R I O

5. Na terra como no céu 169 o HUMANISMO MEDIEVAL 176

HEREGES, JUDEUS, EXCLUÍDOS 186

OS ANJOS E OS DEMÔNIOS 193

QUANDO MARIA PROTEGE. A "BOA MORTE" 202

EPÍLOGO 211

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Prólogo

Jacques Le Goff — ver-se-á no início destas conversas — par-tiu muito cedo em busca da Idade Média. O começo de tudo foi a emoção de um jovem leitor: a floresta de Ivanhoé, figu-ras arrebatadofigu-ras, Walter Scott, o romance histórico...

Claro, o pequeno tolosino ainda não sabia que as duas palavras (romance, história) carregavam em si mesmas uma longa aventura humana, espiritual e concreta. Entretanto já se desenhava uma paisagem interior, cuja exploração até ago-ra continua sendo o "encanto" do erudito, do sábio, do pro-fessor, do chefe de equipe, irremediável e incuravelmente curioso. Curioso para perceber a emoção, a poesia, o que está por trás das coisas. Curioso para compreender aqueles ho-mens, aquelas mulheres, aquelas sensibilidades desaparecidas. Mas curioso, principalmente, ao viver o tempo presente, cujos choques e violências são objeto de seu interesse apaixonado tanto quanto o passado.

A investigação, para Jacques Le Goff, nunca cessou. Qua-se Qua-se poderia dizer: a busca. Porque a Idade Média, cujo estu-do ele empreendeu, era bem mais estu-do que um períoestu-do. Le Goff teve rapidamente a intuição de encontrar um mundo, uma civilização, muito próximos e muito longínquos. Apesar do intenso trabalho de esquecimento — às vezes de negação — que leva nossa cultura a se afirmar contra as suas origens (até

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mesmo a criar essa expressão cruel, a "Idade Média"), os in-tensos mil anos que apaixonam Le Goff nos falam muito de perto. E exatamente o nosso problema: somos freqüente-mentes medievais quando nos vangloriamos de sermos mo-dernos; e freqüentemente não passamos de "apreciadores da Idade Média" quando cremos nos enraizar no tempo das ca-tedrais, dos cavaleiros, dos lavradores e dos comerciantes. Os códigos e os valores desse longínquo passado-próximo são bem mais estranhos a nós do que habitualmente pensa-mos. Mas lhes devemos bem mais do que queremos admitir.

Curioso, por isso mesmo sempre buscando, Jacques Le Goff compreendeu — e fez compreender — a que ponto a própria Idade Média buscava alguma coisa. O historiador o reconhece de bom grado: se ele contribuiu para mudar nossa visão da Idade Média, a Idade Média contribuiu para mudar sua própria visão do presente.

No correr destas entrevistas, o grande medievalista pro-põe uma síntese de seus trabalhos. Conta como foram escri-tos seus livros, e como se desenhou pouco a pouco uma visão global dessa civilização que modelou a cultura "ocidental", em suas qualidades como em seus defeitos. Fernand Braudel falava de economia-mundo. Jacques Le Goff nos convida a descobrir uma civilização-continente. Porque é bem a Euro-pa que se desenha pouco a pouco a Euro-partir dessas pesquisas no espaço e no tempo. Uma Europa de fronteiras mais culturais do que geográficas. Uma Europa que jamais foi inteiramente uma "cristandade", ainda que, durante séculos, tenha se ima-ginado como tal. Jacques Le Goff mostra com clareza como esse ideal permitiu à Idade Média construir-se — antes de gerar o nosso próprio tempo, não sem dilacerações. A pró-pria "cristandade" evoluiu paralelamente, surgindo de um

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modelo territorial, o Ocidente, que não era o seu originaria-mente.

A cidade celeste caminha na cidade terrestre. Não pode se fixar nesta, nem se confundir com ela. A cidade celeste atravessa a cidade terrestre. Porque a cidade aqui de baixo está decadente, enquanto que a cidade lá de cima ignora os achaques do tempo. Esse foi o ensinamento de Santo Agos-tinho, incansavelmente retomado e discutido pelo pensamen-to medieval. Esses homens, essas mulheres, pensavam que o mundo estava no fim de sua caminhada, a humanidade desgastada, declinante. De todo modo, não deixaram de in-ventar, de melhorar, de aperfeiçoar. Esses homens, essas mulheres, imaginavam um universo fechado, os valores solidamente encarnados nos lugares e nos objetos. Peregri-navam, contudo, de passagem para um outro mundo, no sentido de um outro espaço, na esperança de um outro tem-po. Criaram o novo, ainda que o próprio princípio de "no-vidade" lhes parecesse detestável. Quanto a nós, podemos nos perguntar se nossa pretensão de sermos sempre mais "novos" não trai, ao contrário, imobilismo e embotamento. Assim projetamos sobre a Idade Média as nossas sombras, sem lhe ver as luzes.

Revisitar a civilização medieval com Jacques Le Goff é descobrir o dinamismo e o otimismo racional próprios de nossos predecessores. Sem para isso idealizá-los. Neste início do século XXI, claramente aberto a "grandes medos", esses reencontros podem nos reservar agradáveis surpresas.

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BI

Estas conversas se deram a cada 15 dias, de 21 de fevereiro a 24 de julho de 2002. Jacques Le Goff reviu, enriqueceu e desenvolveu o texto durante os meses de agosto e setembro. As questões apresentadas, quase sempre reduzidas ao míni-mo, foram mantidas para conservar — na lógica própria da escrita — o ritmo e a amplitude que fazem de Jacques Le Goff um digno herdeiro dos mestres medievais, sempre preo-cupados em atrair a atenção de seu público.

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Na vasta floresta que cobre "a maior parte das pitorescas co-linas e vales entre Sheffield e a graciosa cidade de Doncaster", dois homens conversam neste ano de 1194: o porqueiro Gurth e o bufão Wamba, as primeiras personagens com que topa o leitor de Ivanhoé (1819). A paisagem leva a sonhar. Walter Scott tem prazer em descrevê-la: "O sol iluminava com seus últimos raios uma das belas e verdes clareiras [...] Carvalhos de ampla copa, grosso tronco, grandes galhadas, testemunhas talvez da marcha dominadora dos soldados romanos, esten-diam às centenas seus galhos nodosos sobre um lindo tapete de relva..."

Foi dessa maneira, em 1936, que descobri a Idade Média. Tinha doze anos, vivia em Toulon, onde meu pai ensinava inglês. Já tinha paixão pela história — a idéia de estudá-la me veio desde a idade de 10 anos. Não me lembro infelizmente por quê...

Lendo Walter Scott, não restou qualquer dúvida: a histó-ria confirmava sua influência sobre mim. E assumia os traços da Idade Média. Uma Idade Média situada num cenário ma-terial de encantamento: a floresta, claro, depois o castelo de Torquilstone cujo cerco e assalto ocupam uma boa parte da narrativa; e mais ainda, talvez, a justa de Ashby, com suas barracas, suas tendas, seu tumulto, suas cores, suas tribunas,

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E M B U S C A O A I D A D E M É D I A

ocasião em que se misturavam o povinho, mercadores, da-mas nobres, cavaleiros, monges, sacerdotes.

Não pretendo ter descoberto, em idade tão tenra, a im-portância da civilização material; menos ainda, tendo me apai-xonado pelo romance lvanhoé, posso dizer que tenha criticado os programas escolares, freqüentemente reduzidos à narrati-va política, aos "grandes homens" e aos acontecimentos. E claro, eu ignorava que, desde 1929, existia um certo movi-mento denominado Annales, tão importante para mim, mais tarde.

