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CAPÍTULO II – O CASO DOS PERCURSOS

2.1 Unidades tópicas e não tópicas

Como mencionado, a circulação de “apocalipse” é ampla. Neste capítulo, mostramos como foi explorado o percurso da unidade lexical, e de suas reformulações, por diversos campos discursivos e como foi constituído o nosso corpus. A apresentação feita a seguir tem a finalidade de situar nosso leitor e apresentar algumas noções que foram cruciais para a constituição do corpus dessa pesquisa. Maingueneau (2008b) demonstra interesse em esclarecer alguns conceitos amplamente usados na AD francófona. Para o autor, este trabalho não é supérfluo, visto que, devido ao fato de a AD ter se tornado um domínio de pesquisa extremamente ativo no mundo inteiro, há um déficit de legitimidade, dada a heterogeneidade dos conceitos e procedimentos praticados hoje em dia (p. 11).

Em Unidades tópicas e não-tópicas, o autor, citando Arqueologia do Saber (1969) de Foucault e aspectos pecheutianos desde o artigo “A semântica e o corte saussuriano” (2008), reivindica uma dupla paternidade para a noção de formação discursiva. É a partir dessa problematização que surgem hipóteses sobre a metodologia em AD e sobre a maneira de se coletar e recortar dados. Maingueneau começa fazendo distinção entre dois grandes tipos de unidades: as tópicas e as não-tópicas. As unidades tópicas correspondem a espaços já pré- delineados pelas práticas verbais (e.g. o discurso do partido x, o discurso hospitalar etc.). Ou seja, elas proporcionam um critério (um lugar social organizado) para a organização de um

corpus (uma revista, um jornal etc.), algo que já esteja recortado e que requererá uma futura

Há unidades que poderiam ser chamadas de unidades territoriais, que correspondem a espaços já “pré-delineados” pelas práticas verbais. Pode-se tratar de tipos de discurso relacionados a certos setores de atividades da sociedade: discurso administrativo, publicitário, político, etc. [...] Em análise do discurso, recorremos igualmente às unidades que poderíamos chamar de transversas, no sentido em que elas atravessam textos de múltiplos gêneros de discurso (MAINGUENEAU, 2008b, p. 16-17).

As unidades não-tópicas, por outro lado, funcionam de forma diferente. Tais unidades são construídas pelos pesquisadores sem levar em consideração fronteiras preestabelecidas. Logo, as unidades não-tópicas são domínios para a construção de um corpus que não se enquadra em um único lugar, mas uma variedade grande de material em diversos campos discursivos. O autor propõe dividir esta unidade em duas unidades que não são dadas, que são construídas pelo analista, chamadas de formações discursivas e percursos.

As formações discursivas são definidas pelo autor como o “conjunto aberto de tipos e gêneros de discurso, de campos, aparelhos, e de registros”. Estas se dividem em unifocais e

plurifocais (ibid., p. 19). As unidades territoriais ou transversas são definidas como tópicas,

pois elas se referem a discursos que são, de certa forma, mais identificáveis (e.g. o humorístico, o didático, o da divulgação científica etc.). As unidades tópicas oferecem um critério, que independe do analista, para a construção de um corpus – isto é, uma instituição. Uma instituição não significa, necessariamente, o Ministério da Cultura, a Universidade ou Secretaria de Segurança etc., pode se tratar de um partido. A título de exemplo, o analista que pretende trabalhar com o discurso de partidos comunistas no Brasil, para proceder sua análise, pode ir à sede do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), procurar por documentos etc. Ser tópico quer dizer ser garantido por um lugar social organizado, uma instituição. Sempre há um lugar que significa: “aqui fala o médico”, “o jurista”, “o partido”, “a Universidade” etc.

Já o não-tópico não tem um lugar próprio; não é assegurado por uma instituição. Por exemplo, não há um lugar institucionalizado para a produção do discurso racista, ou homofóbico. Não há um lugar, um documento, uma instituição onde se encontre o discurso racista, ou pessoas que se digam racistas. Ele é encontrado em qualquer lugar: em enunciados do cotidiano, manifestações em estádios de futebol, letras de música, numa piada, num grafite de banheiro ou até na fala de um jornalista em rede nacional. A proposta de Mainguenau (2008b) sobre a mobilização de unidades não-tópicas é algo novo. Muitas análises não são feitas segundo esse critério, o que, geralmente, se faz é a análise de um material tópico: uma década de produção da revista x, a obra de um autor, um ano ou dois de Suplementos Literários etc.

Traçamos um percurso para reunir o material que constitui o corpus da pesquisa ora apresentada. Os textos reunidos a partir da circulação de uma fórmula discursiva correspondem a um tipo de unidade peculiar, construída a partir do trabalho do analista, denominada de percurso (cf. MAINGUENEAU 2008b, p. 23). Pesquisas que lidam com os percursos não pretendem associar a ocorrência do enunciado a uma “fonte” originadora do sentido, como, por exemplo, uma formação discursiva no sentido tradicional da análise do discurso. Pelo contrário, trata-se de “desestruturar as unidades instituídas [...] sem procurar construir totalidades” (idem), uma vez que um percurso nunca está concluído ou terminado, mas sempre em constante reformulação. Ao contrário das unidades-tópicas, o que se pretende é desestruturar as unidades já instituídas, definindo percursos não esperados. O que o analista pode fazer são recortes, tanto temporais quanto materiais (restringir-se a dois ou três campos discursivos, por exemplo, o campo jornalístico, o campo das artes etc.). Maingueneau destaca que o princípio que irá agrupá-los é uma decisão tomada exclusivamente pelo analista, mas com base em critérios históricos e seguindo um conjunto de princípios que regulam esse tipo de atividade hermenêutica.

Agir desta maneira foi produtivo, pois a partir desta noção fizemos nossa primeira

aproximação para constituição do corpus desta pesquisa. Por meio da construção de uma unidade não-tópica, podemos perceber os diversos campos discursivos em que uma unidade lexical emerge. No caso de “apocalipse”, foi possível localizar ocorrências da palavra em diversos campos discursivos, tais como: publicitário, jornalístico, filosófico, humorístico, político, etc., como veremos abaixo.