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UMA ZONA INTERMEDIÁRIA

No documento WINNICOTT, D.W. - O Brincar e a Realidade (1) (páginas 166-170)

Nos trabalhos psicanalíticos e na vasta literatura especializada, influenciada por Freud, pode-se perceber a tendência a demorar-se quer na vida de uma pessoa, enquanto em relação de objeto, quer na vida interna do indivíduo. Na vida de uma pessoa, enquanto em relação de objeto, presume-se como já estando postulado um estado de tensão que se dirige no sentido da satisfação do instinto, ou, então, num comprazer- se na gratificação do lazer. Uma exposição completa incluiria o conceito

de deslocamento e todos os mecanismos de sublimação. Onde a excitação não conduziu à satisfação, a pessoa vê-se vítima dos desconfortos gerados pela frustração, os quais incluem a disfunção corporal e o sentimento de culpa, ou o alívio proveniente da descoberta de um bode expiatório ou de um perseguidor.

Quanto às experiências místicas, na literatura psicanalítica, a pessoa que estamos examinando, encontra-se adormecida e sonha, ou, se desperta, está passando por um processo próximo à elaboração onírica, embora ela faça isso enquanto acordada. Todos os humores aí se encontram e a fantasia inconsciente do humor varia da idealização, por um lado, ao horror da destruição de tudo o que é bom, por outro, ocasionando os extremos da exultação ou do desespero, o bem-estar corporal ou a sensação de estar doente e um impulso para o suicídio.

Isso constitui revisão sucinta, muito simplificada, e na verdade deformada, de uma extensa literatura; mas não estou tentando fazer uma exposição abrangente: antes, quero apontar que a literatura psicanalítica, naquilo que expressa, não nos parece abranger tudo o que desejamos conhecer. Por exemplo, o que estamos fazendo enquanto ouvimos uma sinfonia de Beethoven, ao visitar uma galeria de pintura, lendo Troilo e

Cressida na eama, ou jogando tênis? Que está fazendo uma criança,

quando fica sentada no chão e brinca sob a guarda de sua mãe? Que está fazendo um grupo de adolescentes, quando participa de uma reunião de música popular?

Não é apenas: o que estamos fazendo? É necessário também formular a pergunta: onde estamos (se é que estamos em algum lugar)? Já utilizamos os conceitos de interno e externo e desejamos um terceiro conceito. Onde estamos, quando fazemos o que, na verdade, fazemos grande parte de nosso tempo, a saber, divertindo-nos? O conceito de sublimação abrange realmente todo o padrão? Podemos auferir algum

proveito do exame desse tempo que se refere à possível existência de um lugar para viver, e que não pode ser apropriadamente descrito quer pelo termo 'interno', quer pelo termo 'externo'?

Lionel Trilling, em sua Conferência Comemorativa do Aniversário de Freud (1955), diz:

'Para Freud, há um tom honorífico no emprego da palavra [cultura]; ao mesmo tempo, porém, como não podemos deixar de perceber, bá no que diz sobre a cultura uma nota infalível de exasperação e resistência. A relação de Freud com a cultura deve ser descrita como ambivalente.'

Penso que, nessa conferência, Trilling se mostra interessado na mesma inadequação a que me refiro aqui, embora empregue uma linguagem bem diferente.

Observe-se que estou examinando a fruição altamente apurada do viver, da beleza, ou da capacidade inventiva abstrata humana, quando me refiro ao indivíduo adulto, e, ao mesmo tempo, o gesto criador do bebê que estende a mão para a boca da mãe, tateia-lhe os dentes e, simultaneamente, fita-lhe os olhos, vendo-a criativamente. Para mim, o brincar conduz naturalmente à experiência cultural e, na verdade, constitui seu fundamento.

Se meus argumentos possuem força convincente, temos três, ao invés de dois estados humanos, para serem comparados mutuamente. Quando examinamos esses três conjuntos do estado humano, podemos perceber a existência de uma característica especial a distinguir aquilo que chamo de experiência cultural (ou brincar) dos outros dois estados.

Examinando em primeiro lugar a realidade externa e o contacto do indivíduo com esta, em função da relação de objeto e do uso do objeto,

temos que a realidade externa, em si mesma, é fixa; além disso, os dotes instintuais que dão apoio à relação de objeto e ao uso de objetos são, em si mesmos, fixos para o indivíduo, embora variem segundo a fase, ou idade, e segundo a liberdade do indivíduo de fazer uso dos impulsos instintuais. Aqui, estamos mais ou menos livres, de acordo com as leis formuladas com consideráveis minúcias pela literatura psicanalítica.

Examinemos a seguir a realidade psíquica interna, a propriedade pessoal de cada indivíduo, na medida em que foi atingido certo grau de integração madura que inclui o estabelecimento de um eu (seif) inteiro, com a existência implícita de um interior e um exterior, bem como de uma membrana limitadora. Aqui, mais uma vez, deve-se ver uma fixidez que é própria da herança, da organização da personalidade, de fatores ambientais introjetados e de fatores pessoais projetados.

Em contraste com estes, sugiro que a área disponível de manobra, em termos de terceira maneira de viver (onde há experiência cultural ou brincar criativo), é extremamente variável entre indivíduos. Isso se deve ao fato de que essa terceira área é um produto das experiências da

pessoa individual (bebê, criança, adolescente, adulto) no meio ambiente

que predomina. Ocorre aqui uma espécie de variabilidade, diferente em qualidade das variabilidades próprias ao fenômeno da realidade psíquica pessoal interna e à realidade externa ou compartilhada. A extensão desta terceira área pode ser mínima ou máxima, de acordo com a soma das experiências concretas.

É esse tipo especial de variabilidade que presentemente me interessa aqui, e proponho-me examinar seu significado. Faço esse exame em termos da posição, relativa ao indivíduo no mundo, em que se pode dizer que se efetua a experiência cultural (a brincadeira).

No documento WINNICOTT, D.W. - O Brincar e a Realidade (1) (páginas 166-170)