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3 DONOS DAS ROCAS: TECIDOS DELICADOS E TRAMAS FIRMES Um escritor faz obras pensando em marcar a vivência das pessoas que a lerem ou em

3.2 Dono da roca: Autran Dourado

3.2.1 Uma poética de romance

Uma fortuna crítica sobre Autran Dourado, a meu ver, deve se debruçar sobre sua obra de ensaio Uma Poética de Romance: matéria de carpintaria (1976). No livro, ele colabora não apenas com os críticos, mas em especial com o leitor brasileiro, quando escreve, de forma muito particular, sobre o seu ato de escrever. Nessa obra emerge um Dourado desnudado, revelando segredos, truques, os momentos de invenção e as aflições do fazer poético. Do fruto desse mergulho passo a apresentar alguns dos principais pontos:

Com dois ou três elementos simples, despojados, estilizados, ergue-se um personagem, que se articula a um outro ou a outros na composição, no risco, do romance. Esses elementos (às vezes um só, a perna mecânica de Ahab, a concunda de Quasímodo, por exemplo) funcionam como um sinal para o leitor, que num instante pode identificar o personagem, visualizá-lo. Às vezes o leitor, quando o sinal é bastante característico e forte, é capaz de “ver" perfeitamente o personagem, saber até como é o seu rosto, coisa que não acontece com o romancista, que quase sempre não sabe como é a cara da sua criatura. (DOURADO, 2000, p. 100-101)

O autor entende que os personagens têm importância didática e científica e muitos dos sentidos que alcançam são frutos de empréstimos dos próprios críticos. Essa espécie de “passe de mágica”, que coloca os personagens na ordem do dia do leitor, está arraigada naquilo que Dourado chama de técnica associativa, que detém as figuras de retórica e muitas outras técnicas. Assim, os personagens se criam. “O personagem não existe anteriormente a si mesmo, ele só existe depois de criado, de narrado, e só se cria e se narra um personagem através, por exemplo, entre muitas outras técnicas e figuras de retórica, da técnica associativa” (DOURADO, 2000, p.105).

Nesse discorrer sobre personagens, Dourado constrói Uma Poética de Romance em interlocução com o seu mestre imaginário. É uma espécie de personagem composição e estrutura, muito recorrente, que "palpita" sobre seu próprio fazer como autor. Dourado revela tanto de sua carpintaria que chega a ser um risco para mim, já que, quanto mais revelado, menor espaço tenho eu para criar análises. Na minha ânsia de encontrar o “conhecimento e habilidade artesanais na sua linguagem” (DOURADO, 2000, p.113) fui buscar ler outros romances dele e, assim, fui tocada pela singeleza de Biela, de Uma Vida em Segredo (1964) tão diferente da elaborada e ardilosa Malvina, nascida uma década depois, em Os Sinos da Agonia (1974).

Afrânio Coutinho, em A Literatura no Brasil, traz uma fortuna crítica com grau de apuração sobre Waldomiro Autran Dourado. Muito útil, embora o livro seja conciso, pois menciona diretamente produções de 1964, com Uma Vida em Segredo - em nota de rodapé consta a bibliografia desde o seu princípio, em 1947 - até A serviço Del-Rei, 1984 (ficção). Ficariam ainda nove obras, posteriores à publicação de A Literatura no Brasil, da edição que estudei. E desta “apuração”, realço a anotação de Coutinho de que: “Waldomiro Autran Dourado, desde seus primeiros contos e novelas, procurou articular a sondagem psicológica com a percepção estruturadora do tempo e do espaço. Manifestando, na caracterização dos personagens, uma constante predileção por consciências primárias, surpreendidas num fluxo de ideias, emoções e deslumbramentos […] (COUTINHO, 1986, p.573).

Sobre esse mergulhar no interior do personagem a que o crítico literário se refere e classifica como “monólogo interior”, Autran também falou bastante em Uma Poética de

Romance. Antes, contudo, quero esclarecer a discrepância com que crítico e autor tratam desse assunto:

[…] as crianças de Nove histórias em grupos de três (1957), o idiota Fortunato de A Barca dos homens (1961), a provinciana Biela de Uma Vida em Segredo (1964) -, o ficcionista não as isola no circuito difuso da intemporalidade. Instalam-se ou trazem nelas mesmas esculpidas as circunstâncias duma situação que as define. Movidas por estímulos próximos, estabelecem conexões da autodescoberta do mundo circundante. O fluir do monólogo interior vem, necessariamente, articulado com o curso da ação externa. A história de A barca dos homens vai-se constituindo a partir de perspectivas variadas, num processo de rememoração fragmentada, mas no momento em que uma ameaça põe em sobressalto toda a população do romance, os vários fios narrativos se encontram e tecem a unidade coesa da obra”. (COUTINHO, 1986, p. 573-574)

