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Uma outra ponta: Evaristo, o devir, a escrevivência

CAPÍTULO 1 || Lispector e Evaristo: estrelas, pontas e crítica literária

1.2 Uma outra ponta: Evaristo, o devir, a escrevivência

O silêncio escapou Ferindo a ordenança E hoje o inverso Da mudez é a nudez Do nosso gritante verso Que se quer livre.

(Conceição Evaristo)5

Enquanto o estudo da obra de Lispector nos desafia pela dificuldade de compilar a vastidão da crítica a seu respeito, o de Conceição Evaristo, dada a contemporaneidade da autora, provoca-nos, mas, ao mesmo tempo, estimula-nos, pois somos obrigados a exercitar a pesquisa acerca da fortuna crítica sobre a autora que ainda se encontra espalhada em teses, dissertações e artigos publicados em diversos livros. Nossa opção foi, então, procurar fazer o levantamento da crítica para balizar o conjunto de sua obra e delinear uma poética já elaborada por seus estudiosos até chegarmos à perspectiva que usaremos no desenvolvimento da tese.

Situada nos Estudos Culturais, a obra de Evaristo dá um passo adiante no que Lispector já delineou ao criar Macabéa: a questão da alteridade. Declaradamente militante, Conceição Evaristo, na mesma via de Carolina Maria de Jesus,6 aprofunda-se numa escrita que revela o grito contido no silêncio da mulher negra subalterna no país. Nesse sentido, torna-se lícito e justo considerar a obra evaristiana também afro-brasileira, pelo engajamento performatizado em poética, que, segundo Tatiana Sena (2012, p. 285), ―utiliza a escrita literária como um local de enunciação transgressivo que pode reativar e reconfigurar os arquivos da memória da escravidão no Brasil, denunciando assim as consequências da dominação colonial‖. A escritora representa a mulher negra, privilegiando seu ponto de vista, problematizando seus estereótipos e suas relações com a sociedade sem perder de vista o fazer literário. Conciliar engajamento e literatura é um campo minado para a crítica literária, e a poética de Evaristo encontra a medida para que a ficção não caia na armadilha da idealização e a militância não se sobreponha à investidura na linguagem, ao cuidado nas construções

5 EVARISTO. ―Da conjugação dos versos‖, 2008, p. 49.

6 Podemos dizer que Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus estão na mesma esteira dos escritores que veem na literatura um exercício de alteridade, a criação de novas perspectivas sobre o outro e, principalmente, sobre uma tradição de escrita de mulheres negras desde Maria Firmina dos Reis em que podemos perceber o protagonismo da mulher afro-brasileira, bem como as reflexões sobre como vê as circunstâncias que a cerca e como é vista em uma sociedade branca e patriarcalista.

metafóricas e alegóricas. O resultado é uma escrita de cunho social, filosófico e, sobretudo, ímpar no que tange ao trato poético.

A trajetória de Evaristo caminha junto dos movimentos negro-feministas brasileiros, por isso não podemos deixar de incluí-lo nesse introito acerca da vida e obra da autora. Leda Martins (2007), num feliz movimento de traçar o panorama da tradição de uma escrita afro- brasileira, reconhece toda uma variedade de

[...] dicções (que) vêm despertar na crítica literária brasileira, principalmente a partir dos anos oitenta, uma atenção particular, tomando vulto, na voz de escritores e de críticos, um fértil debate sobre a propriedade de se nomear como negra ou afro- brasileira certas zonas de produção literária no brasil. (MARTINS, 2007, p. 73)

Para Martins, muitos foram os fatores que determinaram a possibilidade de afirmação da chamada literatura afro-brasileira, desde os anos 1970, quando houve

[...] a emergência do Movimento Negro, no contexto de abertura política que anunciava os fins da ditadura militar. A afirmação e eleição do 20 de Novembro como data celebrativa do negro brasileiro, em memória de Zumbi e da República de Palmares, que vêm juntar-se ao leque de movimentos ativistas e reivindicatórios que se impõem na época, dentre eles o Feminista. Os movimentos de escritores negros, reunidos em várias congregações. Grupos como o Quilombhoje, fundado em São Paulo em 1978, e o Negrícia, do Rio de janeiro, por exemplo, cumpriam uma função exemplar no estímulo à criação e no fomento de discussões literárias, postulando, ativamente, o reconhecimento de uma tradição negra, passada e presente, no âmbito da Literatura Brasileira, avessos à figuratização estereotípica e periférica de temas e personagens negros no bojo de nossa literatura e ao predomínio dos lugares de exclusão reservados aos afro-descendentes [sic] no contexto da sociedade. Livros editados pelos próprios autores, como o de Adão Ventura, A Cor da Pele, publicado em 1980, tonificam o ambiente. (MARTINS, 2007, p. 73)

