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Uma síntese para a modernidade próxima: do conhecimento à crítica

U NIDADE E F RAGMENTAÇÃO NO PENSAMENTO

32 BACON, 1984; DESCARTES, 1983, 2008.

1.3. Uma síntese para a modernidade próxima: do conhecimento à crítica

É preciso afirmar a necessidade de se buscar a Vernunft na atualidade. Faz-se necessária a instituição permanente de uma busca de síntese histórica para a compreensão dos processos em que estamos envolvidos e que definem a vida do mundo, num momento de difícil apreensão dos conteúdos que nele circulam. Vive-se em um tempo em que as transversalidades históricas, passado e presente, se confundem gerando a necessidade de novas abordagens para encontrar os sentidos das coisas. Na atualidade,

Não há momentos primitivos que, em uma sucessão cronológica linear, sejam substituídos por momentos modernos subseqüentes. O que se compreende como primitivo pode, inclusive, conviver com o que se denomina moderno. E, além disso, nem sempre o primitivo é o tempo histórico antecedente ao moderno. Completa-se: nem sempre, também, o moderno é presente. (HISSA, 2002, p. 49).

No tempo presente, momento em que se acumulam diversos conhecimentos e saberes sobre o mundo, gera-se uma sensação contraditória em que, ao mesmo tempo, se tem tudo e não se tem nada; mais, ainda: se é tudo e, simultaneamente, nada. O trabalho de indagar, investigar, interpretar, descobrir os arranjos que vão se estabelecendo dinamicamente, nunca foi tão difícil dada a fluidez com que se dão estes arranjos. Uma possibilidade de potência aparece eclipsada por uma incapacidade de pensar o mundo e de visualizar saídas para seus enigmas, seus grandes problemas,

dramas e conflitos. Em tempos de modernidade líquida40, quando se percebe uma mutação

nos modos de organização e de pensamento das sociedades, conformando uma transformação social sem precedentes na história, é preciso estar atento aos elementos que redefinem o mundo e desenham estas mudanças, uma vez que nos atingem de forma poderosa e sob elas muitas vezes nos sentimos impotentes e pequenos para lidar. Através dos tempos, constituiu-se uma espécie de diáspora do pensamento, permitindo, dentre outras coisas, que as pessoas, tanto o homem comum quanto os pesquisadores, enveredassem por caminhos que os têm levado para uma visão parcial das coisas, para aspectos pontuais e isolados da vida, através do conhecimento sobre uma ou outra matéria, especializando-se. A organização econômica da vida social, a divisão do trabalho por ela exigida, reforçou esta especialização e promoveu o que se denominou a alienação pelo trabalho. Faz-se necessário rever o conceito trazido por Marx uma vez que, na atualidade, esse processo de alienação transbordou os limites da vida do trabalho, afetando a vida pública e privada, o estado e as instituições sociais, incorporando-se em todos os campos da vida humana e das relações sociais como um todo, ligado às novas configurações do mundo.

Para fazer frente a este transbordamento do conceito de alienação, tem-se que levar em conta que a vida humana é composta por conjuntos de complexidades que se relacionam e que não podem ser reduzidas apenas a aspectos econômicos, ou a qualquer outro elemento parcial destas mesmas complexidades. Tal alienação, estreitamente ligada à dificuldade para uma compreensão mais totalizante do mundo,

40 Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, nos fala da modernidade líquida que, em substituição à

modernidade sólida, possui a propriedade de não fixação no espaço e de não se prender ao tempo, provocando grandes mudanças em todos os aspectos da vida humana.

é acompanhada pelo descolamento da sociedade em relação às instituições, levando a um processo de questionamento e mesmo de dissolução destas instituições, de desprendimento das redes de pertencimento social, resultando em sociedades de aparência amorfa e homogênea. Tem-se no presente, em ritmo rápido de ascensão, uma produção da indiferença moral, ou seja, a deslegitimação dos preceitos morais, segundo Zigmunt Bauman (1998, p. 197). Esta é uma constatação que deve ser mais bem estudada entendendo-se que: “Na ordem de coisas construída pelo discurso sociológico, o status da moralidade é estranho e ambíguo. [...] assim, as questões do comportamento moral e da opção moral foram situadas aí em uma posição marginal, e recebem uma atenção apenas marginal”. (BAUMAN, 2010, p. 10).