Não afirmo que Coutinho reduziu a leitura dos personagens de Dourado, mas atesto que encontrei, na escrita de Autran Dourado, a vontade de incutir em seus personagens mais que o “monólogo interior”, conceito que ele próprio ataca como algo reduzido. Ao explicar suas técnicas narrativas Dourado faz uma diferenciação, afirmando que o stream-of- consciousness é mais profundo que o monólogo interior, inapropriado ao autor:

Se no Brasil tivéssemos tido a sorte da tradução do termo ter sido via língua inglesa (“fluxo de consciência”, por exemplo; agora talvez seja tarde, me desculpe o prof. Othon M. Garcia, citando um dos seus muitos estudiosos, Robert Humphrey), não teríamos a impropriedade que é “monólogo interior” a agravar ainda mais a dificuldade de falar sobre romance, por não existir uma terminologia específica, como acontece com a poesia, o que nos obriga a constantes metáforas e empréstimos. O stream-of-consciouness é mais amplo, mais complexo, mais abrangente; o monólogo interior é outra técnica livre. (DOURADO, 2000, p. 104-105)

Daí sim reforçando a leitura de Coutinho sobre os personagens no excerto anterior, neste fluxo de consciência, Dourado afirma haver um mesmo fio que entrelaça os seus personagens, evoca a psicanálise para confirmar que são interligados, que recebem a influência e a aprovação de seu mestre imaginário e que eles se entendem independente do tempo em que estão inseridos, pois têm uma missão maior - a de compor uma história: ser um livro.

Na vida real nunca há a tessitura subterrânea, a fusão quase mística (e aqui a metáfora dos vasos comunicantes seria boa), o rio extravasante que perpassa os meus streams-of-consciounsness, os personagens tendo como que um chão de alma em comum, que não é bem o inconsciente coletivo de Jung mas outra coisas para a qual ainda não se encontrou nome.

Embora tão solitários, os meus personagens não existem sozinhos. Ligam-se uns aos outros sem perceberem, subterraneamente. Mesmo sem se falarem, sem se verem, sem mesmo se conhecerem, intercomunicam-se. Inconscientemente, magicamente -

vamos dizer, formando um conjunto, a unidade vertical e subliminar do livro. (DOURADO, 2000, p. 108-109).

Essa sapiência de Dourado o torna o grande mestre de suas obras, convence o leitor de que formar uma macrorrede narrativa era o seu propósito. O autor mineiro confirma a toda prosa que era aficcionado por Machado de Assis, não apenas leitor dele. Por isto mesmo, empenhou-se em criar o seu próprio estilo, algo que pudesse marcá-lo, como teve o velho “bruxo do Cosme Velho”, que "tinha conseguido ser o grande prosador e o grande romancista que era fazendo a fusão da expressão clássica com o seu poder narrativo e novelístico excepcionais” (DOURADO, 2000, p.112). Inspirado em Machado, se desafia e na obra conta como alcançou sua fórmula:

Em outras palavras, mas na mesma clave: a boa prosa e a prosa de ficção são coisas inteiramente diferentes. E eu tinha que optar entre ser bom prosador escrevendo ficção ou um bom romancista, mesmo correndo o risco de ser um mau prosador. Escolhi o romance, não sei se fiz bem. Um malicioso poderia dizer que se perdeu um possível prosador e não se ganhou um bom romancista. O que pode ser. (DOURADO, 2000, p. 113).

Parece ter “se desligado" para encontrar a si próprio. É como se tivesse feito um movimento de se zerar em seu próprio eixo, para dali encontrar novamente a força motriz para produzir, ciente de um diferenciado esforço retórico e estilístico:

