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2.2 – Uma versão oral anterior

Quando o Segredo foi fixado por escrito, passavam 24 a 27 anos desde que aparecera a notícia de que as crianças guardavam um segredo confiado por Nossa Senhora. Não tendo o mesmo sido escrito nesses anos, pode-se interrogar se houve, nesse espaço de tempo, uma história oral do segredo.

O que interessa perceber é o que a própria Lúcia viu e ouviu em 1917, já que é dela que viríamos a receber o segredo. Contudo, uma vez que os três pareciam falar de uma mesma coisa, é legítimo procurar também indícios de variação nas expressões de Jacinta, que viu e ouviu, e de Francisco, que viu. Os videntes foram frequentemente interrogados acerca da existência do segredo e muitíssimo pressionados a revelar o seu conteúdo, como consta nos interrogatórios do pároco de Fátima, o padre Manuel Marques Ferreira, nos do Cónego Manuel Nunes Formigão e nas Memórias da Irmã Lúcia.

Relativamente à afirmação oral da existência de um segredo logo aquando das aparições, muitos documentos o provam com clarividência. As crianças nunca o desdisseram, antes, inúmeras vezes afirmaram que o segredo lhes foi confiado, como o provam os interrogatórios feitos aos três:

A Lúcia:

«- É certo que te disse um segredo, prohibindo que o revelasses a quem quer que fôsse?

- É certo.

- Diz respeito só a ti ou tambem aos teus companheiros? - A todos tres.

- Não o podes manifestar ao menos ao teu confessor?

- (A esta pergunta guardou silencio, parecendo um tanto enleada e julguei não dever insistir, repetindo a pergunta)

- Consta que, para te veres livre das importunações do sr. administrador, no dia em que foste presa, lhe contaste, como se fosse o segredo uma cousa que o não era, enganando-o assim e gabando-te depois de lhe teres feito essa partida: é verdade?

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- Não é; o sr. administrador quiz realmente que eu lhe revelasse o segredo, mas como eu não o podia dizer a ninguem, não lh’o disse, apesar de ter insistido muito comigo para esse fim. O que fiz foi contar tudo o que a Senhora me disse, excepto o segredo, e talvez por esse motivo o sr. administrador ficasse julgando que eu lhe tinha revelado tambem o segredo. Não o quiz enganar»95.

A Jacinta:

«Ouviu o segredo a Nossa Senhora. Da 2ª vez, no dia de Stº António. É para serem felizes e bons.

É para bem de todos tres. Não é para serem ricos. Não é para irem para o Ceu. Não pode dizer o segredo.

Nossa Senhora disse que não dissessem nada do segredo.

Tinha as mãos erguidas. Ás vezes tem as palmas voltadas para o céu. Se o povo soubesse o segredo, ficava triste»96.

E a Francisco:

«- Ouviste o que a Senhora disse? - Não ouvi nada do que a Senhora disse. - Quem te disse o segredo? foi a Senhora? - Não foi; foi a Lúcia.

- Podes dizê-lo? - Não o digo.

- Não o dizes porque tens medo da Lucia; receias que ella te bata, não é verdade?

- Não.

- Então porque o não dizes? Porque é peccado? - Se calhar, é peccado dizer o segredo.

- O segredo é para bem da tua alma, da alma da Lúcia e da da Jacinta? - É.

- É para bem da alma do Sr. Prior? - Não sei.

- O Povo ficava triste se o soubesse? - Ficava»97.

Analisando os documentos no geral, conclui-se que os mesmos dão conta de algumas divergências orais entre os três protagonistas e mesmo em Lúcia, a vidente principal. Olhando para a história dos três, sabe-se que ainda viveram juntos até à morte de Francisco, em Abril de 1919, e que Lúcia ainda conversou muito com Jacinta até ao falecimento desta, em Fevereiro de 1920. As questões que podem pôr-se a este

95

Do primeiro interrogatório do Dr. Manuel Nunes Formigão a Lúcia in DOCUMENTAÇÃO CRÍTICA DE FÁTIMA I, 57, 58.

96

Do relatório de um diálogo do Dr. Formigão com Jacinta in DOCUMENTAÇÃO CRÍTICA DE FÁTIMA I, 92.

97

De um interrogatório do Dr. Manuel Nunes Formigão a Francisco in DOCUMENTAÇÃO CRÍTICA DE FÁTIMA I, 136.

34 propósito são: se terá havido uma versão oral entre os três com ou sem alguma evolução, ou seja, se alguma vez terão rememorado as imagens vistas e repetido as palavras ouvidas, e se tinham mais algum segredo para além do que acabou por chamar- se o Segredo de Fátima, de modo que esse termo possa ter sido usado por eles em sentido plural ou mesmo inequívoco98.

As Memórias dão-nos conta que entre as crianças houve conversas acerca do segredo, e sobretudo acerca dos seus elementos visuais. Demonstra-o o seguinte diálogo entre as duas primas, onde fica patente a forte impressão que a visão do inferno causou em Jacinta:

«- Por que é que Nossa Senhora não mostra o inferno aos pecadores? Se eles o vissem, já não pecavam, para não irem para lá! Hás-de dizer àquela Senhora que mostre o inferno a toda aquela gente (referia-se aos que se encontravam na Cova da Iria, no momento da aparição). Verás como se convertem.

Depois, meio descontente, perguntava-me:

- Porque não disseste a Nossa Senhora que mostrasse o inferno àquela gente? - Esqueci-me – respondia.

- Também me não lembrei! – dizia com ar triste»99.

Uma mesma atitude da mais nova dos videntes se exprime nestas conversas acerca da visão dos sofrimentos atribuídos ao Papa:

«- Não viste o Santo Padre? - Não!

- Não sei como foi! Eu vi o Santo Padre em uma casa muito grande, de joelhos, diante de uma mesa, com as mãos na cara, a chorar. Fora da casa estava muita gente e uns atiravam-lhe pedras, outros rogavam-lhe pragas e diziam-lhe muitas palavras feias. Coitadinho do Santo Padre! Temos que pedir muito por Ele.

(…)

- Não vês tanta estrada, tantos caminhos e campos cheios de gente, a chorar com fome, e não tem nada para comer? E o Santo Padre em uma Igreja, diante do Imaculado Coração de Maria, a rezar? E tanta gente a rezar com Ele?

Passados alguns dias perguntou-me:

- Posso dizer que vi o Santo Padre e toda aquela gente?

- Não. Não vês que isso faz parte do segredo? que por aí logo se descobriria? - Está bem, então não digo nada»100.

98

Cf. L.GUERRA, Segredo de Fátima, autenticidade 33.

99

Memórias I 123.

100

35 Lúcia conta que também Francisco terá tido uma visão aterradora, que ele exprimiu assim:

«- Era um daqueles bichos grandes, que estavam no inferno, que estava aqui a deitar lume»101.

Tendo sido pressionados, compreende-se que possam ter conversado sobre o segredo e mesmo combinado entre si como o haviam de o ocultar102. A única testemunha dessas conversas, Lúcia, não refere pois qualquer versão oral do conteúdo propriamente dito, mas fornece elementos acerca de outros aspectos conexos.