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CAPÍTULO 2 Pressupostos teóricos

4.2. Análises a partir triangulação teórico-metodológica

4.2.2. Uma leitura das dimensões das práticas discursivas e sociais

Na dimensão das práticas discursivas, a proposta de Fairclough se volta para a produção, distribuição e consumo do texto, enfocando a coerência, força ilocucionária, marcas de intertextualidade e interdiscursividade nele manifestados. Por outra forma, importa para este estágio analítico realçar as circunstâncias de quem produz um texto para quem (MEURER, 2005).

Já a dimensão de análise do evento comunicativo como prática social o prevê como parte de um rol de práticas mais amplas, no qual se insere, e define que ele será representativo ao contribuir, com ou sem a intenção de fazê-lo, para a reprodução, manutenção ou mudança de determinadas práticas sociais. Nas palavras de Meurer (2005, p. 102), deve-se ser questionado: “Como o texto coopera com a reprodução e manutenção, ou com o desafio a ou mudanças de certas ‘realidades’”?

Como pudemos compreender até aqui, o enfoque crítico da ACD situa-se no entremeio de um estudo que não é exclusivamente sociológico, nem exclusivamente linguístico, tendo em vista que seu olhar aponta para a mudança discursiva e, consequentemente, social. Assim, buscarei contemplar essa perspectiva de maneira mais abrangente a partir deste ponto.

Assim, ao tomarmos um texto como V1, cujo gênero textual empregado situa-se entre o depoimento, o relato pessoal e a entrevista, ganha dimensão no sentido de que não se trata de um texto produzido pelos jovens jornalistas, mas por um membro não pertencente à ONG, que se propõe a levar o discurso que, possivelmente, circula na comunidade maior para o jornal e, consequentemente, para seus consumidores externos. Esse movimento de trazer a voz da comunidade para o jornal, além de compartilhar dos elementos ideológicos assumidos pelo AJIndo, garante o acesso à cidadania por parte dos indígenas locais.

As afirmações categóricas e repentinas, sem uma introdução ao assunto, por exemplo, como nos trechos A violência existe muito aqui na aldeia (em V1) e A violência na escola está muito feia (em V2), apontam para a possibilidade de que se trata de um assunto já abordado anteriormente nesse mesmo sítio eletrônico, ou, ainda, um assunto muito corriqueiro nas conversas cotidianas da aldeia.

Os dois textos apresentam marcas de intertextualidade entre si, em especial quando afirmam sobre o perigo que alguns jovens da aldeia oferecem para o restante da comunidade, de modo que a própria categoria jovem seja percebida quase como inimiga, que exerce um poder negativo sobre a segurança de todos.

Sob essa ótica, alicerçada em um contexto de práticas de violência frequentes, a coerência da temática se constitui no espaço em que o discurso tende a estabilizá-la, como em é assim que os jovens vivem aqui na aldeia (em V1), sem que haja indícios que remetam a uma transformação em andamento, e em O que adianta? Eles revistam os alunos e assim mesmo os alunos levam facas e outras armas (em V2), que dá indícios de orientações político-organizacionais faltosas. O texto, assim, aparentemente tende a confirmar certa ideologia já presente na aldeia, ou seja, aquela de que a violência predomina entre os jovens.

Na incursão na dimensão social, alcançamos a confirmação de que a violência é, essencialmente, uma prática comum a certos jovens indígenas e, mais especificamente, durante a noite, não havendo menção, em qualquer momento, a pessoas violentas não classificadas como jovens ou a práticas de violência que ocorrem durante o dia.

Parece claro – naturalizado – o discurso de que a estrutura familiar do indivíduo pode exercer influência no sentido de conferir aspecto retilíneo aos mais jovens, por meio do qual se evitarão desvios de conduta, sobretudo aqueles que levam a práticas violentas, como é o caso mais particular de que o texto trata. A essa luz, há indícios em V1 da habitualidade dos problemas familiares com os quais os jovens estão envolvidos, e isso é concebido no próprio texto com um revestimento disfórico, que preconiza a manutenção do discurso da importância da família nesse caso.

Por fim, a noite, como pano de fundo temporal para a ação identificada pela construção sair à noite (a esmo/sem especificidade), produz o sentido de perigo para aqueles que transitam pelas estradas vicinais das aldeias. Especificamente, aqueles que estudam (conforme mencionado em V1), se veem vulneráveis devido à escuridão e à maior probabilidade de serem violentados de algum modo, de forma que se estabelece a contraposição entre as identidades e as expectativas, isto é, na medida em que os transeuntes

noturnos são classificados em a) aqueles que estudam e b) aqueles que não estudam, constrói-se o sentido de que os estudantes esperam pela violência vulneravelmente, enquanto aqueles que não estudam esperam praticar a violência (ou, pelo menos, para começar a fazer coisa errada).