Este e outros eventos em curso na modernidade precisam ser pesquisados e interpretados com a profundidade necessária. Deve-se buscar o seu entendimento e incorporá-los ao universo das pesquisas, nas universidades ou fora delas, para que sejam construídos espaços de resistência — ou pelo menos espaços de compreensão destes processos — para fazer face ao desmantelamento do que é humano e daquilo que o faz florescer, conforme entendido por Hannah Arendt. Na busca de explicações para tais questões, essa filósofa, no ano de 1966, em um colóquio denominado “A condição crítica da sociedade moderna”, nos fala que, se por um lado não se poderiam definir “padrões gerais” de explicação e muito menos “regras gerais” para aplicar aos erros que estavam sendo cometidos41, por outro era preciso não perder a capacidade de

pensar. Segundo ela, os principais elementos humanos através dos quais devemos olhar o mundo são a responsabilidade e o julgamento (ARENDT, 2004, p. 45). Deve-se buscar compreender — para lutar contra — o significado da presente incapacidade de pensar nas sociedades modernas. A responsabilidade e o julgamento, segundo Arendt, é que nos permitem a consciência, sendo o julgamento uma espécie de atividade de equilíbrio, de busca do que é certo e do que é errado. A capacidade de pensar é a pré-condição do julgar (ARENDT, 2004, p. 47). A consciência deve ser insistentemente buscada, pois é ela que nos dá alguma certeza para nos deslocarmos em um ambiente escorregadio e

41 Naquele ano, de 1966, havia uma crise política específica, a guerra do Vietnã, e por isso os

cidadãos haviam se reunido para expressar sua preocupação com a política americana no Sudeste da Ásia.

fluido. Ter consciência é situar-se no mundo, buscar compreender as relações que importam. Na contemporaneidade, são tantas (qualitativa e quantitativamente) as relações que existem que, atordoados, não sabemos distinguir aquelas que constroem significados de algo novo ou do que nos eleva, daquelas que nos traem, aprisionando- nos sob o manto de seus objetivos mesquinhos, travestidos de virtude.

A dimensão tempo-espaço tende a nos conduzir a uma idéia de totalidade, que resulta da forma própria em que se dão as organizações sociais, lidando com a sua complexidade, com as relações entre as coisas, os seres e os homens. No entanto, o estudo desta dupla dimensão, tempo-espaço, nos remete à natureza problemática de outras duplas-dimensões como as que relacionam teoria e prática, filosofia e política ou o pensamento e a ação (ARENDT 2004, p. 89). Esta dificuldade pode ser explicada, entre outras coisas, pela aproximação entre entidades de natureza diversa, ou seja, por mais imbricadas que estejam/sejam nos remetem (distanciamento) a universos imensos e autônomos. Por outro lado, estas entidades duplas têm mais condições, na medida do possível, de abarcar o mundo, de explicá-lo. Não se trata de buscar uma totalidade única; trata-se, isso sim, de abordar, naquilo que se estuda, a sua totalidade intrínseca. As correlações que definem e conformam esse objeto de estudo e que o contextualizam. Fernand Braudel construiu um Mediterrâneo que emergiu de um obscurantismo teórico, confuso e fragmentado, passando a outro patamar explicativo em que clareza e simplicidade — associados a uma pesquisa criteriosa — puseram em evidência vastos elementos que explicavam a sua identidade (do mediterrâneo), compondo um material teórico que passou, depois dele, a ser considerado óbvio.

Assim sendo, em um mundo favorável à fragmentação, tem-se o dever de buscar o que, no dizer de Braudel, é a “história à contra-pelo” (BRAUDEL, 2007), que visa reunir em suas explicações os elementos que alinhavam os fatos, lhes dão vida e auxiliam o nosso discernimento. É preciso conhecer também em que medida as experiências humanas estudadas buscaram renovar o mundo, engrandecê-lo. É nesse sentido que devemos entender a importância da pesquisa que ora se propõe, realçando nos trabalhos de Fernand Braudel e dos outros pesquisadores aqui destacados, os diversos modos de esclarecimento da vida do mundo. Estes exemplos nos ajudam a

estabelecer uma forma de Vernunft e nos servem de guia para enveredar no estudo de objetos de pesquisa pertinentes ao campo das ciências humanas.

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APÍTULO 2