Dessa descoberta e decisão, daí em diante comecei a trabalhar na linguagem buscando a minha própria expressão de romancista. Fui me desvencilhando aos poucos de tudo aquilo que tinha aprendido com os meus antigos mestres. A máxima de que quando uma frase no romance não chama a atenção por nada de especial, não se distingue nem pela riqueza, ela funciona e está perfeita, foi durante algum tempo, para mim, quase um dogma de fé. Depois reconsiderei o assunto, é verdade. Mas comecei a trabalhar a minha linguagem. Por exemplo, quando comecei a trabalhar por blocos mais ou menos soltos e autônomos, verifiquei que assim também devia ser a minha linguagem, a minha prosa. Eu fui riscando e podando e evitando as adversativas, a ligação entre as orações. As orações deviam se ligar e fundir-se por um outro critério que não o da coordenação e subordinação, critérios da velha lógica que marcou a gramática, próprios da boa prosa; deviam se ligar, por exemplo, à falta de uma expressão melhor, por aproximação e contiguidade ou identificação emocional de tônus. Assim deveriam ser a orações nos períodos, os períodos nos parágrafos, os parágrafos nas partes, etc. O micro devia obedecer ao mesmo modelo do macro, um devia ser consequência do outro. O intrincado tecido. (DOURADO, 2000, p. 113-114).

Com tranquilidade, ele revelou a fórmula dos blocos narrativos e o árduo caminho gramatical a que submetia a sua linguagem. Estava pautado na coerência e na coesão da cadência de fatos que escreveu, ao longo das décadas, de uma personagem que revelava um

lado jamais visto em outra. Sobre tudo isso, Carlos Nejar exemplifica pelo viçoso avançar das obras de Dourado. Vejo que o que o autor contou é pelo crítico confirmado, no entendimento que em Autran há sede de Absoluto:

Há que amar nos outros a diferença, também em bloco do mesmo autor com outros, a multiplicidade dos personae, ou seres que refletem a grandeza deste criador de uma cosmologia própria, que também optou, como Borges, pela mitologia com Jasão e o Minotauro, arquétipos da linguagem humana. Porque o Minotauro há de ser vencido por Jasão: a palavra, a palavra que tem o fio da razão comburente e a razão de outro fio, a memória. O senso do poético se entretém neste autor de labirinto ou subterrâneos da alma, com clarões de harmonia, os motes, refrões remudados ou não (“o senhor querendo saber, primeiro veja”; “águas passadas não tocam moinho”; papagaio velho não aprende a falar”), essa prosódia popular nos eruditos e arcaicos que se fundem com os sinos do Monte da alegria, ou a morte que não quer morrer. (NEJAR, 2007, p. 476-477).

O crítico Nejar é um admirador confesso de Autran Dourado, e das histórias literárias que tive em mãos, a dele me pareceu a mais atualizada, em que pese ser o texto mais literário e de mais difícil interpretação, uma vez que intrincando tessituras, nas quais derruba as fronteiras entre as obras, citando-as como a objetos comuns de seu argumento, o que exigiu um olhar ainda mais atento e uma pesquisa contínua na própria biobliografia de Autran Dourado, para compreender. Nejar aproxima Dourado de autores latino-americanos como Borges e García Márquez. Em seguida, relaciona toda a alegoria que o objeto “sino” edificou em sua obra:

Os sinos tocam por todos (Hemingway), os sinos que não deixarão de tocar, desde o Monte da alegria e onde acontecimentos se dão em Duas pontes, a Fazenda do Encantado, a Fazendo do Fundão (roça), numa linguagem que se amaneia aos sucedidos. Sim, os sinos das bocas de afundados martírios, entre a Ópera dos mortos, que é preciso enterrar, e A barca dos homens, batendo, a sexualidade de Ana batendo, Ana, a noiva, Marília de Dirceu, noiva de Minas pacificada, o roldão dos sinos entre a ferocidade de Malvina-Malina (Macbeth) contra Gaspar, o assassino de seu marido, o sino de uma vingança destrutiva e o suicídio, o sino do amor possesso do Mal. Lucas Procópio, Donga Novais e o amor de Lulu, Pedro Chaves, o réu Januário Cardoso, fugido do braço da justiça Del Rei (cidade mineira) com sua farsa de terror, o El Rei e o Capitão-General, todos compõem a vasta galeria de tipos que se agravam na mente dos leitores, ou pelos pormenores das descrições, diálogos bem delineados, com poucas e alvejantes pinceladas, põem-nos diante de uma visão que se esboça e se completa no leitor. (NEJAR, 2007, p. 477).