Igual paixão me arrebatou, uns quarenta anos mais tarde, lendo a Bataille de Bouvines (1973), na qual Georges Duby me fez reviver as lembranças do torneio de Ashby. Tive a mesma sensação, vendo Duby a valorizar o complexo "mili-tar-industrial" das justas e batalhas, tive o mesmo prazer que sentira outrora com a formidável aparição do cavaleiro des-conhecido — armadura de ouro e aço — trazendo sobre o escudo a inscrição "Desdichado", o Infortunado, o homem que desafia o selvagem templário Briand de Bois-Guilbert... Um torneio era verdadeiramente uma coisa enorme. Seria possível compará-lo com uma corrida de Fórmula 1: investi-mentos financeiros e técnicos, bases comerciais, vasta rede de subempreitadas, etc. A essas imagens, que nada tinham per-dido de seu poder de encantamento, Duby acrescentava suas demonstrações de historiador — explicar em profundidade o que de saída não parece passar do pitoresco e de casos. Nesse meio-tempo eu me tornei medievalista.

Essa leitura teve, de imediato, uma conseqüência inespe-rada. Comovido com os sofrimentos dos judeus, causados pelos normandos, em particular as provações pelas quais pas-sa a bela Rebeca — Bois-Guilbert, decididamente

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repugnan-T O R N A R - S E M E O I E

te, a acusa de feitiçaria — logo desejei passar à ação contra o anti-semitismo e o racismo. Mas alguns de nossos amigos sus-peitavam das organizações que combatiam o anti-semitismo e o racismo, acusando-as de maçónicas e anticatólicas, o que inquietava minha mãe, descendente, por um lado, de italia-nos e altamente piedosa. Mandou-me ela consultar o arci-preste* da catedral de Toulon, que me garantiu: eu podia militar em tais movimentos. Rebeca, decididamente deslum-brante, foi um dos primeiros papéis de Elisabeth Taylor no soberbo lvanhoé de Richard Thorpe, de 1952.

Perdido no tempo, esse pequeno caso me parece revelador. O estudo da Idade Média tem suscitado sempre, em minha vida pessoal, "efeitos paralelos". Freqüentemente, depois de ter abordado tal ou qual tema da história ou da cultura me-dievais encarei de modo diferente as questões de hoje: questões graves, como as da guerra ou da violência; questões apa-rentemente mais superficiais, como a cozinha. Ainda que eu nunca tenha encarado a cozinha de modo superficial!

A Idade Média certamente não me trouxe soluções para o tempo presente. Em compensação, ela trabalhou em mim tan-to quantan-to eu trabalhei nela — e trabalhou em mim como ho-mem militante tanto no século XX como agora no XXI. Para adaptar uma fórmula de Stanislas Fumet, há uma história da Idade Média em minha vida, nas "dádivas" que a história faz ao historiador. A história me empurrou para a ação. Jamais eu poderia separar minha leitura de lvanhoé do entusiasmo que suscitava em mim o Front Populaire naquele mesmo ano de

*Era o pároco de uma catedral ao qual habitualmente o bispo delegava fun-ções. O título náo existe mais ína formação da palavra, preste é uma contra-ção do latim presbyter, vocábulo originário do grego presbúteros, que significa "mais velho" e, por extensão, "sacerdote"). (N. do T.)

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1936.* Não me lembro de acontecimento que me tenha pro-vocado o mesmo entusiasmo. A Libertação* * não me deu essa felicidade, pois não apagava nem a derrota nem a amargura dos anos negros, nem a descoberta do horror. Ah, mas 1936! Robin des Bois*** de um lado. Do outro as experiências sociais... Compreendi mais tarde que eu transferia minhas emoções (meus problemas, inconscientemente) do presente para o passado, que eu transformava em coisas vivas as coisas do passado. A Idade Média só me conquistou por seu poder quase mágico de me transportar para um ambiente novo, de me arrancar das in-quietações e das mediocridades do presente e, ao mesmo tem-po, de tornar o presente para mim mais ardente e mais claro. Notre-Dame de Paris não teve, sobre o senhor, o mesmo efeito ?

Li mais tarde, com prazer, o romance de Hugo. Era um dever escolar. Não teve para mim o mesmo sentido de

liber-to nome sofreu influência direta da Frente Popular da Espanha, cuja mítica guerra civil se iniciava naquele ano. Foi a coalizão dos partidos de esquerda (comunistas, socialistas e radicais) que ganhou as eleições de 1936 na França, empolgando o povo com a palavra de ordem "Pão, Paz e Liberdade". O su-cesso, particularmente dos socialistas, levou Léon Blum à chefia do governo. Mas os desentendimentos dentro das próprias facções da esquerda e a confu-são do período pré-Segunda Guerra Mundial não permitiram que o governo do Fror.t Popuiaire durasse muito e Léon Blum foi constrangido a demitir-se em 1937. Num breve período ce menos de um mês (março-abril de 1938), Blum voltou à chefia do governo, mas a exigência do fim das greves, por Daladier, e os problemas exteriores do país puseram fim ao espírito do Front Popuiaire. {N. do T.)

**Libertação da França do jugo nazista na Segunda Guerra. (N. do T.) ***Walter Scott, como se sabe, inspirou-se, para escrever Ivanhoé, nas histó-rias de Robin Hood, que os franceses também chamam de Robin des Bois (Robin dos Bosques). (N. do T.)

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dade. Acho, também, que o fato de ser muito bem escrito cria um paradoxo para Notre-Dame de Paris: sua soberba lingua-gem supera o conteúdo. E o conteúdo, em Hugo, não é a Idade Média, nem mesmo quando trata da vida de uma cate-dral. O conteúdo é o próprio livro, a formidável visão. Claro, Hugo tem como referência Walter Scott. Entretanto não se trata — não se trata mais — de um romance histórico. E uma visão.

De todo modo, não quereria deixar a impressão de que lvanhoé foi a causa única de minha opção pela Idade Média. Esse período histórico ainda era estudado no programa da Quatrième* Tive a sorte de ter nessa série um professor de História excepcional, Henri Michel. Ainda que não fosse um medievalista, ele sabia contar, sabia interessar os alunos e tra-tar de maneira imparcial os assuntos mais delicados; não se contentava em descrever: dedicava-se a explicar. Militante socialista, agnóstico, Henri Michel contudo falava muito bem da Igreja, o que não deixava de me seduzir, porque eu era um menino católico praticante, como o desejava minha mãe — enquanto meu pai era anticlerical, até mesmo anti-religioso.

Dando o pontapé inicial, Henri Michel já anunciava o essencial do jogo: "Na Idade Média, a Igreja domina tudo." Minha devoção de então — relativa, certamente, porém sin-cera — estava seduzida. Sensibilizava-me o fato de que um leigo tratasse do assunto com competência e respeito. Gran-de resistente durante a Segunda Guerra, Henri Michel tor-nou-se um especialista dos mais conhecidos sobre esse período.

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IDADE MÉDIA SOMBRIA, IDADE MÉDIA CLARA: LUGARES-COMUNS

Que visão se deve propor,; então, da Idade Média?

O que eu achava então já mudou muito — praticamente a seqüência de meus trabalhos alterou tudo em mim. Mas, à época, digamos que duas imagens se superpunham: uma Ida-de Média "negra" e uma IdaIda-de Média iIda-dealizada.

Tive a sorte, graças a Henri Michel e depois a outros mes-tres, de escapar dessas imagens. Que continuam a ter seu peso, ai de nós, sobre as mentalidades de hoje. A rica escola me-dieval francesa, apesar de seus sucessos científicos, parece não ter mudado nada nos meios de comunicação e nas idéias trans-mitidas. Às vezes me sinto desencorajado ao reencontrar intactos os dois clichês vindos dos séculos XVIII e XIX: de um lado a Idade Média obscurantista e, como contraste, a Idade Média "dos trovadores", suave. Fica-lhes a visão dos filmes, dos romances históricos, das publicidades. Recentemente, Carla dei Ponte — procuradora geral do Tribunal Penal Internacional — denunciava a "purificação étnica" empreendida por Slobodan Milosevic como uma prática "medievalista"\ Já nem falo da visão depreciativa, pois se trata de uma visão burlesca,

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propos-ta pelo filme Os visipropos-tantes... A concepção subjacente a esses julgamentos pré-fabricados revela, além de tudo, uma idéia falsa e primária do progresso e da história em geral.

