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A UNIDADE FUNDAMENTAL DO DRAMA CLÁSSICO

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O drama tem um papel especial nos cursos sobre estética produzidos por Hegel, assim como também na

Fenomenologia do espírito. Ele junta os aspectos da líri-

ca e da épica em uma unidade sintética, equivalente ao terceiro momento da pirâmide dialética que estrutura a metafísica hegeliana. Enquanto a epopeia é um espaço de objetividade e a lírica se posiciona em um campo de interioridade forte, o drama é o que sintetiza tese e antí- tese em um tertium que contém a expressão do aspecto interior, através da musicalidade e da fala dos persona- gens, e do aspecto exterior, intersubjetivo, através de certa expressão plástica e imagética do gesto e do cená- rio. Aqui se encontra a gênese da ideia de uma fusão en- tre música e imagem, Apolo e Dionísio unidos, também presente na concepção nietzscheana do trágico.

Outro aspecto relevante que torna o dramático pecu- liar é o fato de que a sua questão fundamental, ao con- trário da epopeia, que problematiza a coragem na guerra, cristaliza-se em um páthos ético, o qual torna evidente a força e a fragilidade espiritual dos personagens.

O conflito épico ocorre em um embate de nações ou de dinastias, um confronto no qual o sujeito é tragado pelo corpo de forças exteriores. No território do drama, esse confronto se passa no choque dos aspectos inter- nos e externos, subjetivos e objetivos, no contexto de uma ruptura que envolve dilemas éticos fundamentais.

A guerra não é, no drama hegeliano, uma força ex- terna que destroça e submete os indivíduos, mas sim

uma consequência exteriorizada de aspectos que se apresentam a partir de dilemas éticos interiores, como no exemplo de Shakespeare:

De espécie autenticamente épica são, a saber, apenas as guerras de nações es-

trangeiras umas com as outras; lutas

entre dinastias, ao contrário, guerras intestinas, a inquietação civil, são mais adequadas para a exposição dramática. [...] Um grande número de tragédias his- tóricas de Shakespeare podem ser par- ticularmente indicadas como exemplos semelhantes, nas quais todas as vezes a concordância dos indivíduos seria o que é propriamente legítimo, porém mo- tivos interiores da paixão e dos caracte- res, que apenas querem e respeitam a si mesmos, provocam colisões e guerras. (HEGEL, 2004, p. 107).

O Ser, no épico, pertence a uma individualidade imediata e autônoma, que só pode ser submetida por um conjunto exterior de forças. No mundo trágico, o Ser padece de uma pulsão interior de autodecomposi- ção que pode causar a degradação do tecido político e social de um povo.

Outro aspecto distintivo do gênero dramático em função do lírico é o diálogo. Hegel caracteriza como tra- ço essencial desse gênero a vitalidade do embate entre

respostas e contrarrespostas, que leva os personagens a buscarem se impor uns sobre os outros.

Essa estrutura dialógica foi projetada já no Faus-

to de Christopher Marlowe (2006) e no drama shakes-

peariano, criando um modelo de percepção autocons- ciente, que não aparece de modo firme no universo da tragédia grega. A partir das semelhanças, o drama é lido por Hegel como partilhando uma mesma unidade com base em um ponto central, que divide uma única ação particular em núcleos separados. O que ainda é distinto é justamente o fato de que a ação particular na epopeia está subordinada a um conjunto de aconteci- mentos que a corporificam em meio a uma totalidade expressa no interior de uma coletividade nacional.

Mas o contexto no qual o drama shakespeariano aparece não é o foco central da tragédia clássica, isso porque o teatro de Shakespeare lança seu olhar sobre os desdobramentos autoconscientes dos personagens, como se o movimento dialético do espírito, antes exter- nalizado nos conflitos trágicos de Sófocles, fosse intro- jetado e se misturasse ao discurso dos personagens. Hegel aponta como elemento central no modo dramá- tico de exteriorização a irrupção de monólogos e diálo- gos em meio ao canto coral, um recurso básico presen- te em Sófocles, que desaparece com Shakespeare na medida em que o próprio coro se dissolve e é posto na boca dos personagens, através do movimento interno dos diálogos. Assim, formata-se em Hegel a arquitetura fundamental da tese de Nietzsche em O nascimento da

da eclosão de elementos dialéticos no discurso. Se, em Hegel, esse é o elemento central do drama (justamente essa estrutura dialógica que se interioriza em Shakes- peare), para Nietzsche é justamente isso que mata a tragédia. O que Nietzsche faz, ao apontar para a morte do trágico com a dissolução do coro, e com a proposi- ção do retorno desse elemento com o drama musical de Wagner, é tentar dar uma resposta à arquitetura conceitual formatada por Hegel.

