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CAPÍTULO 1. O DESENVOLVIMENTO E DESAFIOS METODOLÓGICOS DA

1.4. UMA SEGURANÇA PÚBLICA HUMANA?

A adoção da ideia de segurança humana, e seus conceitos, não representa unicamente uma percepção distinta sobre um paradigma distante e potencialmente abstrato. Pensar segurança humana como objeto de políticas públicas exige do conceito um profundo delineamento e maior rigidez em sua definição, o que inclinaria o policymaker ao caráter mais estreito do conceito.

Entretanto, antes de tomar posições sobre a amplitude do mesmo, cabe um valioso questionamento sobre a possibilidade de utilização e operacionalização da segurança humana como política pública de segurança, em termos gerais, se é plausível e possível a geração de uma segurança pública humana.

Para tanto, tomemos como ponto de referência a segurança pública, no Brasil. Para a Constituição da República Federativa do Brasil (1988), a segurança pública está definida como a preservação da ordem pública e da segurança das pessoas e do patrimônio, conforme o art. 144. Podendo ser a ordem pública compreendida como a “situação de tranquilidade e normalidade, cuja preservação cabe ao Estado, às Instituições e aos membros da sociedade, consoante as normas jurídicas legalmente estabelecidas” (ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA, 2011, V. I). Tal definição nos oferece algumas implicações operacionais elementares.

A primeira delas é a o fato da segurança estar ligada à ideia de segurança do Estado e, apenas em seguida, ser ressaltada a segurança do indivíduo. Para Dantas (2015), tal elemento é característica do Estado democrático liberal, pois, nesse espaço, o indivíduo possui papel secundário. Diametralmente oposta está a proposta da Segurança Humana, inserindo o indivíduo como elemento primordial da geração de segurança. É válido ressaltar o peso dado à segurança do indivíduo como base para a segurança do Estado, o que significa que a última não deve ser ignorada, ou negligenciada, mas ter a ordem de sua obtenção alterada.

Outro ponto a ser considerado é desenho institucional voltado para a garantia da ordem, da segurança individual e da patrimonial. Enquanto põe o indivíduo como centro da geração de segurança e seu referencial, a Segurança Humana também considera o poder de agência do cidadão, o que deve funcionar como base para inseri-lo como um dos agentes essenciais para a promoção do seu próprio bem estar e segurança. “As pessoas que vivem em áreas de insegurança devem resolver seus próprios problemas. Outsiders podem ajudar, mas apenas se eles entendem o que é necessário; caso contrário correm o risco de tornar as coisas piores.” (KALDOR, BEEBE, 2010, p.8). O distanciamento da população, de fato, não apenas dificulta como impossibilita a geração de uma segurança, nos termos aqui trabalhados. “Não há segurança sem que as pessoas compreendam os perigos e riscos que correm e façam, elas mesmas, o que podem para controlá-los ou evitá-los” (ZALUAR, 2002, p. 24). No Brasil, os atores competentes para tanto, são, a ver: a polícia federal, a polícia rodoviária federal, a polícia ferroviária federal, as polícias civis, as polícias militares e o corpo de bombeiros militares – em especial, as duas forças que mais se aproximam da ação ostensiva, as polícias civis e militares.

Essa divisão não apenas afasta o indivíduo da geração da sua própria segurança, como gera uma série de imperfeições e incoerências na promoção da mesma. Enquanto a Polícia Civil abrange as funções de polícia judiciária e apuração das infrações penais – excetuando-se as infrações militares – a Polícia Militar tem papel de polícia ostensiva, visando à preservação da ordem pública. A profunda dificuldade de interação entre ambas as polícias, a separação entre policiamento e investigação. A polícia militar tem caráter repressivo e a polícia civil, em tese, age apenas após o relato de uma notícia crime e de maneira investigativa (BEATO, 2012).

A profunda burocratização e fragmentação da atividade provoca um afastamento da polícia do seio social e acarreta na ausência de práticas preventivas do crime ou da violência, além das dificuldades geradas por negligenciar a necessidade de tratamentos diferenciados para lidar com as distinções nacionais, mais bem compreendidas pelos membros de cada localidade.

Não se busca com essa discussão desconsiderar o papel do Estado e de suas instituições, mas sim ensejar a participação da sociedade civil na luta contra a criminalidade e a violência. Ressalta-se também a relevância de se instigar um olhar vertido para quem a segurança pública deve verdadeiramente se voltar, ou seja, o povo (DANTAS, 2015, p.75).

Mas, afinal, é possível coadunar as duas versões de segurança, e atingir uma segurança pública mais focada no indivíduo? Tal questão se mescla com um debate profundo que diz respeito à Reforma do Setor de Segurança (RSS), profundamente conectado com a Segurança Humana ao pensar a humanização do ambiente de segurança e da própria segurança pública. A reforma policial costuma estar pautada em alguns aspectos, como reversão da fragmentação verificada na esfera da União; alteração do marco legal inadequado e restritivo; estímulo à adoção de programas modulares de reforma, voltados para um modelo de polícia ligado a uma gestão racional, relacionado à redução da insegurança pública e ao respeito aos direitos humanos; apoio a iniciativas promissoras e divulgação de boas práticas; investimento na sensibilização de gestores, legisladores, opinião pública entre outros pontos (SOARES, 2006, p. 100). Entretanto, o que nos parece essencial, é compreender o potencial da Segurança Humana como política pública. Para tanto, cabe uma reflexão sobre o que pode ser adaptado, da atual agenda de segurança pública, rumo a tal aplicação.

Tabela 3. Segurança Pública Humana Dimensão Segurança pública

tradicional

Segurança pública humana Espacialidade Soberania territorial Não espacialmente orientada

Questão Diplomático/militar Sociopolítico/socioeconômico/ambiental Padrões de

Controle

Institucionalizado Não institucionalizado

Tomadas de Decisão

Formal (político) Informal (intuitivo)

Respostas Diplomática/Militar Científica/tecnológica/governança multilateral

Fonte: DANTAS, 2015, p.80

Determinadas adaptações se apresentam como demandas imediatas, caso haja o interesse de transformar a segurança pública em uma agenda mais humanizada. Os desafios para tal se mostram profundos e entrelaçados com uma tradição institucional de lenta transformação, no Brasil (ZAVERUCHA, 2005.). Entretanto, nosso interesse é apontar para as possibilidades reais de se tomar a Segurança Humana como uma política pública plausível e operacionalizável, uma das críticas mais comuns ao conceito.