Até mesmo pessoas cultas permanecem com uma visáo dessas aproximações, já extemporâneas na minha juventude. "Não estamos mais na Idade Média", clamavam os melhores espíritos diante das violências, dos atos bárbaros, dos mo-vimentos de multidão incontrolados. Em contrapartida, propunha-se uma outra versão, estilizada, procedente do ro-mantismo: a Idade Média era, para retomar um recente re-frão de sucesso, deturpando a obra de um grande historiador, "o tempo das catedrais", a fé simples e bela. Sonhava-se com uma época artesanal e erudita, numa escala simultaneamente humana e divina.

A primeira dessas tradições, a negra, remonta ao huma-nismo, ao autodenominado Renascimento (o primeiro a "en-volver em trevas a Idade Média" é Petrarca), e foi infelizmente retomada, como num revezamento, pelas Luzes. Estava bem instalada nos círculos influentes da III República. A segunda versão, "catedrais", constrói-se, por sua vez, depois da Revo-lução Francesa, quando Chateaubriand, contestando as Lu-zes, redigiu seu O gênio do cristianismo (1802), com o elogio da natureza e do gótico, da simplicidade, do ideal — grande livro poético, de resto.

Retomada e aprofundada por Charles Péguy, essa Idade Média popular, à francesa, seduzia antes da guerra tanto a esquerda como a direita. Isso permitia, é certo, grandes su-cessos corno a apresentação das companhias de teatro itine-rantes, com que uni Jacques Copeau depois um Jean Vilar percorriam as estradas desde antes da guerra. Daí sairão o Festival de Avignon e, lá, a espetacular utilização do famoso

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pátio do Palácio dos Papas. Mas isso não é a Idade Média. Com as melhores intenções, um grande cineasta como Mareei Carne recria em Os visitantes da noite uma Idade Média de segunda classe (1942). Acrescentem-se os devaneios das cor-porações, o espírito cavaleiroso, as pieguices do espírito corte-são, a bonomia rabelaisiana das trovas. Um espetáculo medíocre representado por atores em andrajos, nisso se transformou a Idade Média "enorme e delicada" de que falava Verlaine — tempo heróico, às vezes violento, bárbaro; simplesmente belo. Gide confessava que não pôde ler a Chanson de Roland* (o romantismo dela não guardava mais do que a trombeta de Roncevaux). Afinal, não se freqüentava a extraordinária li-teratura medieval, difícil de penetrar, mas, quando o con-seguíamos, ah, como era compensador! Q u e seria da cultura européia sem as canções de gesta, os romances arturianos, El cantar de mio Cid, Dante e Chaucer? Essa literatura — nem negra nem dourada — exprime esse tempo, esses homens e essas mulheres, cheios de força e de vida, incrivelmente cria-dores, distantes da verdade frouxa, do moralismo reacioná-rio ou da estética são-sulpiciana.**

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A insistência do regime de Vichy em explorar o filão de-sacreditou essas visões sempre mais regressivas, até acabar com elas. A versão "dourada", se assim posso dizer, conten-ta-se, na verdade, em ir contra a versão "negra", tomando o sentido inverso. Para acertar suas contas com as Luzes (ou com a idéia que fazia das Luzes), o regime de Pétain louvava em "sua" Idade Média um espírito de ordem e de fé dóceis, de um jeito muito pessoal. Tudo isso, seria preciso compreen-der, já vinha viciado desde os modernos e minado por agen-tes corruptores estrangeiros.

Essa Idade Média me foi oferecida — mas eu a rejeitei. Na época em que eu lia Walter Scott e me enriquecia com os cursos de Henri Michel, via a Idade Média, apesar de seus ecos contemporâneos, como um mundo longínquo, diferen-te do nosso. Nela conviviam práticas bárbaras e figuras subli-mes, impressionantes. Essa Idade Média já não vivia entre nós: tinha desaparecido. Era um sonho que se esfumava.

Minha única lembrança medieval de então, aquela do monte Saint-Michel, vista com a idade de nove anos, confir-mava essa distância. Saint-Michel "sob a ameaça do mar", diziam os homens da Idade Média! Para eles, o mar era algu-ma coisa de inquietante, de selvagem, ainda próxialgu-ma do caos bíblico, que de certa forma tinha escapado da organização inacabada da Criação. Talvez eu tenha então percebido con-fusamente esse espírito aventuroso: desafiar com pobres meios o desconhecido, a imensidão...

A verdadeira descoberta da Idade Média "concreta" deu-se portanto mais tarde, em 1939, eu tinha quinze anos. Afinal, vi vestígios medievais. Não foi em Toulon, cujo desenvol-vimento é bem mais recente. Por ocasião de uma viagem aos Pireneus, mudamos de trem em Toulouse. As poucas horas

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de tempo disponíveis aproveitei-as para visitar lugares. Assim tive a revelação da igreja abacial de Saint-Serain, a maior igreja romana da França. Fiquei profundamente emocionado. Pare-ceu-me evidente que se tratava de um outro mundo, muito distante daquela primeira metade do século XX na qual eu vivia. Quem então tinha construído aquilo e para quem? Como conhecer esses homens, essas mulheres?

Evidentemente, eu estava muito feliz por não viver na "Ida-de Média". Adivinhava-a "Ida-desprovida "Ida-de muitas das comodi-dades cotidianas de que dispunha em minha vida já naquele finzinho dos anos 1930. Senti, entretanto, uma certa nostal-gia, como se esse surgimento da Idade Média não fosse tão antigo, como se os laços rompidos nos privassem de alguma coisa, nos afastassem de homens que eu teria desejado ouvir. O torneio de Ashby construía sua pompa a partir do povo que lá se comprimia, tão próximo, entretanto tão diferente. Sentia essa multidão como coisa muito diferente de um pú-blico de um jogo de futebol ou de rugby.

Eu era jovem. Muitas coisas desapareciam, outras nasciam. Quando o cinema se tornou falado eu tinha seis anos. Nossa família ainda não tinha telefone, embora o aparelho já exis-tisse. Via claramente as mudanças que se processavam na re-lação espaço-tempo. O mesmo se pode dizer quanto ao automóvel (também não tínhamos um, aliás) e a tudo que se referia à vida do dia-a-dia. Só mais tarde apareceram os refri-geradores: durante anos vivemos no ritmo venerável das ge-ladeiras nas quais púnhamos blocos de gelo comprados nos entrepostos ou de vendedores ambulantes. De repente, po-díamos controlar o frio, enganar o tempo. Tive o "sentido da história" — o único que mais tarde não seria abalado; e ainda...

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Sentia muito claramente nossa entrada numa outra era. Adivinhava que essas mudanças materiais, cotidianas, eram um dos componentes fundamentais da História. Que a His-tória, ainda uma vez, não se limitava às batalhas, aos reis, aos governos. Uma certa maneira de ser e de pensar tornava-se ultrapassada. Mais tarde, chamaria esse movimento de mu-dança de mentalidade — mumu-dança que acompanharia as tro-cas materiais.

Certamente, eu não distinguia todos os estratos deposita-dos em nossas vidas pelos séculos sucessivos. Entretanto, via perfeitamente que ficava um pouco da Idade Média em nos-so mundo e em nossas existências e que essa Idade Média tinha passado, definitivamente — mas deixava heranças.

Parecia-me, para encerrar, que o desaparecimento se ti-nha precipitado, acelerado, liquidado, com a guerra de 14-18, cujas marcas, faltas, vazios permaneciam onipresentes em torno de mim. Por ocasião da derrota de 1940, eu tinha dezesseis anos. Vivi a Segunda Guerra. Mas não sentia duran-te esse período a sensação do fim de um mundo que anduran-tes me sugeria a lembrança de 14-18 conservada por meus próxi-mos e seus contemporâneos. A História, para mim, nos anos 30, também se passava do outro lado de um muro — a Gran-de Guerra, Gran-de que todos falavam — para reencontrar essa vida tão diferente, essas "pessoas médias", como nós, já qua-se exóticas, embora só vinte anos qua-se tivesqua-sem passado. A ju-ventude de meus pais a meus olhos tinha transcorrido num outro mundo. Com a irrupção espantosa de um futuro: o cinema.