A autora de ―Vozes mulheres‖ tem em seu projeto estético o eco desse contexto e não podemos negar ser esse o leitmotiv de sua escrevivência, em consonância com os demais autores negros, tal como Martins pontua:

A vivência subjetiva da afro-descendência [sic], em todas as suas dobras, transfigura-se, muitas vezes, em leitmotiv da criação literária, mimeticamente encenada de forma polivalente e polissêmica, às vezes ambígua e pesarosa, às vezes irônica, utópica, transgressora. Laborada como memória do vivido e do devir, caligrafa-se por engenhosos artifícios e ficções, instalados na e pela letra literária, matizando os rastros e lastros pelos quais a negrura, inicialmente menos ou mais audível, em tons mais ou menos pálidos, com maior ou menor visibilidade, se inscreve, se encadeia e se postula, como experiência de linguagem. (MARTINS, 2007, p. 59)

Bárbara Machado defende a tese de que Evaristo seria uma intelectual negra de suma importância na cena literária afro-brasileira. A mudança para o Rio de Janeiro foi fundamental para a criação de uma consciência aguda e engajada, pois Evaristo encontra na cidade o

contexto descrito por Martins, um movimento negro mais articulado com o que estava ocorrendo nos Estados Unidos em termos de Estudos Culturais, luta por direitos civis e descolonização dos países africanos. Segundo Machado, a trajetória dessa intelectual começa pela inserção nos coletivos já engajados, o Negrícia e o Quilombhoje, embora a consciência de sua negritude tenha ocorrido muito antes, desde a escola.

A obra de Evaristo vê na escrita formas de despontar outras verdades sobre uma classe e um povo silenciado. Isso justifica a necessidade de nos determos um pouco mais sobre a biografia dessas autoras, uma vez que a experiência imprime explicitamente um olhar agudo sobre a realidade em que vivem. De gênero diversificado, contos, romances, poemas, a coerência no tratamento do tema alteridade é explícita. A autora desloca e descentraliza o discurso hegemônico, pois apresenta um fazer literário em que memória, ativismo social e ficção se entrelaçam costurando um discurso que questiona as formas tradicionais de escrita e representação da literatura dita canônica, branca e letrada.

Constância Duarte, ao falar sobre gênero e violência na literatura afro-brasileira, considera os contos de Evaristo ―a expressão de um novo paradigma‖ e ―sua literatura assumidamente negra – como esta, assinada por Conceição Evaristo – ao mesmo tempo projeto político e social, testemunho e ficção, está se inscrevendo de forma definitiva na literatura nacional‖.7 Podemos, com base nas considerações acima, acreditar que a autora

pratica o que Bosi (2002) chama de escrita de resistência, pois apresenta em seu cerne uma tensão eu/mundo, baseada no princípio da esperança, voltada para o futuro. A resistência é considerada um movimento do foco narrativo, um feixe de luz que pode esclarecer o sujeito em seu contexto existencial e histórico. Seria a intervenção de um processo dialético no qual o sujeito não mais reproduz automaticamente o esquema das interações onde se insere, ele dá um salto para uma posição de distância na qual se vê e reconhece, pondo em crise os laços apertados que o prendem à teia de intuições. A prosa da autora promove essa crise quando nos apresenta um narrador que dá conta desse distanciamento, mas, ao mesmo tempo, aproxima- se de suas personagens a ponto de entender sua tensão eu/mundo e traduzi-la criticamente denunciando um ponto de vista diferente da tradição canônica.

Hoje considerada uma escritora brasileira de relevância internacional, Evaristo ainda extrai o conformismo da tradição ao traçar uma estética que, como afirma Marcos Fabrício da Silva,8 culmina numa atitude de emancipação epistemológica e performática, a escrevivência.