Para Nietzsche, a tragédia antiga não continua- ria em um processo evolutivo em direção ao drama de Shakespeare. Ela se dissolveria com o fim do coro e com sua fusão ao corpo do diálogo dos personagens; um novo drama moderno, dialético, shakespeariano, surge a partir desse outro movimento do discurso dra- mático. Até aqui, Hegel e Nietzsche se encontram em lados opostos de um mesmo campo de batalha. O en- frentamento nietzschiano do hegelianismo é aberto e ousado, mas também, de certo modo, suicida. Ao as- sumir o combate no próprio território de seu inimigo, o espaço do trágico, Nietzsche não efetiva, em um pri- meiro momento, uma ruptura radical, como se poderia pensar à primeira vista.

Em O nascimento da tragédia, Nietzsche não des- constrói Hegel. Seu confronto com o autor da Feno-

menologia do espírito, ao menos naquele texto, não

constitui uma ruptura, mas um ajuste, um desvio que funciona como uma adaptação.

Nesse sentido, a ousadia do jovem Nietzsche tam- bém é um sintoma de sua derrota, um anúncio do seu

colapso, um apontamento para a tragédia em que seu próprio pensamento iria se transformar na medida em que se destroça cada vez mais, ao se embater violenta- mente contra o rochedo Hegel.

A metonímia que Nietzsche produz em O nascimen-

to da tragédia, em função da Estética de Hegel, se tor-

na clara quando entendemos a redução da história he- geliana da cultura em função da eclosão do elemento dialógico no corpo da tragédia. Nietzsche parece querer fazer crer que essa redução é o fundamental na leitura da poética patrocinada por Hegel, e que abandonar a ideia de uma evolução da tragédia através da eclosão dialética do diálogo seria o suficiente para romper com a tradição de interpretação hegeliana.

Contudo, este é apenas um aspecto subsidiário. O ponto central é o entendimento, partilhado por Nietzs- che e Hegel, de que a tragédia é o elemento fundamen- tal de unidade e esplendor do mundo clássico. Na nar- rativa de evolução cultural do Ocidente de Hegel, há lugar para a tese nietzscheana de retorno do trágico no corpo do drama musical wagneriano. Esse parece ser inclusive um desdobramento natural do hegelianismo que reconhece a herança do drama moderno, mas en- tende de modo muito particular o elemento distintivo que se posiciona entre as tragédias clássicas e moder- nas: a interioridade (Innigkeit).

As máscaras da tragédia clássica são lidas por He- gel como uma imagem escultórica imóvel. É justamen- te essa leitura que aproxima os personagens da tragé- dia clássica de ícones, materializações visuais de con-

ceitos, ao passo que a figuras de Shakespeare são “[...] homens inteiros por si mesmos prontos, fechados, de tal modo que pedimos ao ator que ele, por seu lado, os leve igualmente nesta totalidade plena diante de nos- sa intuição” (HEGEL, 2004, p. 230). Os personagens da tragédia clássica e as potências éticas que lhes são correspondentes apresentam-se de modo distinto, mas há uma necessidade fundamental nos fatos dramáti- cos clássicos, expressa em uma colisão trágica que põe esses personagens em uma espécie de “fechamento re- cíproco” em relação a essas mesmas potências.

Outra tentativa de redução que Nietzsche produz em função da leitura de Hegel pode ser vista na tese da origem asiática dos cultos dionisíacos. Hegel enxerga uma peculiaridade ocidental do trágico como elemento definidor do Ocidente. Essa visão o posiciona no es- copo da tradição que vai de Schiller a Nietzsche. Para Hegel, a tragédia não encontraria espaço para frutifi- car no Oriente devido à ausência de autonomia indivi- dual, despertada por um certo princípio de liberdade, que forneceria aos personagens o impulso de respon- der livremente pelos próprios atos e por suas conse- quências. Os líricos orientais não teriam expressado em formas artísticas a individuação desses conteúdos de autoconsciência e autopoiesis. A poesia islâmica, no entender de Hegel, assim como a poesia indiana ou chinesa, não alcançaria o escopo presente no espírito trágico dos gregos.

A tentativa de Nietzsche de arrefecer essa leitura de confronto entre Oriente-Ocidente com base na tese da

chegada do elemento asiático a partir de Dionísio não toca, no entanto, no centro da leitura de Hegel e não tem força suficiente para desmontar a tese fundamen- tal da prevalência do trágico como elemento tipicamen- te ocidental, porque a ideia de uma unidade da tra- gédia a partir de um momento de fusão de elementos dicotômicos se mantém. Não importa que Dionísio ve- nha do Oriente. Ele se funde a Apolo para a construção do trágico na Grécia de Sófocles, e se essa Grécia em Nietzsche é menos europeia do que em Hegel, não faz muita diferença em função das pretensões fundamen- tais do projeto estético alemão, porque ela não deixa de ser europeia de qualquer modo, e não deixa de ser um modelo para a construção de um teatro ou drama nacional alemão.