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O senhor falou de nostalgia...

Sim, ainda que haja necessidade de ser claro. Minha Ida-de Média não Ida-devia nada aos modos neomedievais Ida-de que acabo de falar. Nela eu descobria, contudo, um prazer nostál-gico, indissociável da História em geral, e que, acredito, to-dos os historiadores sentem: o prazer nostálgico de uma luta contra a morte. A História mergulha na vida do passado, pro-longa essa vida desaparecida, e a ressuscita—ou, pelo menos, é como se a ressuscitasse, sabendo, entretanto, obscuramente, que essa ressurreição arrisca-se a ser apenas provisória.

O ofício de historiador situava-se, assim, para o adolescen-te que eu era, entre os ofícios que o homem tinha inventado para viver e fazer viver. Eu me sentia próximo dos médicos e dos artistas — sem dúvida, quanto a este último ponto, por causa de minha mãe, que me ensinava piano. Eu via, eu ouvia, que bastava correr os dedos sobre o teclado para que obras antigas revivessem, para que épocas passadas ressoassem entre nós... Um professor de história (não me ocorria então tomar-me um pesquisador) aos tomar-meus olhos era de certo modo pareci-do com um pianista. Tinha de decifrar, aprender, transmitir, restituindo a vida. Os documentos eram partituras e, em rela-ção aos médicos, o passado era um organismo humano ao qual era preciso dar vida, alguma espécie de vida...

Não me passavam pela cabeça nomes técnicos quanto às coisas que me atraíam, mas hoje posso dizer que desde cedo tive interesse por dois tipos de história: a história social e a história cultural. Duas histórias que se cruzavam, na minha inegável curiosidade pelos rituais e pela liturgia. Quer se tra-te dos torneios, quer se tratra-te, igualmentra-te, da Igreja.

Como disse, não me dominava — ao contrário de minha mãe — um sentimento religioso intenso, mas eu era sensível

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à religião que se expressava, para um menino de Toulon, sob a forma do catolicismo pós-tridentino, meridional. O Concí-lio Vaticano II, a revolução [da Igreja] dos anos 1960-1970, sacudiram tudo isso como que criando um outro mundo. As pessoas nascidas nos anos 50 só fazem disso uma idéia nebu-losa. Para as gerações posteriores a 1960, isso é chinês.

Minhas lembranças foram como que reconstruídas. Creio, porém, que o distanciamento já existia nos anos 1930. Distan-ciamento, mas não estranheza. Eu observava as velhas liturgias sem nelas me integrar, seja nos gestos, seja na emoção. Essas liturgias, afinal, não eram tão velhas assim: enraizavam-se no século XVII e, mais ainda, no ardente esforço de restauração que o século XIX representou. Pouco restava da Igreja me-dieval. Mas, seja como for, havia ainda uma presença forte dos velhos rituais, diante dos quais, a exemplo de tantas ou-tras pessoas, eu me via como na soleira de uma porta: um pé para dentro, outro para fora.

Poderia dizer as mesmas coisas de outros costumes, como a distribuição dos prêmios de íim de ano: os professores, de beca, a interminável litania das leituras de relações de premia-dos, a entrega de livros e de diplomas... Desde a classe de Quatrième, tais cerimônias me pareciam estranhas, tão fasci-nantes e "medievais" como esse famoso torneio de Ashby. Inconscientemente, eusentia a necessidade de ir além de Jules Ferry* para ver a Escola sair da História.

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Vem, então, desde o secundário, sua decisão, senão de tor-nar-se historiador; pe/o menos de ensinar história.

Não é tão simples assim... Os estudos, em si mesmos, nunca foram um problema maior para mim. Seu conteúdo, isso sim, me trouxe mais problemas.

Eu fazia o bacharelado.* Era a primavera de 1940. Estava compondo uma redação em latim para o concurso final, quan-do o inspetor de sala saiu por um momento, anuncianquan-do-me, ao voltar, que Hitler tinha invadido a Bélgica. Os bombar-deios italianos sobre Toulon, em maio, nos levaram a sair da cidade (meu pai, por motivos de saúde, não podia descer para os abrigos).

Refugiamo-nos nas proximidades de Sète,** num sítio pos-to à nossa disposição por parentes. Candidapos-to-me então, para terminar o bacharelado, à prova oral em Montpellier, no dis-trito-sede da Academia. Quando estava na famosa praça "do Ovo", alto-falantes transmitem o discurso de Pétain, anuncian-do que solicitara de Hitler o armistício. Um militar que pas-sava pela praça tira seu uniforme e clama, em roupa de baixo, que não vestirá mais uma farda que tinha sido desonrada. Para mim, a França, que será minoritariamente a da Resistên-cia e maioritariamente a cortesã vil do velho cuja voz vergo-nhosa e trêmula eu ouço, será sempre, até que eu venha a

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saber da declaração de De Gaulle de 18 de junho,* a do pro-testo público daquele simples soldado.

Tendo completado o bacharelado, fiz, na Marselha em guerra, os preparatórios para a Escola Normal Superior e depois o início do curso na própria Escola Normal Superior, com admiráveis professores e condiscípulos, alguns dos quais continuaram pela vida afora meus amigos mais queridos. Chegou o tempo em que eu teria de dar meu "trabalho obri-gatório" para a Alemanha, o STO.** Foram alguns meses que passei num maquis alpino. Depois, no fim de 1944, Paris li-bertada, um curso no liceu Louis le Grand. Era um curso menos vivo, menos inspirado que o de Marselha, porém ter-rivelmente eficaz. Entrei para a Escola Normal em julho de 1945. Acredito que essa experiência modesta e marginal da Segunda Guerra, acrescentando-se a minhas reflexões já anti-gas sobre a história como ciência concreta, humana, me tor-nou incapaz de suportar uma história poeirenta, aquela a respeito da qual Lucien Febvre disse, como vim a aprender mais tarde, que os camponeses só lavravam a terra como cartulários, cuidavam apenas dos forais e títulos da terra.

Tive de seguir, paralelamente, cursos na Sorbonne, como era rotina então. Minha decepção foi cruel. Com raras exce-ções, cs historiadores sorboneses me deixaram oprimido, a tal ponto que pensei em abandonar a História. Não

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encon-trava em parte alguma as coisas que tinha começado a apren-der em Toulon e em Marselha. Houve um momento em que estive tentado a bifurcar para o estudo da língua e da civiliza-ção alemãs. Esse conceito de "civilizaciviliza-ção" me atraía. A abor-dagem cultural, a própria noção de civilização, cruzando as disciplinas, prometedora de vida, de ressurreição dos homens e da vida social, parecia na verdade ausente da história histo-riadora praticada naqueles anos.

Tinha sido, no curso secundário, apaixonado pela língua e literatura alemãs. De um modo que surpreendeu a mim mesmo, consegui estabelecer a diferença entre a Alemanha e os nazistas. Nos preparatórios em Marselha, um admirável professor (depois dos ótimos que eu tinha tido em Toulon), Henri Pizard, abriu-me a visão para o mundo maravilhoso de Goethe, Heine, Rilke, Thomas Mann. Esse professor foi morto durante a libertação de Marselha (morte acidental, terrível acaso). Estudando alemão e a civilização alemã de certa for-ma eu prestaria ufor-ma homenagem à sua memória. De novo, porém, a decepção não tardou. Por trás da bela palavra "civi-lização" só se viam fórmulas estreitas. E a filologia perturba-va tudo.

Voltei-me então para a História, especialmente por causa dos cursos de história antiga que me pareciam os mais inte-ressantes. Mas nesse caso faltavam competências — especial-mente técnicas (arqueologia, epigrafia) — que eu não tinha e que não me atraíam. Contudo, dirigi minha atenção para es-sas técnicas. Com elas, amarrei-me afinal ao problema maior do historiador: o da documentação. Disse que havia um pra-zer nostálgico em nossa atividade. Esse prapra-zer é a única re-compensa final. Antes disso está a exigência básica: empregar e pesquisar os documentos. Não é possível entregar-se a este

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ofício sem as fontes, e sem saber utilizar essas fontes, com um rigor verdadeiramente científico.