Quão pertinente, estudando eu Os Sinos da Agonia, contemplar esse vasto painel de Nejar. Saliento que os nomes Duas pontes, a Fazendo do Encantado, a Fazenda do Fundão (roça), embora destacados em itálico, não são nomes de obras, mas sim de alguns dos espaços presentes em romances do autor mineiro, o último, motivo da saudade de Biela, de Uma Vida

em Segredo (1964), por exemplo, que provavelmente Nejar empregou em itálico como recurso de ênfase analítica. Elucido com mais um trecho literariamente rico do crítico, para falar da simplicidade com que Dourado transforma o comum no incomum:

Embora Autran tenha criado tipos admiráveis, os vivos e os fantoches, a barca dos mortos, o humor negro da estupidez não é seu forte, que é demasiadamente lúcido, o senso comum que não se engatilha nesse desperdício humano, ainda que o desperdício se engatilhe nele, o drama humano, tantas vezes eivado de mazelas morais. Quanto maior o romancista, menos tenta amarrar ou criticar seus personagens: a luta de Autran é a do ser dramático com o ser ferozmente lúcido e o lúdico, sempre presidido pela obsessão de unidade. A lição de Rabelais, como, mais tarde, a de Faulkner, é a de não julgar, por não ser um juiz, por ser romancista, deixando suas criaturas viverem. Como Proust, Autran sabe retratar a dissimulação; porém, ao desintegrá-la, já está julgando. Mas há um dado impressionante, e o leitor pode acompanhar “o crime e o castigo”. Quanto ao lugar-comum, Autran Dourado diz, em Matéria de carpintaria, que não tem problema no uso do lugar-comum. Ora, o lugar-comum não deixa de ser problema quando continua lugar-comum.

Diferente de outros que se extraviam nele, Autran em sua ciência narrativa nunca é comum, muitas vezes é o mistério do encantamento: o de transformar o comum no incomum. (NEJAR, 2007, p. 478).

Justamente por, diante deste vasto painel composto, ainda permitir que o leitor divague e acrescente nesta personalidade, concluo assim que Dourado alcançou o estilo que tanto fundamentou. Ele realiza essa profundidade em seu leitor: “É necessário nisso magicar, cruzar palavras a nado. Basta uma iluminação, seja adjetivo, seja advérbio, seja um relance. O mágico é o comum que se deslumbra, desperto. E Autran trabalha os fragmentos como se fossem conjuntos, e os conjuntos desdobram-se em fragmentos, peças do grande Todo, a Obra". (NEJAR, 2007, p. 478).

Se Nejar considera que os livros de Autran saem do particular para o universal, com o que chama de "a língua saborosa do Brasil”, em contrapartida, Bosi (2006) não o inclui em sua história literária. Alfredo Bosi destina a parte final da História Concisa para “A ficção entre os anos 70 e 90: alguns pontos de referência”. Contudo, entre os ditos pontos, diretamente não dispensa uma linha ao autor mineiro. O mais próximo de Autran Dourado que Bosi (2006, p.435) chega é o de colocar Guimarães Rosa e Clarice Lispector como autores "pós-modernistas maiores”, o que - apesar de apreciar muito ambos, em especial Clarice - considero equivocado da parte do teórico. “Se a nossa história política nos ajuda a estabelecer o divisor das águas, este poderá passar pela fase mais negra da ditadura militar, entre 64 e 74, com toda a sua carga de opressão, exílio e censura” (BOSI, 2006, p.435). O contexto que traz, da fase mais negra da ditadura, pelo que se sabe é o oposto do foco do mineiro, muito embora

1974 seja o ano de publicação de Os Sinos da Agonia e, em especial, na Jornada narrada por Januário, se tenha menções à Inconfidência, mas sem a pretensão de ser um romance histórico, apenas sim falar sempre de Minas.

Não, não penso ser Ópera dos mortos transição. Toda a literatura de Autran Dourado tende para o fim do início do futuro, por haver avivado o passado. Como um menino que se encontra à beira do torvelinho das águas, contemplando a passagem de todas as coisas pelo Rio das Mortes de Minas, sendo tudo passagem. E assombrosamente humano. Pois o contador de histórias é o senhor das horas, “pois cada coisa tem sua vez, hora e lugar… Todo o bordado tem seu risco próprio”, adverte em seu último livro (Senhor das moscas, de Golding?). E Minas é o constante tempo. Sem deixar de atentar para Heidegger, quando afirma: “A alma na Terra é uma coisa estranha”. Autran, como Tio Zózimo, volta para a Casa do Idioma, Pai. E o idioma é a sombra de todas as coisas. (NEJAR, 2007, p. 478).

É interessante perceber o carinho com que o crítico trata o autor mineiro, fala com a propriedade de quem passou longos dias ao lado de Dourado, como se neste capítulo ensejasse realizar uma profícua homenagem ao amigo. Seja como for, o labor criativo e potencial literário do romancista foram bastante evidenciadas nessa história literária que abarca de sua primeira até a última publicação, saída um ano antes da edição de História da Literatura Brasileira que tive em mãos.