• Nenhum resultado encontrado

UNIDADES DE PRODUÇÃO DE PREPARADOS DE PEIXE DE OLISIPO E ESTUÁRIO DO RIO TEJO

Os sítios referenciados em Lisboa como unidades de produção de preparados de peixe locali- zam-se integralmente na área da actual baixa lisboeta, numa zona estuarina. Na maioria dos casos, a informação disponível é muito parcial, já que as intervenções arqueológicas se encon- tram limitadas, não só pela actual malha urbana, como pelas condicionantes inerentes às obras em que decorreram.

O primeiro sítio a ser identificado foi a Casa dos Bicos (Amaro, 1982, 1983, 1994b), onde se registaram cinco tanques, um esgoto e dois compartimentos. De acordo com os investigadores que realizaram a intervenção, esta unidade terá funcionado entre os séculos I e III e a sua desac- tivação terá resultado da construção da muralha durante a Antiguidade Tardia.

O eixo Rua Augusta, Rua dos Correeiros, Rua dos Fanqueiros e Rua dos Douradores regista a maior concentração de evidências de produção de preparados de peixe.

Na Rua dos Fanqueiros realizaram-se escavações arqueológicas em dois imóveis, Napoleão e nº 51-57, sendo as informações recolhidas escassas e pouco significativas em termos cronológico- funcionais. No caso do estabelecimento Napoleão (Diogo, Silva e Trindade, 1993; Diogo, 1994; Diogo e Trindade, 2000) identificaram-se dois tanques, um com orientação E-W, 2,84m de comprimento máximo e um segundo que, devido à exiguidade do espaço disponível, não foi possível intervencionar (Diogo, Trindade: 2000, 182). Registou-se ainda um muro, interpretado pelos investigadores como a parede limite do edifício romano. Sobre o fundo registaram-se ves- tígios da última produção e posteriormente contextos relacionados com a destruição da fábrica., Em função dos resultados obtidos na escavação realizada nos nºs 68-76 da Rua dos Fanqueiros, Dias Digo e Laura Trindade consideram que ―[...]a data do abandono total das fábricas de pes- cado de Lisboa, e logo da produção de ânforas Lusitanas [se situa na] segunda metade do século V, explicando assim a grande quantidade relativa de cerâmicas finas originárias do mediterrâneo oriental que encontramos em Lisboa [...]‖ (Diogo, Trindade, 2000, p. 185).

Já no edifício sito nos nºs 50 a 57 da mesma rua, a informação é ainda mais escassa (Amaro, 1994a), na medida em que as condicionantes inerentes ao contexto em que se desenvolveu a intervenção não permitiram a recuperação de qualquer estratigrafia, tendo-se identificado apenas dois tanques, para os quais o investigador não propõe cronologia de funcionamento.

Na Rua dos Douradores/ Rua de São Nicolau, no âmbito das valas abertas para a renovação de diversas infra-estruturas, foram registados em três das sondagens efectuadas, contextos que ―[...] comprovam o carácter fabril que se vem atribuindo a esta zona da cidade romana [...] (Sepúlve- da, Gomes, Silva, 2003, p. 402), nomeadamente duas cetárias contíguas. A data apresentada para o fim da produção nestas estruturas é o século V (Sepúlveda, Gomes, Silva, 2003, p. 407; Fabião, 2009a, p. 29).

Os contextos de cariz industrial identificados na Rua dos Correeiros, um tanque e pátio (com uma cronologia de funcionamento entre os séculos I e III), foram adaptados a área habitacional em época tardia, tendo sido construído um muro revestido a estuque e com pintura a fresco (Fernandes, 2009, p. 204).

Em relação ao núcleo do BCP, na Rua dos Correeiros, Jacinta Bugalhão refere a dificuldade em datar a construção da fábrica já que, devido ao processo de musealização in situ das estruturas, não se procedeu ao seu desmonte, o que significa que não foram intervencionadas realidades anteriores ou contemporâneas do momento de construção. No entanto, existem alguns elementos que permitem estabelecer um limite post quem, que seria o início do século I, nomeadamente a presença de fragmentos de ânforas Dressel 14 em áreas onde as estruturas romanas foram des- truídas ou desmontadas, estando estes fragmentos anfóricos inseridos nestas estruturas (Buga- lhão, 2001, p. 60).