7 Disponível em: <http://150.164.100.248/literafro/data1/artigos/artigoconstancia.pdf>.

8 Disponível em: <http://nossaescrevivencia.blogspot.com.br/2013/03/a-poetica-da-ancestralidade-em- poemas.html>.

Está aí a inovação da escrita evaristiana que une engajamento e experiência no que Eduardo Assis chama de ―brutalismo poético‖9, pois tece a violência e a dor da subjetividade

afrodescendente com lirismo e leveza na abordagem temática, provocando impacto no leitor surpreendido pela escrita poético-imagética capaz de fazê-lo perceber e reconhecer a diversidade de cores e estilos da literatura brasileira. Adélcio Cruz, na resenha sobre a última antologia publicada, Olhos d'água,10 arrisca dizer que há um narrador feminino e negro que mantém o tom poético ao narrar, construir, sugerir as imagens criadas para envolver o leitor e que é fundamental para representar a proximidade da ―voz que narra aos acontecimentos que se desenvolvem vorazmente diante dos olhos-ouvidos do receptor‖ (2015).

Em um artigo autobiográfico publicado em 2007, Conceição resgata – numa aparente despretensão – um dos aspectos mais importantes da escrevivência. Nele, o universo de histórias, fantasia e imagens se mistura à fome e à ―servidão‖ da família de lavadeiras. Mãe, avó, tias, mulheres-símbolo, exemplo de luta e inspiração para a criação de histórias que não servem para ―ninar os da casa grande e sim para incomodá-los em seus sonos injustos‖ (EVARISTO, 2007, p. 21). A tradição dessas mulheres que faziam do chão e do barro o papel-tela para desenhar e chamar o sol, num gesto performático, um ritual para afastar a fome e trazer a fantasia, é o pano de fundo para a autora de ―Vozes mulheres‖, o escopo da escrevivência está ali: criação de uma tradição que tece a dor num faz de conta impactante, ascende os seus, joga luz onde só havia relampejos, dá voz ou inventa formas de adentrar o silêncio daqueles que não se reconhecem na tagarelice da pós-modernidade ainda cartesiana.

A palavra escrevivência é um neologismo que, por uma questão morfológica, facilmente compreendemos. A ideia de juntar escrita e experiência de vida está em vários textos ligados à literatura contemporânea, uma frágil busca no Google denota isso. Entretanto, Evaristo se apropria do termo para elucidar seu fazer poético e lhe fornece contornos conceituais. Traçando a trajetória do termo, podemos partir do texto de 2005 publicado pela Editora Universitária da UFBA, referente a uma conferência dada dois anos antes na mesma faculdade intitulado ―Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face‖. Nele, há uma definição que acaba por se aplicar a toda uma geração de escritoras negras que imprimem em seu texto o desejo de que as marcas da experiência étnica, de classe ou gênero estejam realmente representadas no corpo do texto literário. Nas palavras da autora:

9 Disponível em: <http://150.164.100.248/literafro/>. 10 Publicada em O TEMPO, Caderno Magazine, p. 5.

Assenhoreando-se ―da pena‖, objeto representativo do poder falo-cêntrico branco, as escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens de uma auto-representação. Surge a fala de um corpo que não é apenas descrito, mas antes de tudo vivido. A escre(vivência) das mulheres negras explicita as aventuras e as desventuras de quem conhece uma dupla condição, que a sociedade teima em querer inferiorizada, mulher e negra. (EVARISTO, 2005, p. 204)

O conceito, então, destaca-se pela aproximação, por um lado, e pelo distanciamento, por outro, da realidade transformada em ficção com o objetivo de trazer um diferente olhar para a cena literária habitual em que os estereótipos e os lugares de brancos, negros, pobres e ricos estão muito demarcados. Levando a questão da identidade e diferença para o texto literário, a escrevivência teria esse duplo papel de releitura ou rasura da história e de reversão do estereótipo da mulher negra no país, pois tem à frente mulheres intelectuais e conscientes do poder de transformação da leitura e da escrita. Bem como ressalta Evaristo ao ponderar que:

Nesse sentido alguns textos tornam-se exemplares, como os de: Geni Guimarães, Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves, Lia Viera, Celinha, Roseli Nascimento, Ana Cruz, Mãe Beata de Iemanjá, dentre outras. Não se pode esquecer, jamais, o movimento executado pelas mãos catadoras de papel, as de Carolina Maria de Jesus, que audaciosamente reciclando a miséria de seu cotidiano, inventaram para si um desconcertante papel de escritora, que para muitos veio macular uma pretensa e desejosa assepsia da literatura brasileira. (EVARISTO, 2005, p. 204)

