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Se “a seriedade designa a situação intermediária de um homem eqüidistante entre desespero e futilidade”, como diz lindamente Jankélévitch, devemos observar que o humor, ao contrário, opta resolutamente pelos dois extremos. “Polidez do desespero”, dizia Vian, e a futilidade pode fazer parte dela. É impolido dar-se ares de importância. É ridículo levar-se a sério. Não ter humor é não ter humildade, é não ter lucidez, é não ter leveza, é ser demasiado cheio de si, é estar demasiado enganado acerca de si, é ser demasiado severo ou demasiado agressivo, é quase sempre carecer, com isso, de generosidade, de doçura, de misericórdia... O excesso de seriedade, mesmo na virtude, tem algo de suspeito e de inquietante: deve haver alguma ilusão ou algum fanatismo nisso... É virtude que se acredita e que, por isso, carece de virtude.” (Comte, 1996: 229)

Na verdade, não podemos dizer que iremos discorrer aqui sobre a história do humor, porque seria material por si só suficiente para uma tese. O que pretendemos é introduzir este capítulo mostrando que, embora tenha havido um crescimento do interesse em estudar e publicar trabalhos, coletâneas de charges e piadas, ou mesmo outros tipos de publicações relacionadas de alguma forma ao humor, o interesse por esse assunto remonta a Aristóteles. O que é irônico

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Embora não haja consenso entre os autores, no que diz respeito ao domínio discursivo que engloba o gênero charge (humorístico ou jornalístico), optamos por entendê-lo como pertencente ao domínio humorístico, uma vez que o objetivo maior de todo chargista é, através da charge, fazer uma crítica social irônica, cujo ápice é o riso.

porque, embora sempre se faça referência ao seu famoso livro Sobre a Comédia, só se conhecem algumas poucas páginas dele. Esse estudo de Aristóteles, aliás, é mais conhecido através da obra de Umberto Eco do que pelos próprios escritos do filósofo grego. Não sabemos se ele foi a primeira pessoa a dizer que o humor é próprio do homem, tese retomada depois por vários autores. De fato, parece-nos que, durante a história do humor, três teses foram amplamente reiteradas: a primeira já citamos acima; a segunda é que o humor acontece quando escarnecemos

do Outro; a terceira e última (?) seria que o humor, ou mais precisamente o riso, seria próprio apenas das camadas populares da sociedade. Enumerando essas três teses, nos veio à mente a

característica que talvez englobe a todas essas e que, a nosso ver, é a que menos poderia ser contestada: o humor é um fenômeno social. Aristóteles foi citado, porque embora não saibamos se ele foi o primeiro a lançar essas teses, uma vez que segundo Bremmer e Roodenburg (2000), o humor só foi estudado de forma mais sistemática na Antigüidade, essas três “verdades” sobre o humor são possíveis de serem encontradas nos escritos Sobre a Comédia, que são atribuídos a ele. A idéia do riso como algo que pertence apenas à raça humana expandiu-se para além de Aristóteles, uma vez que depois foi retomada por Hobbes, e, mais recentemente, por Bergson (1900), como mostraremos no segundo item deste capítulo. Essa tese provavelmente surgiu, segundo Skinner (2002), de um estudo de Aristóteles sobre os animais De partibus animalium, no qual ele teria chegado a essa conclusão: o riso é um traço distintivo do homem.

Também Aristóteles teria dito que o humor é uma forma de escarnecer do que ou de quem é considerado baixo, inferior, seja por um defeito moral ou por uma deficiência física que torne uma pessoa ridícula. Ele enfatiza: “Dessa forma, são especialmente risíveis os inferiores em algum sentido, sobretudo os moralmente inferiores, embora não os completamente depravados.” (Aristóteles, [1449] 1995:44, apud Skinner, 2002). Cícero ([106 a. C – 43 a. C] 1942) e Quintiliano (1920-2), ambos autores também pertencentes à escola da retórica, retomaram e ratificaram em seus estudos essa máxima de Aristóteles, chegando este último a dizer que “Quando rimos, estamos freqüentemente nos gabando ou glorificando diante de outra pessoa, por termos constatado que, comparada conosco, ela sofre de alguma fraqueza ou defeito desprezível, [uma vez que], a maneira mais ambiciosa de se gabar é falar zombando.” Por ter esse caráter de zombaria e por ridicularizar as pessoas, o humor tem seus limites, segundo Cícero, já que de tudo pode-se fazer pilhéria, desde que não cause vergonha à pessoa atingida, já que as regras e convenções sociais não podem ser violadas, não apenas nas situações em que um orador

(humorista) diverte a platéia, como também nas situações do cotidiano. Para exemplificar a necessidade de se fazer humor respeitando as regras, Cícero (apud Graf, 2002:55) conta a seguinte anedota:

Certa vez, o grande Metelo quis visitar o velho Ênio, o grande poeta, em sua casa distante em Aventine; a empregada disse-lhe que ele não estava em casa, mas Metelo, conhecendo-o bem, foi embora com a firme convicção de que a empregada não dissera a verdade. Alguns dias depois, Ênio veio à casa de Metelo e perguntou pelo senhor. Metelo gritou que não estava em casa. Como era de se esperar, Ênio se aborreceu, mas Metelo o acalmou: “Outro dia, acreditei em sua empregada (os criados romanos eram notórios mentirosos), então por que você não acredita em mim agora?”

