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4 ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS

4.1 Uma Discussão sobre Estado

Ao desenvolver estudos sobre as desigualdades raciais em diversas áreas nos EUA, Martin Carnoy (1988) verificou que a melhora ou degradação das condições de igualdade social ou econômica da população depende da interferência do Estado, ou seja, depende de políticas públicas. Isso justifica a importância em compreender a relação entre Estado e políticas públicas, pois então será possível entender a complexidade da avaliação destas como instrumento de legitimação ou caminho para a construção de formas menos arbitrárias nos processos de tomada de decisões.

Na tentativa de definir o que é Estado, Milena Pavan Serafim e Rafael de Brito Dias (2012) afirmam que esta questão sobre o Estado tem sido alvo de debate nos últimos três séculos por diferentes áreas, como a Filosofia, a Ciência Política e a Economia. Para Norberto Bobbio (1988), a formação do Estado representa um momento positivo na formação do homem civil para a maioria dos filósofos clássicos, sendo geralmente considerado o ponto de escape à barbárie e à guerra de todos contra todos, e isso pode ser visto como o domínio sobre as paixões e a reflexão sobre o instinto.

Com o desenvolvimento da economia mundial como um todo, cresceu também a importância do Estado em todas as sociedades e em todos os aspectos: político, econômico, ideológico e legal (CARNOY, 1984). Norberto Bobbio (1988) destaca que o propósito do Estado é: para Platão a justiça, para Aristóteles o bem comum, para Leibniz a felicidade dos súditos, para Kant a liberdade, para Hegel a máxima expressão do ethos de um povo. Percebe-

se então que grande parte da filosofia política enaltece a formação do Estado (BOBBIO, 1988). Já Karl Marx, ao contrário de outros pensadores, considera o Estado como um instrumento de domínio do homem sobre o homem. Bobbio (1988) chama a concepção de Marx de técnica, que se contrapõe a concepção ética que prevaleceu nos demais escritores.

No estudo sobre o Estado, Bobbio (1987) cita as primeiras obras que remetem ao tema na Grécia antiga. Autores como Platão e Aristóteles fizeram os primeiros estudos acerca do Estado nas obras A República (Platão) e A Política (Aristóteles). Aristóteles apontava questões relacionadas à organização política e de governo de sua época e definiu o conceito de cidade (unidade política suprema), sendo que esta buscava a felicidade de todos os seus cidadãos. Já a obra A República de Platão trata sobre o Estado ideal, tal como deveria ser, sustentado no conceito de justiça. No entanto, foi com Maquiavel na obra O Príncipe que o debate sobre Estado ganhou força. A obra aborda um tratado político e serviu como base para modelar a estrutura governamental dos tempos modernos (BOBBIO, 1987).

Gisele Masson (2010), em estudo sobre o desenvolvimento do Estado, aponta que a reflexão que Maquiavel realizou não representa uma teoria do Estado moderno, mas sim uma teoria de como o Estado se forma. Para a autora, esta obra contribuiu para que a ciência política moderna fosse fundada.

Na acepção de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino (2008) Estado não é um conceito universal, mas indica um ordenamento político. Em tal sentido, o conceito de Estado moderno aparece como uma forma historicamente determinada de organização do poder e por isso se caracteriza com uma série de atributos que a tornam peculiar e diversa de outras formas de organização do poder, que também foram historicamente determinadas e são interiormente homogêneas.

O elemento fundante na compreensão do Estado consiste na progressiva centralização do poder por uma instância sempre mais ampla, que acaba por compreender o espaço completo das relações políticas. Desse processo, nascem os traços essenciais de uma nova forma de organização política, fundado sobre a “concomitante afirmação do princípio da territorialidade da obrigação política e sobre a progressiva aquisição da impessoalidade do comando político”, que é precisamente o Estado moderno (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2008, p. 426).

Serafim e Dias (2012) argumentam que, especialmente nos países da América Latina, o Estado é entendido como a principal entidade responsável na promoção do desenvolvimento nacional, percepção esta que foi gerada pelas próprias experiências históricas, reforçando também o mito do Estado forte (com papel bem definido na sociedade),

que esteve e ainda está presente no discurso e na prática dos fazedores de política latino- americanos. Nesse horizonte, o Estado não está alheio à sociedade, uma vez que ele materializa as contradições e perpassa as tensões presentes na sociedade. Portanto, a complexidade das relações que se dão nessa relação não pode ser expressa de forma linear e unidirecional. Corroborando, Vicente de Paula Faleiros (1991) aponta que o Estado não está fora ou acima da sociedade, mas que é atravessado pelas forças e por lutas sociais que articulam as exigências econômicas e os processos em cada conjuntura.