É notório que o termo escrevivência passa a ter então uma importância histórica e dialoga intimamente com as dimensões do silêncio na literatura que estamos delineando aqui. Isso porque, nas entrelinhas da literatura canônica e história oficial, há um lugar silenciado que as autoras desejam reparar. Para Evaristo,

[...] essas escritoras buscam na história mal contada pelas linhas oficiais, na literatura mutiladora da cultura e dos corpos negros, assim como em outros discursos sociais, elementos para comporem as suas escritas. Debruçam-se sobre as tradições afro-brasileiras, relembram e bem relembram as histórias de dispersão que os mares contam, se postam atentas diante da miséria e da riqueza que o cotidiano oferece, assim como escrevem as suas dores e alegrias íntimas. (EVARISTO, 2005, p. 204)

O corpo mutilado está alegoricamente representando a terceira dimensão do silêncio que queremos traçar. Há aqui uma falta irreparável no que tange à história de uma cultura negligenciada. Enquanto a segunda esfera nos remete à falta de diálogo, esta se refere à

invisibilidade. Teremos, assim, um desdobramento da poética do silêncio que estamos desenvolvendo na tese. Num primeiro momento, deparamo-nos com uma voz caótica, cheia de lacunas, exatamente por evidenciar a incapacidade de a escrita/fala revelar a realidade. Há uma impossibilidade de representar o que está no plano das ideias ou sentimentos e por lá permanece. O texto ou a fala manifestam, então, essa dificuldade de representação, as entrelinhas do espaço da escrita dizem mais que o discurso desordenado pela ausência. O discurso de S.M ou a fala de Ponciá evidenciam esse silêncio lacunar11. É mais coerente apreender o que não foi dito, pois revela a dificuldade de lidar com a realidade em questão.

Há uma dimensão mais profunda que pode partir da primeira, pois revela um ruído em relação à alteridade. Um dos pontos tensos de representação das narrativas com que estamos lidando está na dicotomia reflexo/não refletido, relação/ou não relaciona. Macabéa, Olímpico, Ponciá, Luandi e tantos outros, apesar de tentarem, não encontram escuta do lugar de onde falam, logo, não possuem voz nem visibilidade. Há um silêncio provocado pela ausência de alteridade, pois não há possibilidade de ―nós‖ e ―eles‖ se intercambiarem. A relação de Rodrigo e Macabéa expressa esse silêncio da negação, pois a figura de Macabéa, para seu narrador, é aquela repleta de estereótipos, o silêncio de Macabéa é a diferença entre o homem letrado e burguês e a nordestina pobre e semianalfabeta. A voz de Macabéa ecoa no vazio da falta de alteridade ou de uma alteridade revestida, pois Lispector cria um narrador que aparentemente se interessa por uma realidade outra e vê a necessidade de falar dela, mas seu discurso tem como foco sua própria vida, seus próprios anseios. Ao olhar para sua personagem, seu objeto, ele só consegue ver a si mesmo. Macabéa fica invisível e inaudível diante de seu narrador, assim como é Ponciá ou Luandi diante dos patrões.

A camada mais profunda dessas poéticas de silêncio está no desdobramento da invisibilidade histórica dos negros e pobres no projeto de nação. Ela abrigaria o silêncio lacunar, pois evidencia a dificuldade de representação dos sujeitos aqui em questão, e o da negação, pois reconhece a ausência do discurso do outro nos textos legitimados no ideal de nação, o silêncio transgressor traz a diversidade e a identidade junto dos seus conflitos para o espaço da escrita. Seu caráter é de denúncia e sua ferramenta é a fissura, pois nela há a possibilidade de leitura do que foi negligenciado. O silêncio transgressor salta dos escombros,

11 A ideia de silêncio lacunar parte da escrita clariciana, que é caótica. Porque performatiza essa dificuldade que

o discurso tem de representação da vida, ela vê o fracasso e a beleza da linguagem num paradoxal movimento de construção e desconstrução da personagem. Entretanto, o viés que mais nos interessa está relacionado à questão da alteridade, que também apresenta falhas na sua representação discursiva, o que desencadeará o silêncio da negação. Ao privilegiar esta abordagem, não estamos negando aquela e não queremos reduzir a escrita clariciana, tão diversa, a essa questão. Trata-se de um recorte temático para facilitar e objetivar a pesquisa.

está no pavor de S.M. diante de Macabéa muda, no acolhimento do vazio de Ponciá, no abandono da farda de Luandi. Sua representação no espaço literário dialoga, portanto, com o conceito de escrevivência que Evaristo delineia.