Como podemos ver, essas regras tão firmemente defendidas por Cícero, como também por Aristóteles, Quintiliano e, na Idade Média, por outros autores, geralmente ligados à Igreja, diziam respeito àqueles considerados como membros dignos, importantes e, portanto, “superiores” na sociedade. Nesta anedota, fica claro que as regras que não devem ser quebradas são as que não permitem que um senador e um poeta sejam chamados, mesmo que um ao outro, de mentirosos abertamente. Bakhtin, em seu estudo sobre a obra de Rabelais, já agora no Renascimento, não concordaria com os autores acima, já que para ele, o humor é, se dá, se faz na quebra de regras; Eco também fala em regras, embora de natureza diversa das de Bakhtin, que são transgredidas no humor. A questão é que as regras aludidas por Cícero nos levam à terceira tese sobre o humor: rir, ou diríamos, ser alvo do riso é próprio das classes mais populares da sociedade.

É interessante observar como essa idéia do riso como algo baixo e não muito digno vai atravessar os estudos destes autores; no máximo, o que dizem para justificar o fato do humor penetrar também nas classes “superiores”18 é que existem dois tipos de humor: um mais polido, dentro dos limites da respeitabilidade, e um outro que poderia ser caracterizado como infame e inferior, obviamente atribuído às classes populares da sociedade. Graf (2002) descreve o que é para Cícero e, poderíamos também estender a outros autores, a graça aceitável e a inaceitável:

“o humor aceito é “elegante” (elegans), “polido” (urbanum, como só um habitante de cidade poderia ser), “inventivo” (ingeniosum) e “engraçado” (facetum), enquanto a graça inaceitável é “imprópria para um homem livre” (inliberale), “petulante” (petulans), “infame” (flagitiosum) e “obscena” (obscenum). As categorias sociais têm importância: os habitantes da cidade versus camponeses, os homens livres versus os escravos e versus os livres sem reputação; o humor mau instaura um tormento (flagitium) em seu portador; a elegância e a criatividade inata (ingerium) são, sem dúvida, traços marcantes da classe superior.” (2002: 53)

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Temos como exemplo o estudo de Le Goff (2002) sobre o riso na Idade Média, mostrando que mesmo os reis e monges riam.

Com maior ou menor ênfase, Bakhtin diz que o riso no Renascimento era uma forma de as classes populares liberarem, durante o carnaval, toda a tensão, limitação, opressão que agüentavam durante o ano; o problema é que, para ele, essa liberação se dá de forma grotesca e aberrante, já que, neste período, o mundo fica de cabeça para baixo. Já Eco, embora não crie imagens desse tipo a respeito do riso “popular”, diz que certos tipos de humor exigem uma cultura mais refinada, já que não é todo mundo que gosta e entende o humor de Woody Allen, por exemplo, pois, para isso, “é preciso ter certa cultura”. Talvez de forma não tão segregadora como Cícero, mas é possível entrever tanto nesses autores, como no senso comum, a idéia, a nosso ver, preconceituosa de que quem não tem cultura, não consegue entender certos tipos de humor.

É comum, aqui no Brasil, as pessoas dizerem que nem todo mundo gosta do humor de programas como Casseta e Planeta, Os normais; de publicações como as da revista Pasquim ou mesmo dos livros de Luís Fernando Veríssimo, porque não têm “cultura” o suficiente para entendê-los. Primeiramente, faz-se necessário indagar o que entendemos por cultura, porque, na maioria das vezes, parece-nos que as pessoas confundem falta de cultura com falta de conhecimento de mundo sobre um determinado fato da nossa vida social e histórica, que todos estamos sujeitos a não conhecer, pouco importando se somos analfabetos ou P.H.D. em alguma área. Além disso, muitas vezes, a ausência do riso acontece não por falta de conhecimento histórico sobre o assunto contemplado, mas porque, mesmo conhecendo o fato a que o humorista se refere, o riso não necessariamente acompanha a charge ou a piada lida. Pode-se deixar de rir de uma charge ou de uma piada porque esta não foi entendida, ou porque não se achou graça mesmo. Provocar o riso ou o sorriso é a intenção primeira do humorista, mas, dependendo do tipo de humor, principalmente aquele que retrata algum tabu social ou algum fato histórico vergonhoso para a história da humanidade, se causar um sorriso será, como diz Genette (1930), um “riso entre lágrimas”, como demonstra a charge a seguir: