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Uma referência ao Concílio de Orange na DV 5

1.2. A REVELAÇÃO COMO REFERÊNCIA PARA O ATO DE FÉ

1.2.2 Uma referência ao Concílio de Orange na DV 5

Antes de ingressar no texto da DV 5, cabe um último elemento introdutório. Embora o Concílio de Orange tenha acontecido no século VI, antecedendo, portanto, os Concílios de Trento e Vaticano I, ele será apresentado, aqui, em sua relação com a DV 5 não seguindo a ordem cronológica, mas considerando sua incidência. Partindo desse princípio, justifica-se a precedência de Trento e Vaticano I no desenvolvimento dessa primeira sessão.

O Concílio de Orange, realizado no século VI, ocupa um lugar distinto na DV no que diz respeito às referências para a redação. Ele é citado uma única vez em toda a Constituição para justificar uma das afirmações na DV 5 quanto à ajuda da Graça e ao auxílio do Espírito Santo. Como dito anteriormente, ele é citado diretamente repetindo a mesma afirmação utilizada pelo Concílio Vaticano I na Dei Filius (cf. Dezinger- Hünermann 377, 3010). Para melhor compreender a importância dessa menção, segue-se

uma breve apreciação da questão desenvolvida nele, considerando o teor de seu conteúdo citado na DV 5.191

a) A questão do initium fidei: graça ou disposição humana?

O Concílio de Cartago (418), que havia se ocupado da controvérsia pelagiana192 não fora o suficiente para resolver as questões sobre a relação entre o ser humano e a graça divina. Anos depois, uma nova dificuldade teológica seria levantada e somente séculos depois (XVI-XVII) seria nomeada como semipelagianismo.193 Independente da posição pelagiana, buscavam ao mesmo tempo afirmar a vontade salvífica de Deus e a responsabilidade humana contra a possibilidade de um predestinacionismo fatalista.

A posição dos adeptos desse movimento afirmava que a relação entre o ser humano e Deus se dava em um profundo sinergismo, ou seja, em uma relação de cooperação autêntica. Essa cooperação logo despertou dissenso por sustentar a ideia de que “Deus não se dispensava de aguardar nossa iniciativa, nossos primeiros passos, antes

191 Assim aparece citado na DV 5: “Para que se preste essa fé, exigem-se a graça prévia e adjuvante de Deus

e os auxílios internos do Espírito Santo, que move o coração e converte-o a Deus, abre os olhos da mente e dá ‘a todos suavidade no consentir e crer na verdade’” (DV 5). (Em itálico, a citação de Orange que pode ser também localizada na Dei Filius do Vaticano I, Denzinger-Hünermann 3010).

192 Controvérsia pelagiana: Iniciada por um monge irlandês chamado Pelágio, que, como diretor espiritual,

propunha uma vida ascética motivada pelo estoicismo. Para ele, a graça não é uma ação interna de Deus na vontade humana, mas externa pelo exemplo de Cristo, batismo, penitência, eucaristia, doutrina cristã. Ele defendia um naturalismo otimista frente ao pessimismo maniqueísta, opondo-se também à doutrina do pecado original defendida por Agostinho, seu grande opositor. As ideias de Pelágio, assumidas por Celéstio e Julião de Eclano, darão início ao pelagianismo, elaborando-o teoricamente. Celéstio e Julião propunham, inspirados em Pelágio, a confiança na capacidade humana como apta a fazer o bem e evitar o mal. Para eles, o pecado de Adão não corrompeu todo o gênero humano e, portanto, o ser humano nasce sem pecado e pode facilmente observar os mandamentos. Segundo Ch. Baumgartner, o pelagianismo pode ser resumido na seguinte proposição: “El hombre puede cumplir los mandamientos de Dios por sus propias fuerzas, sin que para ello tenga necesidad de un auxilio divino interior a su voluntad”. (BAUMGARTNER, Ch. La gracia de Cristo, p. 103. Cf. BINGEMER Maria Clara Luchetti; FELLER, Vitor Galdino. Deus-amor: a graça que habita em nós, p. 100-102. LADARIA, Luiz F. Teología del pecado original y de la gracia, p. 86-91. RUIZ DE LA PEÑA, Juan L. O Dom de Deus: Antropologia teológica, p. 101-113).

193 “Os semipelagianos não eram nem discípulos de pelagianos nem de pessoas que estivessem em ligação

com eles. Havia no máximo uma certa analogia com os pelagianos no sentido de ambos os grupos rejeitarem seguir santo Agostinho e a Igreja na evolução ulterior de sua reflexão sobre a graça. Na Antiguidade eram chamados ‘massilienses’. Alguns autores modernos empregam o termo de ‘antiaugustinianos’, que aliás não parece ter muito futuro. Eram monges, clérigos e leigos piedosos, principalmente na região que fica entre Marselha e Gênova, bem como das ilhas ao sul de Marselha, sobretudo na grande abadia de Lérins.” (PESCH, Otto Hermann. A obra da graça divina como justificação e santificação do homem. In: FEINER, Johannes; LOEHRER, Magnus (Edit.). Mysterium Salutis: compêndio de dogmática histórico-salvífica, p. 58. MIRANDA, Mario de França. A salvação de Jesus Cristo: a doutrina da graça, p. 85-86).

de conceder o auxílio de sua graça”.194 É a divergência em torno do que ficará conhecido

como initium fidei.195

Para os semipelagianos, a diferença na disposição da graça não está em Deus, mas na disponibilidade e na abertura dos seres humanos. Assim, defendem que o início da fé está no ser humano que sinaliza a Deus sua disposição em recebê-lo. Deus, por sua vez, espera pela iniciativa humana para então dispor de seus dons. Em torno dessa afirmação, os adeptos do semipelagianismo perguntavam: se Deus é quem faz tudo em nós, qual o valor de suas repreensões e correções? Se até mesmo a boa vontade humana é graça, como fica a liberdade? Cancelada?

Além disso, não admitiam a doutrina da predestinação do agostinismo estrito, por considerarem fonte de quietismo e desalento. Sobre isso, entendiam que bastava a presciência divina para afirmar o primado de Deus na salvação. Defendiam que Deus ama a todos e que não faz distinção ao conceder suas graças, por isso a perseverança final é mérito do ser humano e não dom de Deus. Por fim, entendiam que o initium fidei é também a fé e que os atos preparatórios da justificação estão ao alcance da natureza humana.196

Perante esses questionamentos, a resposta conclusiva do Sínodo de Orange pode ser descrita com os seguintes pontos: a graça é necessária devido ao pecado original que enfraquece a vontade; a graça possui uma função que antecede a justificação e a todo esforço humano. Da graça vem a oração, a boa vontade e o desejo. Dela decorre todo esforço, toda boa obra e todo mérito. Sua função é de conversão a Cristo, que justifica o pecador. Depois da justificação, a graça é necessária para a boa obra, para a perseverança, para a virtude e para a vida nova em Cristo, ela é necessária para evitar o mal e para fazer o bem (cf. Dezinger-Hünermann 371-395). O que os semipelagianos não perceberam é

194 FRANZEN, Piet. O ocidente cristão. In: FEINER, Johannes; LOEHRER, Magnus (Edit.). Mysterium

Salutis: compêndio de dogmática histórico-salvífica, p. 60.

195 Segundo Baumngartner, “En los semipelagianos el initium fidei es también la fe misma, tal como existe

en estado inicial en el convertido [...] El error, por ende, de los semipelagianos no versó sólo sobre la preparación a la fe, sino sobre la fe misma. Para ellos, el conjunto complejo de los actos preparatorios de la justificación está al alcance de la naturaleza. Admitían que la caridad que justifica es imposible sin una gracia interior”. (BAUMGARTNER, Ch. La gracia de Cristo, p. 110. Cf. BINGEMER, Maria Clara Luchetti; FELLER, Vitor Galdino. Deus-amor: a graça que habita em nós, p. 102-104; LADARIA, Luis F. Teología del pecado original y de la gracia, p. 163-166).

196 Cf. FORTMAN, Edmund. Teologia del hombre y de la gracia, p. 203. BAUMGARTNER, CH. La

gracia de Cristo, p. 106.109-110. BINGEMER, Maria Clara Luchetti; FELLER, Vitor Galdino. Deus- Amor: a graça que habita em nós, p. 98. FRANZEN, Piet. O ocidente cristão. In: FEINER, Johannes; LOEHRER, Magnus (Edit.). Mysterium Salutis: compêndio de dogmática histórico-salvífica, p.58-60.

que se o primeiro passo fosse do ser humano, “o mérito da salvação compete em última análise ao homem e não a Deus”.197

É relevante mencionar, ainda, que toda essa discussão, embora tenha encontrado uma resposta do Magistério em Orange, não será totalmente superada. Ao longo da história, ela retornará implícita em novas discussões teológicas sobre a relação entre o ser humano e a graça. Na escolástica, o desconhecimento das conclusões de Orange vai dar espaço para a discussão teológica em torno da disposição humana à graça. Segundo Miranda, “dominava nesse tempo a expressão ‘àquele que faz o que pode, Deus não nega a sua graça’”.198 Essa dificuldade aponta para uma deficiência da teologia de então: a

ausência de uma compreensão do que hoje se conhece como graça atual. 199

Com os nominalistas, ela se fará presente na distinção entre a potência absoluta e relativa, relativizando o “valor da graça santificante e consequentemente da preparação para recebê-la”.200 Com sua lógica, abriram espaço para uma reflexão que ainda hoje deixa resquícios: a importância dos atos bons para agradar a Deus e merecer seus favores. Discussões que chegarão à controvérsia De auxilis e às questões sobre a graça eficaz e suficiente, e que levarão novamente ao predestinacionismo agostiniano assumido pelas teologias dos reformadores. Em síntese, o Concílio de Orange está diante de uma problemática que perpassará séculos e que no Vaticano II encontrará também um lugar.

b) Aspectos relevantes da conclusão de Orange

Perante o exposto, pode-se concluir que o Concílio de Orange, ocupando-se da controvérsia semipelagiana, torna-se fundamental para a compreensão da intenção dos Padres conciliares, por considerar as questões referentes ao início da fé, a boa vontade para as obras e a gratuidade da graça divina, que precede qualquer mérito humano. Ao trazer presente a questão do initium fidei e considerá-lo como graça, este torna-se para a DV 5 uma referência irrenunciável para sua definição de fé, que parte do princípio de que

197 FRANZEN, Piet. O ocidente cristão. In: FEINER, Johannes; LOEHRER, Magnus (Edit.). Mysterium

Salutis: compêndio de dogmática histórico-salvífica, p. 61.

198 MIRANDA, Mario de França. A salvação de Jesus Cristo: a doutrina da graça, p. 86.

199 Ao longo da história, a graça atual foi sendo concebida com diferentes nomes para indicar sua

singularidade em cada momento da vida humana. Não são graças diferentes, mas operações diferentes da graça habitual, ou seja, de Deus na vida humana. Pode ser adjetivada assim: preveniente, concomitante, consequente, excitante, auxiliante, sanante, elevante, suficiente, eficaz, perseverante. (Cf. BOFF, Leonardo. Graça e experiência humana, p. 218-220).

ela é uma resposta à Revelação de Deus. Uma resposta possível pela graça que habita o ser humano.

