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CAPÍTULO I – A GENEALOGIA DO APOCALIPSE E SUAS CONDIÇÕES DE

1.4 Zoroastrianos, judeus e cristãos

Como realçaremos abaixo, a linguagem sempre está exposta às determinações históricas. Temos uma história que, assim como a linguagem, também está em movimento – posto que o real da história é uma contradição dialética que nunca vai se resolver em síntese alguma. Portanto, se temos uma sociedade que nunca vai para um lugar único e que sempre está permeada por relações de força, teremos sempre uma sociedade e sentidos se debatendo em relações e interpretações que ora divergem, ora convergem. Por isso, a Análise do Discurso (doravante denominada AD) requer que o olhar do analista sempre vá pra fora, o texto x na relação com outros textos, o texto dito com o que não está dito. De modo semelhante ao de Pêcheux e Fuchs (1969, 1975a), que buscou esse movimento fundamental, adentrou o estruturalismo e saiu de uma perspectiva conteudística (isto é, perspectiva que vai para um ponto, ou alguns pontos, no interior do texto), adiante colocaremos em relação as três profecias apocalípticas apresentadas até aqui.

Com algumas divergências, os apocalipses ora apresentados têm semelhanças demais para serem desconsideradas. Segundo Cohn (1993), a conceituação de fim do mundo zoroastriana, judaica e o livro do Apocalipse são obras que se preocupam muito com a escatologia. Nestes escritos, o mundo era constituído de maneira dualística; os autores dessas obras criam que existia uma força contrária aos poderes divinos, essa força sempre agia no sentido de frustrar os planos celestiais. Também acreditavam que, futuramente, as forças malignas seriam destruídas pelo poder divino e, então, o tempo do fim chegaria. Os servos do bem viveriam pela eternidade, já os mortos receberiam destinos antagônicos.

Os adeptos de Zoroastro sempre haviam acreditado em uma gloriosa consumação futura, quando o mundo seria transformado e todos os justos, inclusive os mortos, seriam dotados de corpos imortais e incorruptíveis. Sempre acreditaram também que atuava no mundo uma potência sobrenatural e destrutiva. Para se avaliar quanto o Satã/Beliar cristão e judeu deve ao zoroastrismo, basta lembrar o que o Avesta diz de Angra Mainyu. Pois Angra Mainyu também introduziu a morte no mundo e é a causa das deformidades e aflições corporais, também é chamado de “pai das mentiras” e também é o líder de um exército de demônios. E, no final, ele também será completamente derrotado pelo deus supremo (COHN, 1993, p. 287).

Cohn (1993) diz que as similaridades entre as crenças zoroastrianas, judaicas e as crenças apocalípticas são muitas para que possam ser explicadas por uma coincidência. A prática exegética cristã interpreta o livro de Daniel fazendo conexões ao livro do Apocalipse, isto é, os cristãos também aceitam os escritos escatológicos de Daniel. Em Apocalipse

também podemos encontrar um paralelo entre “o simbolismo dos quatro metais” e no mito zoroastriano conhecido como Vahman Yasht – obra persa que, semelhantemente ao sonho do rei Nabucodonosor, descreve a última grande época por ferro e argila ligados (ibid., p. 288).

Todavia, segundo o autor, tais similaridades não apontam na direção de não haver diferenças entre as expectativas zoroastrianas, judaicas e cristãs. O destino dos seres e do mundo após a morte não é concebido da mesma maneira nestas duas religiões. Ao passo que para os judeus após a morte os indivíduos esperavam em um sono até o Juízo Final, para os zoroastrianos as almas vagavam pelo céu ou pelo inferno até serem julgadas. O ponto de convergência que fez tanto judeus quanto cristãos e zoroastrianos acreditarem em seus respectivos apocalipses foi o sofrimento experimentado em suas vivências. Segundo o autor, o sentimento de revolta compartilhado por zoroastrianos e judeus pode ter sido o responsável pela conexão do pensamento escatológico dessas religiões.

A mensagem dos sacerdotes zoroastrianos terá ido ao encontro do que alguns judeus desejavam ouvir. A queda do império arquemênida foi uma experiência traumática para os iranianos. [...] Iranianos e judeus eram companheiros de sofrimento em um mundo incerto e atormentado (ibid., p. 291).

“Subjacente à interpretação dada por Zoroastro aos antiquíssimos conceitos de asha e

druj, encontra-se a percepção aguda de uma ordem social relativamente pacífica ameaçada

por agressores externos” (COHN, 1993, p. 130). Após sofrer a tirania imposta por domínios estrangeiros, como o de Antíoco IV Epifânio e, futuramente, o de Roma, os judeus encontraram nos ensinamentos escatológicos não somente a garantia de que o mal não provinha de Deus, mas também que um dia seriam redimidos de todo e qualquer revés enfrentado. O ato de recorrer a uma profecia escatológica frente às tribulações não é algo raro na prática de produção apocalíptica, esse ato marca discursivamente a obra do apóstolo João.

Um exemplo disso é a produção apocalíptica de Zoroastro. Para Cohn (1993), não há duvidas de que a produção de Zoroastro a foi afetada por sua experiência de vida. Ao escrever sua obra, o profeta “se encontrava indefeso, e consciente do que ocorria com outras pessoas indefesas” (p. 130). Em alguns momentos podemos perceber que Zoroastro pede ajuda material ao seu Deus23. Essa crença na relevância do papel da vida de Zoroastro para aquilo que ele escreveu lembra, de certa maneira, aquilo que se diz sobre a experiência de vida de quem fala alguma coisa. É dado mais credibilidade para pessoas que falam de algo relacionado à própria experiência de vida. Ao falar de economia, consideramos mais um

economista, de política, um político ou sociólogo etc. (retomaremos esse assunto no capítulo seguinte). Podemos correlacionar este aspecto com o que Maingueneau (2008) diz sobre o

ethos pré-discursivo24 que é, basicamente, a construção prévia da imagem de um locutor feita

por um público.

Quanto às semelhanças do Zoroastrismo com o Cristianismo, de acordo com Cohn,

o messias do Livro do Apocalipse tem muito menos em comum com qualquer figura messiânica da Bíblia hebraica do que com os guerreiros divinos nas várias versões do mito do combate – e, dentre eles, nem Indra, nem Marduk, nem Ba’al, nem o Yahweh primitivo permitem um paralelo tão próximo quanto o Saoshyant zoroastriano (1993, p. 293).

Assim como Jesus é esperado pelos cristãos, espera-se que um dia Zoroastro retorne, ressurreto e glorificado, “no Saoshyant miraculosamente gerado de sua semente, a fim de combater e derrotar as hostes demoníacas, trazer os mortos de volta à vida e conduzir o julgamento escatológico” (idem). Além desta semelhança, tanto no Cristianismo, quanto no Zoroastrismo a volta dos seus redentores significa a chegada do tempo do fim e o início da era vindoura. Dentre os grupos situados à margem do Judaísmo, a seita mais exposta ao Zoroastrismo era a de Jesus25. O Cristianismo se tornou uma religião muito diferente do Judaísmo e do Zoroastrismo, a crença de que Jesus era o fundamento que intercederia e salvaria o mundo era algo novo e “permanece até hoje como fundamento das crenças das principais Igrejas cristãs. No entanto, o que o Cristianismo havia tomado do Zoroastrismo também permaneceu, também se difundiu por todos os continentes ao longo dos séculos, até alcançar o mundo moderno” (COHN, 1993, p. 294).