Assim descobri a paleografia, que é a ciência da leitura das escritas antigas. Leitura nos dois sentidos do termo: a decifração e a interpretação. O contato com o manuscrito me apaixonou. Trata-se, na maioria das vezes, de peles de ani-mais, de pergaminhos, matéria agradável de ser tocada. Sen-te-se, então, materialmente, o trabalho do escriba. Sua tinta, sua pena, seus códigos, suas pequenas manias, seu trabalho. A paleografia, afinal, confirmou meu gosto pela Idade Mé-dia. Sem dúvida, ela é que me orientou definitivamente para a pesquisa. Isso não me impediu de gostar de ensinar, ainda que tenha sido breve minha passagem ensinando num curso secundário (um ano em Amiens, 1950-1951), depois na Fa-culdade de Letras de Lille (1954-1959).

Guardei, de minha vocação inicial —retomar a chama de meu pai ou de um mestre como Henri Michel —, o prazer de comunicar o resultado de minhas pesquisas, de partilhá-los e de cooperar com outros pesquisadores. Falarei mais adiante do grande sábio, do mestre rigoroso e humano que me manteve definitivamente na Sorbonne e que, nela, defini-tivamente me conduziu à Idade Média, Charles Edmond Perrin — sem que nós partilhássemos da mesma concepção da his-tória. E mais adiante ainda, dos dois medievalistas que me abriram os grandes espaços da história medieval: Maurice Lombard, na Escola de Altos Estudos, e Michel Mollat du Jourdain, na Universidade de Lille.

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UMA REVOLUÇÃO: O LIVRO. UM PROBLEMA: AS FONTES

Para o profano, falar de epigrafia, de manuscritos, de im-pressos — tudo parece a mesma coisa.

Essas ciências são ciências da fonte. Mas requerem técni-cas diferentes e se aplicam a períodos diferentes. Há uma ló-gica da epigrafia, há uma lóló-gica do manuscrito, do impresso, da imagem, etc., que estruturam a abordagem do historiador. Fazer a história da Antigüidade sem arqueologia e sem epigrafia — a decifração das inscrições — seria uma brinca-deira. De saída, o historiador da Antigüidade mantém com sua matéria uma relação diferente daquela mantida pelo his-toriador do mundo contemporâneo com seus arquivos. A natureza dos documentos de que dispomos influi sobre nossa maneira de pensar os períodos estudados. Um historiador da Revolução Francesa raciocina a partir de materiais que não "funcionam", se assim posso dizer, do mesmo modo que aque-les a que recorre um especialista em Primeira Guerra. Quan-to à Idade Média, é inseparável dos manuscriQuan-tos. Ela os produziu. E também foi produzida por eles.

A Antigüidade se expressava através de rolos — o que supõe uma relação com o texto particular: as idas e vindas para diante e para trás exigem uma manipulação mais longa. 0 enquadramento das linhas e dos parágrafos depende da superfície sobre a qual o escriba, ou o leitor, pode se apoiar; a noção de frase e de pontuação não é a nossa. E assim por diante. Enfim, o rolo quase não favorece a leitura silenciosa. Ainda que soubessem perfeitamente ler e escrever, os pode-rosos e os sábios da Antigüidade tinham o hábito de dizer o texto, porque os leitores especialistas manipulam rapidamente

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os rolos, libertando seus donos (ou mestres) de todo cons-trangimento material. Assim, quase sempre os mestres prefe-rem ditar.

A generalização do códex (nosso livro, com páginas e ca-dernos) marca uma passagem. O livro-códex seria um ótimo modo de situar o nascimento da Idade Média, desde o fim do século IV. O livro-códex favorece a leitura pessoal, interiori-zada, mesmo que a leitura totalmente silenciosa só venha a se generalizar no século XIII. Até então, ainda é preciso imagi-nar os leitores — mesmo solitários — murmurando os textos ou, pelo menos, mexendo os lábios.

O advento definitivo da leitura silenciosa, ainda mais inte-riorizada, corresponde, afinal, a um novo período da Idade Média. Supõe uma profunda modificação da memória, uma vez que a facilidade do emprego do códex e o desenvolvimento das margens permitem um jogo de localização ou de remis-são. A Antigüidade, certamente, conhecia a margem, as notas explicativas, etc. Faltava, contudo, um espaço racionalmente distribuído. Com o códex, surgiu esse espaço. E o indivíduo, lendo sem necessidade de auxílio, afirma-se. Seja dito de pas-sagem, afastei-me da história inglesa, que entretanto me era muito querida, em parte porque a chancelaria real da Ingla-terra foi a única a manter longamente o venerável uso do rolo. Isso torna a consulta penosa e incômoda.

Por fim, há a própria escrita. Diga-me como tu escreves e eu te direi quem és. A que escritório o escriba pertence, a que corte, a que grupo, a que meio.

A reforma da escrita durante o reinado de Carlos Magno é um momento fundador, carregado de conseqüências. Por volta do ano 800, os scriptoria — esses escritórios dos escribas, na maioria das vezes monásticos — impõem o domínio de

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uma pequena escrita caligráfica, a "minúscula" carolina. A palavra "carolina" vem de Carolus, Carlos; a "minúscula" designa, claro, uma distinção fundamental em relação à maiús-cula. Sabe-se que a Antigüidade, especialmente as epigrafias, privilegiava a maiúscula, claramente legível, mas necessa-riamente mais esquemática.

Essa carolina responde a uma exigência religiosa e políti-ca: Carlos Magno e o seu círculo mais próximo querem uma edição confiável, uniformizada, dos velhos manuscritos, es-pecialmente os dos Evangelhos e dos Padres da Igreja, cujo texto é antes de mais nada restabelecido a partir dos mais antigos e mais fiéis manuscritos então conhecidos. A consti-tuição desse corpus corresponde à utilização de novo instru-mento gráfico. Todos os textos serão escritos em latim, todos da mesma maneira. É a base de uma civilização, um movi-mento que altera pouco a pouco a maneira de transmitir e de ensinar. A constituição das Universidades, nos séculos XII e XIII, já se acha potencialmente nessa profunda reorganiza-ção da escrita.

Depois disso é possível julgar fisicamente, à só visão dos manuscritos, a importante virada que são os séculos XII e XIII. A minúscula carolina desaparece. A escrita torna-se ir-regular, personalizada, com um sistema de abreviações. E a prova de que se escreve rapidamente e de que se penetra na palavra viva. Há de agora em diante numerosos estudantes e mestres. Há os que anotam e os que têm autoridade para se dirigir a um grande número de pessoas. A rapidez da escrita permite fixar a mobilidade do pensamento, as intuições, as variações. Cresce ainda mais a interioridade. A memória se modifica de novo. Uma grande parte dos tratados do século XIII, sem exceção daqueles provindos das mais altas

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autori-dades, como Tomás de Aquino, foi redigida a partir de notas tomadas durante os cursos. O próprio Tomás nos deixou muitos traços de sua própria escrita — uma terrível escrita resumida — na qual se sente a louca rapidez do pensamento no momento de nascer, engendrando-se ele próprio. E o tem-po do cursivo e das abreviações.

Uma nova ordem, uma nova regulamentação, chega com os humanistas dos séculos XV e XVI, especialmente com Erasmo. Prova de que há uma mudança de época, não de civilização. A impressão começa, de fato, a expandir um novo tipo de texto. Haverá evidentemente, e ainda por muito tempo, ma-nuscritos e algumas fontes continuam sendo apenas manus-critos. Porém manuscritos que não têm mais exatamente o mesmo papel. Diante das fontes impressas o historiador não pode reagir da mesma maneira que em face do manuscrito. Hoje uma alteração essencial se produz com o computador.