Eneida Oto Shiroma, Maria Célia de Moraes e Olinda Evangelista (2004) afirmam que Estado e política são conceitos inseparáveis, sendo que o Estado contemporâneo, em suas diferentes concepções, tem diferenças marcantes no tocante ao sistema político, que pode assumir conceitos diferentes sob diferentes perspectivas.

Entre as teorias sociológicas existentes sobre esse conceito, Bobbio (1987) aponta que duas se destacam pela frequente polêmica entre si, mas, sobretudo, pelo fato de que cada uma caminha por sua própria estrada: a teoria marxista e a teoria funcionalista, ou liberal. As duas teorias apresentam importantes diferenças, tanto no que se refere à concepção de ciência quanto com relação ao método, mas a principal diferença refere-se ao lugar que o Estado ocupa no sistema social.

Com relação à concepção marxista de Estado (apontada por Bobbio), é recorrente a ideia que Karl Marx em suas obras não sistematizou uma teoria de Estado. Conforme Masson (2010), a obra de Marx apresenta uma escassez de documentação sobre o Estado, pois o autor não apresentou uma teoria política. Para a autora, se a expressão teoria política marxista fosse utilizada, se teria uma teoria fragmentada, uma vez que Marx defendia a extinção do Estado, não podendo assim fazer a projeção do Estado marxiano. Masson (2010) afirma ainda que existe uma lacuna no pensamento marxiano, assim como no pensamento marxista, no que diz respeito à teoria do Estado de transição.

Para Marx, a sociedade civil é que explica o surgimento do Estado, assim é a estrutura econômica que determina o Estado. Na concepção marxista, cada sociedade histórica é separada em dois momentos “com respeito à sua força determinante e à sua capacidade de condicionar o desenvolvimento do sistema, e a passagem de um sistema a outro” (BOBBIO, 1987, p. 58). Estes dois momentos não são opostos e são a base econômica e a superestrutura.

Marx explica que o Estado, representado pelas instituições políticas, pertence ao segundo momento, que é a superestrutura, e que as relações econômicas caracterizadas pela forma de produção de cada época são determinantes, embora nem sempre dominantes. A relação entre base econômica e superestrutura política é uma ação recíproca e, para a

concepção marxista, a base econômica é sempre determinante em última instância (MARX, 2008; BOBBIO, 1987). Nesse sentido, “o Estado não representa o bem comum, pois ele não está acima dos interesses particulares e das classes, mas é, sobretudo, a expressão política da dominação de uma classe sobre outra” (MASSON, 2010, p. 88).

A concepção neoliberal de sociedade e de Estado se inscreve na tradição do liberalismo clássico, dos séculos XVIII e XIX (HÖFLING, 2001). Uma corrente de pensamento liberal, na tentativa de atribuir um tom científico às premissas liberais, defende que o sistema global é dividido em quatro subsistemas: pattern-maintenance, goal-attainment, adaptations, integration (manutenção do padrão básico de valores, metas para o qual a atividade social é dirigida, relação entre o sistema e seu ambiente, ajustamento de conflito) e cada um deles desempenha função igualmente essencial para a conservação do equilíbrio social (BOBBIO, 1987). Bobbio aponta que, ao subsistema político, representada pelo goal- attainment, equivale a função política exercida pelo conjunto das instituições que constituem o Estado. Além disso, o subsistema ao qual é atribuída a função preeminente não é o econômico, mas o cultural, pois a adesão aos valores e às normas estabelecidas dependem da máxima força coesiva de todo o grupo social. Isso acontece pelo processo de socialização, que se destaca pela interiorização dos valores sociais e pelo controle social que ressalta a observância das normas que regulam os comportamentos (BOBBIO, 1987).

Esta perspectiva concebe o Estado com maior neutralidade com relação à vida social, defendendo o livre mercado como viés para o bom funcionamento da sociedade. Esta teoria surgiu devido à mudança do sistema econômico e foi adaptado para melhor atender as necessidades da classe que se destacou nesse processo: a burguesia (BOBBIO, 1987; MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010).

As duas concepções de Estado são concorrentes: enquanto a funcionalista é dominada pelo tema da ordem e tem sua principal preocupação na conservação da ordem social, a marxista é dominada pela ruptura da ordem, da passagem para uma outra ordem, para uma outra forma de produção (BOBBIO, 1987).