É importante frisar, no entanto, que não é possível pensar isoladamente a leitura que Hegel faz do dra- ma de Shakespeare e da tragédia de Sófocles, como se essa leitura não estivesse incluída em uma linhagem. Assim, de Winckelmann a Nietzsche, a Alemanha pen- sou o trágico e buscou no trágico não apenas a eclo- são de um momento original, como também um ponto de unidade metafísica. Em seu combate contra Hegel, Nietzsche, ao menos no tempo em que se dedicou a trabalhar em A origem da tragédia, herda muita coisa de seu inimigo, inclusive, por exemplo, a própria tese da eclosão da tragédia a partir da música, presente na explicação dada por Hegel (HEGEL, 2004, p. 183) a respeito da presença de exposições inseridas entre os arrebatamentos líricos, os quais teriam aos poucos

ganhado relevância e dado forma à ação fundamental que constituía o drama, a partir da formação lírica dos coros. O sentido de uma eclosão do drama com base na lírica não parece ser assim uma novidade posterior ao tempo de Hegel, mas um desdobramento natural de um conjunto de teses que se ajustam, formando as bases dessa longa tradição que une a exegese de estu- dos clássicos do Esclarecimento alemão às leituras de Nietzsche.

O que une toda essa tradição pode ser sintetizado na frase de Hegel, posta na abertura do terceiro tópi- co, do terceiro capítulo dos seus cursos de estética: “o drama, porque se desenvolve tanto segundo seu con- teúdo quanto segundo sua forma até a totalidade mais perfeita, deve ser considerado como o supremo estágio da poesia e da arte em geral” (HEGEL, 2004, p. 200). Uma pergunta fundamental que se pode fazer a essa altura da presente análise é: por que Heidegger busca se afastar da ideia contida nessa frase?

No tempo de Hegel, explorar as consequências de um enunciado desse tipo implicava mergulhar no uni- verso de Sófocles, Shakespeare e, fundamentalmente, de Goethe. Assim, o mito de origem poderia aparecer em Nietzsche como um esforço no sentido de abando- nar Goethe e Shakespeare e de retornar a Sófocles a partir de Wagner. A tentativa de Nietzsche parece ser também a de contornar Hegel, mas esse contorno, que implica a tese de que a tragédia clássica renasce não em Shakespeare, tampouco em Goethe, mas em Wag- ner, não é tão radical quanto o que Heidegger pretende

construir. O próprio Nietzsche parece ter percebido a fragilidade de sua estratégia de confronto em sua ten- tativa posterior de autocrítica, e Heidegger segue essa autocrítica percebendo que a tentativa nietzscheana de recontar a história hegeliana da cultura através da manutenção de seu mesmo centro gravitacional (a sa- ber: Sófocles) não possibilitaria um abandono definiti- vo do escopo de influência do hegelianismo.

O que Heidegger parece estar tentando fazer ao empreender a leitura dos Hinos de Hölderlin é justa- mente fundir o épico e o lírico, sem a necessidade de passar por um momento de síntese trágica, como em- preendido por Hegel.

O desmantelamento da pirâmide hegeliana patro- cinado por Heidegger no seu A origem da obra de arte completa-se com o desvio materializado na leitura dos

Hinos de Hölderlin. Assim, o terceiro momento da tra-

gédia clássica ou do drama shakespeariano é descon- siderado por Heidegger e em seu lugar a poesia de Höl- derlin emerge como um dia a poesia de Hesíodo teria emergido, realizando a fusão entre lírico e épico sem a necessidade de recorrer a um terceiro. Heidegger, des- ta maneira, corrige Hegel e de certo modo completa o trabalho frustrado de Nietzsche. Os esforços de Nietzs- che em romper com a interpretação tradicional da Gré- cia, tomada como um espaço de “serenojovialidade” (segundo Winckelmann), e em se afastar de Hegel, a partir de um esforço de vincular ao trágico um elemen- to asiático, presente em uma possível origem oriental de Dionísio e na introdução de elementos estrangeiros

na tragédia, não atingem o ponto central da metafísica hegeliana. Nietzsche ainda foca sua peleja no trágico e na sua unidade fundamental.

O trágico como ápice da cultura clássica, Sófocles e Ésquilo como seus representantes mais fundamentais – essa tese está contida também no trabalho de Hegel e em praticamente toda a tradição de estudos clássi- cos alemães. Heidegger se apercebe desse movimento e empreende um giro radical em função da leitura de Hegel e Nietzsche, que na verdade é um giro radical em função da leitura de toda uma linhagem de pensadores alemães, incluindo o próprio Hölderlin (que também desenvolveu uma teoria sobre o trágico).

HEIDEGGER E O CONFRONTO COM

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