A perspectiva da escrevivência alcança uma dimensão cultural e política, mas sem recair nas armadilhas da literatura engajada dos anos 1960 e 1970, preservando a potência da literatura como realidade social. É uma literatura que suplementa aquela habitual, não deseja golpeá-la, mas sabotá-la, repetir para transformá-la. A personagem Tio Totó, no romance Becos da memória, de Evaristo, traz a questão do difícil acesso dos negros e pobres à escrita – situação, diga-se de passagem, encontrada em várias personagens da prosa evaristiana – e o processo de reversão da situação que dialoga com o conceito em questão:

Nas andanças de lá para cá, consegui um punhado de almanaque, li todos, foi o tempo em que eu mais li. [...] Senti que lia melhor. [...] Uma vez li em voz alta pra mim e senti que quase não gaguejava mais. Passei então a copiar tudo que eu gostava num caderno e veja isso aqui. [...]

Os sonhos dão para o almoço, para o jantar, nunca.

- Fiquei embatucado com aquele dizer. Primeiro pensei que era sonho (doce, daquele tão gostoso que sua tia Maria-velha faz). [...] perguntei ao Zé Noronha [...] ficou de levar para a escola. Era pedreiro de dia e estudava de noite. E, se levou, nunca me deu resposta. Um dia, encontrei novamente o almanaque nos pertences meus [...] Hoje só tenho comigo o caderno e agora entendo o que quer dizer. Hoje sei que o escrito fala do sonho. [...]

Hoje descobri a verdade do dizer daquele ditado. Sonho só alimenta até a hora almoço, na janta, a gente precisa de ver o sonho acontecer. Tive tanto sonho no almoço de minha vida, na manhã de minha lida, e hoje, no jantar, eu só tenho a fome e a desesperança. (EVARISTO, 2006 73-74, grifo nosso, itálico da autora)

O trecho dialoga com a teoria aqui descrita em várias esferas. No texto, a palavra grifada para acentuar a ideia da gagueira nos mostra a interferência do pobre e subalterno na língua oficial: a necessidade de repetição para o possível encontro com o seu sentido. Gaguejar muito ou pouco denota o grau de dificuldade em lidar com um idioma que deveria lhe ser familiar e a impossibilidade de usá-lo com destreza para a construção de sua realidade. O trecho ilustra um entendimento da língua que vai do literal ao metafórico e, nessa crescente, o entendimento se torna doloroso. Ao saber de que ―sonho‖ o dizer tratava, a personagem cai em desesperança. O acesso à língua escrita abriu caminhos, mas também abriu os olhos de

Tio Totó para compreender tudo o que estava fora de seu alcance. A reiteração do advérbio de tempo ―hoje‖ comunga com o conceito de escrevivência, pois costura a percepção mais profunda da vida, do texto com a experiência. Não bastou à personagem conhecer as letras para compreender o pequeno texto que desejara destrinchar. Era preciso vivenciar algo para que aquelas palavras fizessem sentido. A dificuldade da personagem em encontrar uma

resposta para suas questões dialoga com o silêncio da negação, pois revela a invisibilidade e falta de interlocução provocada pelo abismo existente entre ricos e pobres do país no que tange à educação. A ausência de fome a que se refere Tio Totó, descrita na prosa poética de Evaristo, é um silêncio grito marcado exatamente por mostrar o que falta, o que faltou historicamente.

Notemos que a autora estabelece uma relação mais utilitária com a língua escrita, à serviço da oralidade, pois explica: ―creio que a gênese da minha escrita está no acúmulo de tudo que ouvi desde a infância‖ (EVARISTO, 2007, p. 19). O que lhe faltava de matéria literária escrita sobrava na oralidade:

O meu corpo inteiro recebia palavras, sons, murmúrios, vozes entrecortadas de gozo ou dor, dependendo do enredo da história. De olhos cerrados, eu construía as faces de minhas personagens reais e falantes. Era um jogo de escrever no escuro. No