A felicidade que tive de descobrir os manuscritos medie-vais foi grande, ainda que com muitos deles eu só travasse conhecimento através de fac-símiles, de fotografias. Isso foi fundamental. Em seguida, estive atento a desenvolver o co-nhecimento de outras fontes: especialmente a arqueologia medieval e o estudo das fontes artísticas, iconográficas. Esse contato com o documento cria a distinção fundamental entre o "verdadeiro" historiador, o historiador de ofício, e o histo-riador de segunda mão, que, por maiores que sejam suas qua-lidades, não passa de um historiador amador, um ersatz de historiador.

Pode-se dizer que toda a história se situa na produção de documentos e na decifração dos documentos a que denomi-namos fontes. Dá-se, assim, um movimento no sentido da história que se faz para a história que se conta, se anota e

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constitui a memória escrita, grande necessidade da huma-nidade que não quer desaparecer; esse movimento leva os homens e mulheres vivos ao historiador, e o historiador os im-pede de morrer.

Quanto ao termo fonte, ele me incomoda.

Por um lado, a palavra me seduz, porque faz do docu-mento alguma coisa viva, uma fonte de vida. Mas, por outro lado, pode levar — e levou alguns historiadores — a pensar que a história "escorre da fonte", sai toda pronta dos docu-mentos. Para os historiadores "positivistas" do século XIX e do início do século XX, era suficiente reunir documentos, fazer-lhes a crítica do ponto de vista da autenticidade (provar que não eram falsos — a história dos falsos é uma bela página da historiografia) e a obra histórica estava pronta. Aprendi com meus mestres dos Annales que é o historiador que cria o documento, que confere a traços, a vestígios, como diria Carlo Ginzburg, o status de fonte. O questionário do historiador — as questões que levanta para si e que levanta em relação ao documento (uma parte essencial de seu ofício) — constitui a base da historiografia, da História.

Por longo tempo subestimou-se a arqueologia medieval, uma vez que os traços desse período freqüentemente se tor-nam complexos com as adições e remanejamentos posterio-res — enquanto que os posterio-restos da Antigüidade parecem mais facilmente visíveis: são as ruínas, as pegadas nos campos, res-tos recoberres-tos por outros resres-tos muito diferentes. Durante longo tempo, considerou-se, principalmente, a arqueologia como um documento de segunda ordem. Para a Antigüidade, havia a necessidade de se servir dela, por falta de textos. De acordo com a concepção preguiçosa do historiador que deve deixar "falar" suas fontes, a fonte arqueológica parecia

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me-nos clara do que a fonte textual... ainda que freqüentemente a escrita seja produzida mais para mentir do que para dizer a verdade!

Conheci nos anos 1950 e 1960 uma regulamentação da atividade arqueológica na França que suspendia (em particu-lar para as escavações) a arqueologia identificada com o ano 800. Carlos Magno foi coroado, o texto venceu, suspenda-se a arqueologia. Nunca vi concepções tão estúpidas e burlescas. Felizmente há hoje em toda a Europa uma arqueologia medie-val ativa e fecunda. Por fim, e principalmente, a arqueologia não se limita mais à escavação e ao estudo dos monumentos, nem à pesquisa exclusiva dos belos objetos. Interessa-se pelos sítios globais: cidades e aldeias. A escavação das "aldeias aban-donadas" trouxe muitos conhecimentos novos sobre a vida rural medieval. A arqueologia também se interessa pelo que chamamos de "cultura material", capítulo agora importante da história.

Descurava-se, enfim, o mais visível, o mais evidente: refi-ro-me à imagem medieval. Onipresente, essa imagem foi du-rante longo tempo interpretada sob seu ângulo artístico — o que é necessário —, mas subestimava-se, de saída, sua contri-buição documental, seu valor de testemunho, de expressão.

Saídos do romantismo, ou hostis ao romantismo (ousaria dizer que nesse domínio os dois partidos se parecem), os his-toriadores nem sempre souberam ver que a obra de arte, ou de artesanato, não se resumia à bela invenção feita por um autor artista. Não via que ela também reflete regras, códigos, costumes, encomendas. Em resumo, que o indivíduo — no-ção cara aos séculos XIX e XX, que pouco tem a ver com o espírito medieval — da época se exprimia certamente com sua sensibilidade pessoal, mas também e em primeiro lugar

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em função de um certo número de convenções próprias da época. E isto era significativo. A tradição romântica está liga-da à beleza. O que se procura nesse caso é o homem, o gênio, sob regras impostas. Acaba-se, de saída, por diminuir a impor-tância dessas regras, tomadas como tal. A imagem é um outro jeito de ser de um texto.

Essas regras têm por finalidade comunicar uma mensa-gem ao público f

Um "grande público" a ser convencido pela vulgarização e produções em massa — tudo isso é uma idéia moderna. A questão não se situava assim na Idade Média.

O primeiro destinatário (ou o destinatário final, como se queira) era Deus. Toda obra a que chamamos obra de arte (a expressão não existia na Idade Média) era uma imitação da criação divina ou da natureza, ela própria criatura de Deus. Havia comanditários e comandos: a Igreja, os poderosos, os notáveis, as comunidades instituídas. O nível, essencialmen-te, era esse. O dos comanditários com aquilo que eles tinham necessidade de expressar. Por muito tempo o artista medieval não foi mais do que um artesão que trabalhava sob comando. A obra de arte, a imagem e seus temas são uma fonte para o historiador por duas razões: seu conteúdo significativo ultrapassa a sensibilidade do artista, do comanditário e daque-les que o recebem. Assim como o historiador dispôs de re-cursos para chegar à noção de mentalidade no domínio das idéias, também tem de recorrer à noção de sensibilidade coleti-va para dar conta do significado histórico de uma obra de arte. O historiador não deve esquecer que uma parte significativa da criação artística se endereça de modo definitivo ao

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conjun-to do povo cristão — que essa criação constitui um elemenconjun-to essencial da liturgia, força estruturante da comunidade me-dieval. Desse modo, o documento artístico, a imagem se con-centram nos lugares, nos monumentos em que se desenvolve mais fortemente, mais freqüentemente essa liturgia: a igreja, a praça comunal. Há certamente a imagem reservada a uns pou-cos, ou a Deus: as esculturas que não podem ser vistas, as pin-turas de manuscrito, os tesouros de igreja. Mas acabam sempre por se tornarem objetos de exibições, de ostensões* — ainda que raríssimas, tanto mais fortes, por isso mesmo.

O século XIX nos trouxe muitas contribuições. Adquiriu, entretanto, nesse domínio, um peso às vezes muito pesado, se assim se pode dizer. Nossa famosa Ecole des Chartes ilustra bem essa inflexão.

Criada em 1821 por Luís XVIII, na esteira da moda "tro-vador" (Chateaubriand, de novo!), reformada em 1846, a Ecole des Chartes devia salvar e reabilitar os documentos es-critos em baixo latim e em francês antigo — memória posta em perigo pelo desprezo das Luzes e depois da Revolução por esses documentos antigos. Esse prestígio novo da Ecole des Chartes faz parte de um movimento mais geral, em que se combinam o imaginário que inspira Hugo (ou Michelet) e um desejo de conhecimento específico do passado, impreg-nado de uma inspiração nacionalista.

Nesse momento nasce a noção de patrimônio, tão carac-terística do século XIX. É no início do século, igualmente,

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que Alexandre Lenoir, fundador em 1796 do Museu dos Monumentos francês, reúne os conjuntos ornamentais salvos da Revolução. Lenoir publica, em 1804, o Musée des Monu-ments de France. Também funda a Comissão dos Monumen-tos Históricos, que terá por ilustrador Prosper Mérimée. No mesmo momento, edifica-se no Cemitério de Père-Lachaise um túmulo para Abelardo e Heloísa. Logo virá o genial Viollet-le-Duc (1814-1879), teórico rigoroso do gótico (em Carcas-sone, em Notre-Dame de Paris), que vê nessa arte o produto de um imaginário espírito democrático medieval.