Posicionando-me a partir da perspectiva da AJI, o texto em questão revela, por outro lado, o potencial para a validação do trabalho por ela desempenhado, sobretudo com relação às oficinas práticas oferecidas nas aldeias da TI, que têm os jovens como público-alvo, isto é, diante da naturalização do jovem indígena propenso à violência, mostram-se favoráveis as ações que vão contra esse cenário, e contribuem para sua mudança.

Passemos para a problemática da educação.

O texto E1 comporta o pressuposto de que talvez circulem nas próprias escolas textos que não indiciam o comprometimento dos novos professores (daqueles que estudaram fora e retornam à aldeia). Há intertextualidade com currículos, materiais pedagógicos, calendários, que um não indígena, como o próprio pesquisador, desconhece, mas que deve ser de conhecimento de quem lê o artigo e é conhecedor da área, ou seja, esse texto ganha sentido (coerência) no diálogo que trava com outros textos que circulam na comunidade e que o autor abona, ou não.

Do ponto de vista da dimensão social, cabe mencionar a presença de uma característica hegemônica mantida pelos povos da TI de Dourados, e possivelmente por outros povos indígenas de outras regiões, no que concerne ao retorno daqueles que finalizaram um curso universitário à comunidade. No texto, o autor faz questão de definir o que se espera de um indígena que retornou à comunidade como professor, profissional da educação, ou seja, como ele precisa agir diante de seu contexto étnico-social.

Temos o contraste, nessa dimensão, principalmente entre as categorias profissionais índios e índios profissionais – estas expressões sugerem o embate entre duas ideologias vigentes na aldeia, sendo que o autor do texto trata de defender a segunda, contrapondo-se à prevalência dos conhecimentos acadêmicos sobre os tradicionais.

Para isso, o autor traz uma citação de Antônio Brand sobre a importância da manutenção dos saberes tradicionais pelos indígenas profissionais logo depois de, categoricamente, afirmar que em sala de aula, os novos formados ou cursistas aprendizes devem mobilizar a mudança e prática de postura construindo uma nova práxis-pedagógica. Em nenhum momento é afirmado o hábito de que indígenas profissionais substituem os conhecimentos tradicionais pelos saberes científicos. Contudo, a finalidade ou a

circunstância em que produz seus dizeres permite fazer tal inferência. Nesse sentido, o texto em questão se encaminha para o final quando o autor afirma a espera que o ensino dos novos professores atenda a expectativa pela melhoria da qualidade de vida coletiva nas aldeias, de modo que sua própria prática caracteriza certa intenção de mudança.

Já em E2, depois de estabelecidas as informações textuais que conduzem ao contexto da informação, interessou observar que as denúncias recaem sobre três questões principais. Na primeira, que se refere especificamente a uma das escolas, existe a alegação de que o prédio da instituição foi inaugurado sem que houvesse sequer o mobiliário necessário para o exercício profissional. A segunda se refere à falta de materiais básicos exigidos pela escola para os alunos, como lápis, caneta, caderno, borracha, entre outros. A terceira versa sobre as condições da estrutura das instituições, afetada por infiltrações e rachaduras, que tornam inviável a manutenção da limpeza.

Nesse texto, ficou evidente a abordagem de um problema administrativo de funcionamento da escola indígena como instituição social. Entre o trabalho dos professores e o da direção escolar produz-se uma tensão que, na instância social, é definida com verticalidade quando a responsabilidade pelos problemas ora enfrentados é direcionada à prefeitura.

A isso, soma-se a questão da produção e da distribuição do texto. Em forma de reportagem, a AJI foi até uma escola municipal indígena para conhecer, a partir dos próprios funcionários e alunos, a situação decadente de seu funcionamento. O vídeo foi produzido como uma atividade da oficina de telejornalismo oferecida pela própria ONG55.

Na sequência, investindo na questão da saúde, ao evidenciar-se a dificuldade de conscientização para o uso de preservativo durante relações sexuais, pode-se conceber S1 como uma amostra discursiva de certa forma convencional, compartilhada pela sociedade envolvente, para a qual o uso de preservativo, entre outros assuntos afins à vida sexual, não deixa de ser considerado um tabu, que embora seja abordado na mídia em geral com alguma frequência, o é no sentido de conscientizar a população sobre sua importância.

Embora sejam textos objetivos e sóbrios, ao compararmos S1 e S2, fica evidente a organização mais formal do segundo, que possivelmente tem relação com o fato de que o evento foi organizado por uma estudante e duas enfermeiras indígenas, das quais uma menciona a intenção de transmitir os conhecimentos adquiridos durante a graduação em enfermagem.