Relativamente à cronologia apontada para o fim do funcionamento na Rua dos Correeiros, situa- se em meados do século V (unidades 2, 4 e 6 e 1 e 5). A unidade 3 apresenta um entulhamento de cronologia ligeiramente mais tardia, justificando a autora o hiato pela utilização desta área como zona de despejo nos momentos imediatamente subsequentes ao seu abandono como estru- tura industrial (Bugalhão, 2001: 167). ―Na maioria dos casos o abandono das estruturas fabris situa-se no final da segunda fase de laboração da indústria — unidades 2, 4 e 6, sem grande margem de dúvida, e provavelmente, unidades 1 e 5 — sendo que a unidade 3, apresentando um entulhamento de cronologia ligeiramente mais tardia, deverá ter vivido o momento da ruptura de laboração em momento idêntico às restantes (meados do século V). Este pequeno hiato cronoló- gico poderá explicar-se pela utilização daquela unidade fabril como área de despejo. As duas excepções cronológicas, ambas localizadas na unidade 6, constituirão episódios da evolução

estrutural do complexo industrial ao longo dos seus cinco séculos de laboração.‖ (Bugalhão, 2001, p. 167)

Na Rua Augusta realizaram-se duas intervenções em que foi possível recuperar contextos rela- cionados com a produção de preparados de peixe. No estabelecimento comercial Mandarim Chinês registaram-se dois troços de paredes de cetárias e um segmento do pátio (Bugalhão, 2003, p. 130). Para além da ocupação industrial desta área, recolheram-se alguns vestígios romanos (um fragmento de placa calcária e um fragmento de canto de friso) em contexto secun- dário (nos contextos oleiros islâmicos), interpretados por Jacinta Bugalhão como evidências de um outro tipo de construções na zona que não apenas industriais (Bugalhão, 2003, p. 131). A autora refere ainda que a estratigrafia é escassa, e que a maioria do material romano recolhido é proveniente das camadas de remeximento, onde coexistem com materiais islâmicos. A datação para o período de funcionamento da fábrica baseia-se na componente anfórica recolhida, assu- midamente descontextualizada, verificando-se o predomínio da forma Almagro 50, seguida da Lusitana 3 e Almagro 51c (Bugalhão, 2003, p. 135). A investigadora considera que o período de laboração desta unidade se insere na segunda fase de produção de preparados piscícolas, ressal- vando que não existe qualquer informação relativa a um possível funcionamento durante a pri- meira fase (Bugalhão, 2001), considerando na sua interpretação não só a componente anfórica, como a presença de um fragmento de taça de Terra Sigillata Hispânica, datada entre o final do século I e o início do século II, sob o pavimento de opus signinum (Bugalhão, 2003, p. 135). Apesar de não existir uma integração estratigráfica do material recolhido, a relativa homogenei- dade cronológica que apresenta (séculos III e IV) e a ausência de materiais de finais do século IV e século V (nomeadamente Terra Sigillata Clara D) permite colocar a hipótese de abandono precoce na área industrial mais próxima do esteiro. Não deixa, no entanto, de colocar a hipótese de se tratar de uma reestruturação da unidade, comum em contextos similares, sendo necessário ter em conta o facto de os vestígios serem escassos (Bugalhão, 2003, p. 37).

A segunda escavação arqueológica realizada na Rua Augusta não se encontra ainda publicada, e mesmo as referências na base de dados Endovélico são escassas, dando-se conta da existência de alicerces de edifícios a 4m de profundidade e de vários tanques de pequena dimensão e a pre- sença de ânforas das formas Almagro 51c e Almagro 50, assumindo-se que terá laborado duran- te a segunda fase (Bugalhão, 2001).

Existem outras evidências arqueológicas da produção de preparados de peixe em áreas próximas da cidade de Olisipo, para além da Casa do Governador da Torre de Belém, nomeadamente na Rua Marques Leal Pancada, em Cascais, onde foram identificados sete tanques. De acordo com o autor, fariam parte de um conjunto de doze, pertencentes a uma mesma fábrica (Cardoso,

2006, p. 149). A escassa componente artefactual referida, que se resume a dois fragmentos de ânforas Dressel 14, não permite inferir cronologias de forma sustentada.

A produção de preparados de peixe encontra-se igualmente atestada na margem esquerda do Tejo, em Cacilhas (Rua Alfredo Dinis e Rua Carvalho Freirinha) e Porto Brandão. Na Rua Alfredo Dinis identificaram-se dez tanques, duas tinas utilizadas para a limpeza do complexo e vestígios do pátio, com uma cronologia de funcionamento entre os séculos I e II (Barros, 1982; Barros e Amaro, 1985; Barros, 1994; Santos, Sabrosa e Gouveia, 1995; Bugalhão, 2001, p. 54). Na Rua Carvalho Freirinha registaram-se vários tanques (número não especificado) sendo que um deles conservava ainda vestígios da última produção de preparados de peixe, não existindo qualquer proposta de cronologia para o seu funcionamento (Bugalhão, 2001, p. 54; Santos, Sabrosa e Gouveia, 1995). No Porto Brandão existe apenas referência a dois tanques, sem qual- quer informação adicional, mesmo no que respeita à cronologia do seu funcionamento (Santos, Sabrosa e Gouveia, 1995; Bugalhão, 2001, p. 54).

O carácter parcial da maioria das intervenções arqueológicas condiciona a caracterização das unidades de produção de preparados de peixe já identificadas no estuário do Tejo. No entanto, é possível verificar uma grande concentração destes estabelecimentos, que foram necessariamente contemporâneos em determinados períodos de tempo. Em que sistema institucional se enqua- dravam, como se relacionavam as diferentes unidades e qual o significado da sua localização geográfica são questões que permanecem em aberto.