Bobbio (1987) explica que a representação do Estado é compatível com ambas as teorias e salienta que, uma vez que as diversas interpretações da função do Estado são estabelecidas, a representação sistêmica do Estado almeja propor um esquema conceitual para analisar como as instituições políticas funcionam e como estas instituições exercem a função que lhes é própria, independente da interpretação que se faça.

Almerindo Janela Afonso (2009) aponta que existe ainda outra forma de compreender o Estado, pelo viés das teorias pluralistas, que partem do princípio de que o Estado está acima dos conflitos sociais, uma vez que representa a sociedade como um todo.

Fernando Aith (2006) entende o Estado como uma forma de organização dada pela sociedade política para que os direitos sejam garantidos e protegidos. Nessa acepção, a finalidade do Estado é a garantia dos direitos aos cidadãos que o integram e todas as ações desenvolvidas por esse Estado são para proteger esses direitos.

Por sua vez, Claus Offe e Volker Ronge (1984) defendem que o Estado não está a serviço nem é instrumento de classes e não atua em favor de um ou contra outra. Os autores argumentam que a estrutura e atividades do Estado “consistem na imposição e na garantia duradoura de regras que institucionalizam as relações de classe específicas de uma sociedade capitalista” (OFFE; RONGE, 1984, p. 123). Na visão destes autores, o papel do Estado é agir como mediador entre a luta de classes. Isso não significa que o Estado seja neutro, mas que visa garantir as relações de trocas, assim como a participação de todas as classes. Ou seja, “a política do Estado capitalista consiste em tomar as medidas e criar as condições para que todos os sujeitos jurídicos introduzam efetivamente nas relações de trabalho a sua propriedade” (OFFE; RONGE, 1984, p. 128). Já para Serafim e Dias (2012), o Estado originado da Revolução Industrial é eminentemente capitalista, sendo que atua balizando os conflitos gerados entre capital e trabalho e tende de forma arbitrária a beneficiar o capital em detrimento do trabalho.

Importante observar que, para Offe e Ronge (1984), embora o interesse do Estado não esteja ligado aos interesses de uma classe específica, o que o Estado protege e sanciona é um conjunto de instituições e relações sociais necessárias para a dominação da classe capitalista. Dessa forma, mesmo que o Estado não esteja alinhado a defender os interesses de uma única classe, procura implementar e garantir os interesses coletivos de todos os membros de uma sociedade de classes dominada pelo capital (OFFE, 1984).

Nesse sentido, é importante considerar que, embora o Estado nas sociedades capitalistas esteja alinhado a atender os interesses do capital, ao manter e proteger a liberdade e a propriedade, não significa que o Estado tenha papel único de atender às demandas particulares dos capitalistas. Claus Offe (1984) aponta que, no caso das políticas públicas educacionais, estas têm como principal meta criar condições e oportunidades de troca entre trabalho e capital, de forma que todas as classes possam entrar nas relações capitalistas de produção. Isso pode levar à falsa compreensão de que as políticas públicas podem agir em sentido contrário aos interesses do capital.

José Carlos Rothen (2012, p. 64) explica que, ao proteger o capital, as ações estatais podem assumir dois aspectos: no primeiro, podem defender o capital de forma genérica, e nesse caso o autor exemplifica as ações do Estado como as políticas salariais, que, embora se dirijam contra os interesses dos capitalistas no momento do pagamento, garantem a força de trabalho e criam consumidores com poder aquisitivo. No segundo aspecto, os capitalistas se dividem em frações de classe, como, por exemplo, a burguesia financeira e industrial, onde um grupo pode ter maior força que outro.

Nesse horizonte depreende-se que o Estado atua como mediador na sociedade de classes, ora implementando políticas públicas, ora limitando direitos, contudo essa mediação privilegia sempre as relações desiguais impostas pelo sistema capitalista. O objetivo do Estado no sistema vigente não é a promoção da igualdade, mas a promoção de maiores condições de manutenção das relações.

Isso não quer dizer que a conquista de direitos, fruto da luta de classes, não seja legítima, mas que há a necessidade de reflexão e compreensão acerca das concessões do Estado em prol da classe trabalhadora. É nesta perspectiva que este trabalho caminha, na compreensão das relações que permeiam as políticas afirmativas para acesso ao ensino superior.

Diante da discussão sobre as teorias de Estado e para compreender a relação existente entre o Estado e a adoção de políticas públicas, especialmente as de ação afirmativa, é importante discutir a trajetória brasileira nesta seara. Nesse sentido a próxima subseção irá perfazer uma retomada histórica acerca do papel do Estado nacional no campo das políticas públicas de ação afirmativa.