Para a DV 5, a afirmação de Orange lhe permitirá introduzir o entendimento de que a graça antecede o ser humano. E isso não como desqualificante da liberdade humana, mas como elevação da criatura humana, estruturalmente perpassada pela graça. É a releitura de Orange que dará sustentação para a superação da perspectiva dicotômica de natural-sobrenatural, gerando o entendimento de que o natural está no sobrenatural (sem ser equivalente), ou como qualifica Juan Alfaro, supercreatural.201

Na conclusão redigida pelo bispo de Arles ao final do Concílio de Orange, duas afirmações precisam ser sublinhadas aqui. A primeira diz: “sabemos e, ao mesmo tempo, cremos que esta graça, também depois da vinda do Senhor não está no livre-arbítrio de quantos desejam ser batizados, mas é conferida pela generosidade de Cristo” (Dezinger- Hünermann 396). E mais adiante continua: “não só não acreditamos que pelo divino poder alguns tenham sido predestinados ao mal, mas, se há alguns que querem crêr em tamanho mal, com toda a reprovação lhes dizemos: anátema!” (Dezinger-Hünermann 397). Assim, na confirmação do Sínodo, encontra-se, uma vez mais, a afirmação do início da fé como dom de Deus.

Por meio dessas afirmações, são destacados elementos que vão ao encontro da compreensão acerca do que significa a obediência da fé, o que é fundamental para a entendimento do ato de fé, segundo a DV 5. Seus cânones em torno do início da fé explicitam a compreensão de quanto o ser humano e Deus estão envolvidos um com o outro. Não se trata apenas de uma dependência, mas de uma relação com profunda condescendência de Deus. Uma aliança que se estabelece nas estruturas fundamentais da vida humana.202 E acompanha isso o entendimento de que o ser humano, embora

201 Explicitando o significado de sua proposição (supercreatural), sem, todavía, descartar a nomenclatura

clássica da teologia (sobrenatural), Juan Alfaro argumenta: “Lo que se ha dicho acerca del término de ‘naturaleza’, vale igualmente para el de ‘natural’, en cuya comparación la palabra ‘creatural’ expresa mejor la distinción y dependencia constitutivas del hombre respecto de Dios. Por esta misma razón el término ‘supercreatural’ es más apto que el de ‘sobrenatural’ para significar la divinización del hombre por la gracia. El hecho de que el prefijo ‘sobre’ (‘super-naturale’) sugiera inevitablemente la imagen espacial de algo que está ‘encima de’ no justifica sin más la exclusión del término ‘sobrenatural’, como si tuviera que significar necesariamente la yuxtaposición dualista de la gracia en la ‘naturaleza’ del hombre. Ni el pensamiento, ni el lenguaje humano de lo trascendente (de lo divino), pueden eliminar el fondo de representaciones espaciales, que los sostiene; pretenderlo sería una empresa absurda”. (ALFARO, Juan. Cristología y antropología, p. 253- 254).

202 Essa relação é ilustrada no cânon 9 com a seguinte expressão: “Deus opera em nós e conosco, para que

enfraquecido pelo pecado, é bom. O entendimento acerca da bondade do ser humano mostra que sua vida se realiza em Deus, que o liberta para ser aquilo que é.

Um outro aspecto que se destaca é o chamado a uma perspectiva de gratuidade diante da vida, pois tudo provém de Deus em vista da realização humana, como se pode observar no cânon 12: “Deus nos ama assim como seremos mediante o seu dom, não como somos por nossos méritos” (Dezinger-Hünermann 12). Gratidão e gratuidade são elementos que transparecem na relação com Deus segundo Orange. Embora o Concílio de Orange tenha oferecido profícuas conclusões, a discussão entre o papel da graça no início da fé não ficará encerrada em suas conclusões. Será um debate retomado séculos depois entre a Igreja de Roma e os protestantes, adquirindo sua forma no sola fides e sola gratia.

Como se pode observar nas análises feitas sobre a fé segundo o Concílio de Trento e Vaticano I, essa questão sobre o initium fidei como fruto da graça precisou ser retomada diversas vezes.203 Uma reflexão que continuará presente na história da Teologia perante a leitura da graça como depreciante ao esforço humano. Citado diretamente pelo Vaticano I e II e considerado pelo Concílio de Trento204, ele se tornará um documento relevante para a Teologia quanto à compreensão do ato de fé. Perante esses elementos, pode-se dar um passo e adentrar com mais afinco no objeto desse estudo, a DV 5.

1.3 DV 5: UM NÚMERO DEDICADO AO ATO DE FÉ COMO OPÇÃO