Devemos a essas iniciativas, retomadas pela Terceira Re-pública, um trabalho admirável, semelhante ao trabalho feito na mesma época pela grande escola filológica alemã. Infeliz-mente, essa volta às fontes, aos manuscritos, à paleografia, dirigia-se essencialmente aos escritos jurídicos: as cbartes.* O próprio regime de Luís XVIII não se baseou numa Carta?

Com a Ecole des Cbartes, já se vê, focalizou-se longamente apenas uma parte do acervo medieval. As intenções foram as melhores possíveis, mas, não apenas em relação à Idade Mé-dia, como à História em geral, os estudos ficaram restritos às instituições. Os chartistes [os estudiosos da equipe da Escola] compreenderam bem que a Idade Média formava um siste-ma, um todo. Mas nela não viram uma civilização. Retoma-ram, dando-lhe uma acepção neutra, o termo com o qual os

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juristas das Luzes condenavam a Idade Média: o feudalismo. Mais adiante (no capítulo IV deste livro), voltarei a essa pala-vra, que ainda confunde nossa percepção da Idade Média. Digamos, por ora, que a noção de feudalismo é essencialmente jurídica, refere-se à posse e transmissão — regidas por um contrato — de um bem, de um feudo.

Para os juristas das Luzes, o sistema medieval que deseja-ram destruir (o que a Revolução Francesa acabou por fazer) ordenava-se em torno desse feudo e a ele se resumia. Am-pliavam esse elemento jurídico, de uma importância secun-dária (que só existia em relação à ligação social do senhor e do vassalo), para formar sua visão global da Idade Média. Conhece-se o ardor que punham os revolucionários em piso-tear tudo aquilo que lembrasse de perto ou de longe os "hor-rores" feudais. Havia nisso, se ouso dizê-lo, alguma coisa de psicodrama: as estruturas jurídicas, econômicas e sociais her-deiras do absolutismo já não tinham muito a ver com as do feudalismo. Na verdade, estavam bem distantes delas.

Os historiadores modernos, conservando os termos, de-ram-lhes um conteúdo muito mais complexo e mais rico, de natureza mais social e antropológica do que jurídica. Hoje, fazemos a história da Idade Média quase sem recorrer à no-ção de feudo — o que mostra a extensão das mudanças.

Para deixar essa abordagem excessivamente jurídica, foi preciso ampliar o estudo das fontes; foi preciso consultar tudo aquilo que os historiadores não liam no século XIX, ou não julgavam digno de ser lido: sermões, manuais de confissão, teologia prática, contas comerciais, etc. Descobre-se assim uma Idade Média diferente. E uma História diferente.

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O senhor deixou subentendido: com a difusão da imprensa, as fontes mudam. Haverá a seguir a multiplicação mecânica das imagens, depois a do som, depois a do audiovisual, acres-centando-se a isso a conservação crescente de arquivos de to-dos os gêneros. Isso muda o trabalho do historiador?

O medievalista tem sorte, de verdade. Seus métodos, mes-mo ampliados, permanecem na medida de seu assunto. Em compensação, não acredito que a história moderna e — me-nos ainda — a história contemporânea possam conservar imu-táveis seus métodos.

Lucien Febvre (1878-1956) e Mare Bloch (1886-1944), depois Fernand Braudel (1902-1985), Georges Duby (1919-1996) ou eu próprio somos todos especialistas, seja em Idade Média seja nesse outro período "medieval" que é também, na minha opinião, o Renascimento. Há coisa semelhante nas importantes escolas alemãs, italianas e anglo-saxônicas, para citar só estas. Não estávamos sozinhos. O historiador depen-dente das fontes, em sua relação com elas desempenha um papel importante nas escolhas que faz desse período. Idade Média e século XVI oferecem um feliz equilíbrio quantitati-vo de fontes entre a penúria antiga e a pletora moderna, so-bretudo contemporânea.

Devo essa orientação ao movimento dos Annales, que descobri quando preparava a agregação.* Fui favorecido por uma grande sorte. No ano de 1950, em que passei no concur-so, houve uma grande revolução. O ministro da Educação

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nacional tinha, no outono de 1949, mudado radicalmente os membros da banca. A agregação no setor de história tornava-se coisa dos historiadores dos Annales. Fernand Braudel tor-nou-se o presidente. 0 historiador sem dúvida mais inovador no grupo era o medievalista, pouco conhecido, notável para Lucien Febvre, Maurice Lombard, um especialista em Islam medieval, que ensinava na marginal Ecole Pratique des Hautes Etudes. Essa escola foi fundada pelo último ministro da Ins-trução Pública de Napoleão III, o historiador Victor Duruy, em 1868, com o sentido de criar, ao lado dos cursos de pro-fessores de uma Sorbonne mais retórica do que científica, um ensino superior com base no seminário, quer dizer, num gru-po de trabalho e não mais num anfiteatro de ouvintes passivos. Imitava-se nesse caso a Prússia, da qual se sentia a preeminente modernidade, que a guerra de 1870 iria comprovar.

Essa audácia na forma não tinha, entretanto, confirma-ção imediata no conteúdo. O ensino da seconfirma-ção histórica — a IV seção, voltada para as ciências históricas e filosóficas — não era muito diferente em sua concepção daquele da Ecole des Chartes. Além da nova e notável V seção — a das Ciências Religiosas, concebida num espírito à maneira de Renan —, Victor Duruy tinha previsto uma VI seção para as Ciências Econômicas e Sociais. Tratava-se de inovação tão grande que não havia historiadores suficientes para dirigir cursos lá e de-senvolver seminários. Assim, a VI seção não chegou a ser cria-da. Foi preciso esperar 1947 para que Lucien Febvre, professor no Collège de France e presidente da IV seção dos Altos Estu-dos, criasse a VI seção, que de pronto se tornou uma sensa-ção, provocando vivas hostilidades.

Tive a sorte de começar nesse contexto. Os primeiros tem-pos de uma revolução são, de um modo geral, entusiasmantes

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e fecundos. Esse caso não foi exceção. Participei da vida dos candidatos à agregação na escada e nas pequenas salas de uma ala isolada da Sorbonne, que abrigava os Altos Estudos (até 1968, quando a IV seção expulsou a VI de lá). E aquilo foi um deslumbramento. Fiquei encantado por dois grandes his-toriadores, Fernand Braudel e Maurice Lombard. Aprendi que havia uma história nova e, sobretudo, que a história com que eu sonhava existia. Descobri que tinha razão ao querer "fazer história" e mais particularmente história medieval. Entrei num ofício que foi uma das grandes alegrias da minha existência e até hoje ainda o é.

Conhece-se a frase célebre de Mare Bloch: ttO historiador é como o ogro da fábula: onde sente cheiro de carne humana, sabe que lá está sua presa." Os Annales, dessa forma, me en-sinaram que a história decorre de uma certa maneira de le-vantar os problemas diante dos documentos e dos fatos. Comportamo-nos assim: situamos as questões a partir de nos-sas fontes. Em compensação, as fontes nos obrigam à vigilân-cia crítica quanto ao funcionamento de nosso próprio espírito.

Desse período nasceu o que então chamamos de "Nova História" (que agora, claro, já não é tão nova assim...). Trata-va-se de uma novatio — como diziam, com pavor, os clérigos medievais, que escondiam o novo porque a Igreja não o via com simpatia, achando que o mundo a partir do pecado ori-ginal estava em declínio constante. Essa novatio marcou o conjunto da disciplina. A História se estendeu à vida privada, aos costumes, às mentalidades, às sensibilidades, etc. Não vou ficar me lamentando. Penso, todavia, que a História dos tem-pos modernos (tradicionalmente fixados do "Renascimento" à Revolução Francesa) e, mais ainda, a do mundo contempo-râneo (depois de 1789...) — para retomar uma periodização

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pouco convincente —elevem ter seus métodos de estudo re-pensados, construir outras técnicas de abordagem. Adotar problemáticas diferentes, para usar uma palavra enjoada.

O senhor duvida daquilo que se chama a História do Tem-po Presente?

Absolutamente, não duvido. Faço parte daqueles que, no Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS, pela sigla fran-cesa), apadrinharam o Instituto de História do Tempo Presente

(IHTP), de influência fecunda, considerável, e foi um amigo muito querido que lhe foi o primeiro e admirável diretor, François Bédarida. Interrogo-me, contudo, quanto a essa no-ção, agora que o tempo passou, e que nossa percepção do "tempo presente" evoluiu.

Compreenda bem: a história contemporânea permanece um imenso canteiro de obras, apaixonante, cheio de riscos. Será preciso, porém, uma outra abordagem, exclusivamente por causa do engarrafamento e da natureza das fontes. En-quanto eu disponho de dezenas de documentos, às vezes so-bre muitos séculos, os historiadores do Tempo Presente se vêem às voltas com algumas dezenas, centenas, milhares, até mesmo dezenas de milhares de fontes: escritas, sonoras, iconográficas, arquiteturais, cadastrais, urbanas, etc. A esta altura, a ferramenta já não se adapta mais ao terreno. Não digo que seria impossível estudar o Tempo Presente. Penso, uma vez mais, que é preciso estudá-lo de outra forma. E por-tanto repensar as regras. Quando a relação com os documen-tos muda, o historiador muda de período. E, afinal, a relação do historiador com esse passado próximo a que chamamos presente é diferente.

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Para escrever sua História da Revolução Francesa (1847-1853), Michelet — meio século depois dos fatos — ainda teve condições de dominar seus arquivos, entretanto consi-deráveis. A partir do século XX, o arquivo explode. Novos caminhos foram abertos: constituíram-se equipes, partiu-se para o tratamento quantitativo informatizado dos dados, no-vos ângulos passaram a ser explorados, etc.

Essas técnicas não são próprias à história do Tempo Presen-te. O senhor mesmo procedeu desse modo para a Idade Média. Trata-se de um efeito bumerangue. Os medievalistas constataram que se deparavam às vezes com dificuldades com-paráveis às que encontram pela frente os historiadores con-temporâneos. Tomaram, então, seus métodos de empréstimo, uma vez que o diálogo é constante entre especialistas dos di-versos períodos.

Durante muito tempo, por exemplo, viu-se com desprezo a importante produção de sermões acumulada ao longo da Idade Média. Apesar de todos os sermões que não foram dei-xados por escrito, e dos numerosos manuscritos perdidos, a quantidade permanece enorme. O medievalista neles se afo-ga. Neste caso é preciso achar um modo de tratamento adap-tado ao quantitativo: estudo estatístico do vocabulário, cálculo das ocorrências, repartição geográfica, etc. Mas isso conti-nua sendo uma coisa rara, para o período, e dá-se sobretudo na área da história cultural, e ainda na história das mentali-dades. Entretanto, para o econômico ou o político, quase não lidamos com coisas assim.

Antes do século XII, na verdade, a Idade Média não faz contas, ou pelo menos não gosta de contar. Quando falam

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em números, os homens da Idade Média usam símbolos: 3, 7, 12 e todos os seus múltiplos, ou, quando se quer assinalar quantidades significativas, mil, às vezes um milhão. A histó-ria, ainda hoje, se atrapalha com o uso do termo Millenium, tomado de empréstimo à confusão do Apocalipse (com razão denunciada por Nietzsche e por D. H. Lawrence).1 Millenium, na Idade Média, não significa mais do que "período muito longo". Mas isso suscita, desde então, devaneios sobre o milenarismo, especulações sobre o fim do mundo. Exemplo espetacular: os "terrores" que teria suscitado a aproximação do Ano Mil — idéia tipicamente... romântica.2

Nesses números medievais temos, na melhor das hipóte-ses, ordens de grandeza. Os medievais queriam dizer que tal epidemia tinha feito devastações, que tal batalha tinha sido importante, etc. E verdade que os historiadores quase não trabalham, salvo exceções, usando o quantitativo. Nós nos deparamos mesmo, freqüentemente, é com a ausência de do-cumentos ou com o silêncio dos textos. É um dos limites da medievalística, uma situação que somos obrigados a enfren-tar com métodos particulares.

Os camponeses da Idade Média não escrevem. Só apare-cem indiretamente, em nossas fontes, pelo que deles dizem os clérigos. Ora, mais de 80% da Europa medieval é campo-nesa. Entre as mulheres que, logicamente, representam a me-tade da população, a coisa não melhora: elas não deixaram

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manuscritos, salvo raras exceções — o que não quer dizer, claro, que as mulheres e camponeses fossem mudos, inativos e sem influência durante todo esse período! Os historiadores, são, de resto, capazes de fazê-los falar, dentro de certos limites. Somos ainda historiadores da falta e das lacunas, mais próximos, nesse caso, de nossos confrades historiadores da Antigüidade ou pré-hisroriadores do que dos

"contem-poranistas". Com grandes esforços de método e respeitáveis esforços de imaginação, podemos, entretanto, fazer com que as lacunas falem. É uma das tarefas dos medievalistas que virão, fazer falar os silêncios acuais da Idade Média.

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Todo medievalista vê-se diante da questão do seu período. Não escapei à regra. No início dos anos 1950, o corte tradi-cional ainda mantinha sua autoridade: a Idade Média — im-plicitamente concebida como ocidental — começa em 476 e acaba em 1492.

Em 476, Odoacro, rei dos hérulos, depõe o jovem Rómulo Augústulo,* "imperador'' rigorosamente formal do Ociden-te, então com a idade de uma quinzena de anos. Os hérulos, longínquos descendentes de povos escandinavos, viviam à beira do Mar Negro. O acontecimento de 476 parece não passar de um simples episódio. O verdadeiro Imperador era na verdade o de Bizâncio, Zenon, que, como tal, continua sendo o homem de influência das intrigas regionais que são, por essa época, os negócios romanos. Eis o acontecimento fundador.

Passemos ao ano de 1492. Cristóvão Colombo descobre a América. A Espanha cristã derrota os muçulmanos em Gra-nada e completa assim sua reconquista. Como disse Alphonse Aliais: o homem de 1492 sabia, ao deitar-se para dormir no dia 31 de dezembro na noite da Idade Média, que acordaria

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no dia seguinte, Io de janeiro de 1493, na manhã do Renas-cimento?

Já tenho dito que, no meu modo de ver, um fato histórico é sempre construído por um historiador. Da mesma forma o são os períodos — e estes mais ainda. Não há nada a nos assinalar que se entra numa época, nem que se sai de outra.

Como historiador, herdo uma periodização, modelada pelo passado — mas devo também me interrogar sobre esses cortes artificiais do tempo, às vezes nocivos à boa percepção dos fenômenos. Quando se vê generalizar-se, sob Carlos Magno, o códex e a letra conhecida como minúscula carolina, definitivamente não estamos mais na Antigüidade. Isso não impede que alguns traços da Antigüidade persistam aqui e ali em outras faces da mesma civilização.

Ao invés, traços, para nós, medievalistas, afloram já no curso da Antigüidade tardia, que há algum tempo os historia-dores tiveram a tendência, a justo título na minha opinião, de espichar, como Henri Irénée Marrou propôs recentemente. Esta precisão: Antigüidade tardia, me parece essencial. Não se fala mais, hoje, de Baixo Império — subentendido: deca-dente. Isso suporia um Alto Império pretensamente mais "evoluído", estendendo-se de Augusto a Constantino. Com-preenda-se: o Império foi "alto" antes de sua cristianização por Constantino. Depois "baixo" desde que o paganismo — o não-cristianismo — reflui. Ora, tudo indica um poderio em seu apogeu, estendendo-se de Constantino (início do século IV) até Justiniano (século VI) o que corresponde pelo menos a 300 anos...

Digo imediatamente: privilegio a dupla continuidade/vi-rada em prejuízo da noção de ruptura A história transcorre de modo contínuo. Uma série de mudanças — que

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