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Como mostro mais adiante (no item 2.1 do Capítulo II), a expressão “teoria da linguagem” não é estranha aos escritos de Benveniste. No “Prefácio” do primeiro volume dos Problemas de linguística geral, o linguista faz uso dela, assim como em seu capítulo 3 – “Saussure após meio século” (texto originalmente publicado em 1963), referindo-se aos estudos do campo da linguística.

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Uma primeira versão dessa reflexão a propósito da noção de universo benvenistiano se encontra em Rosário (2016).

Em “Émile Benveniste: uma semântica do homem que fala”, Teixeira e Messa (2015, p. 100) utilizam a expressão universo benvenistiano para se referirem ao conjunto do pensamento de Benveniste, salientando que “a multiplicidade de interesses que nele encontramos tem seu ponto de convergência na preocupação com a significação”71

.

Segundo as autoras, essa preocupação se evidencia – no Benveniste comparatista, reconhecido especialista do campo da gramática comparada – sobretudo pelos estudos apresentados nas obras Origine de la formation des noms en indo-européen (1935), Noms d’agent et noms d’action en indo-européen (1948) e nos dois volumes de O vocabulário das instituições indo-europeias (1969), uma vez que neles Benveniste, afastando-se da escola comparatista clássica, não se centra apenas na descrição das formas linguísticas em si, mas busca descrevê-las com base em seu valor funcional, ou seja, seu sentido72. A esse respeito, aliás, Teixeira e Messa (2015, p. 101, grifos meus) trazem a seguinte observação de Lucien Tesnière: “Sente-se, por trás de cada um de seus raciocínios, uma teoria geral da linguagem, e constata-se com alegria que o comparatista não abafa nele o linguista”.

Para Teixeira e Messa, nos Problemas de linguística geral, surgem mais dois dos interesses que compõem esse universo benvenistiano: o interesse pelo campo da linguística geral e pelo campo enunciativo. Desse modo, tanto no primeiro quanto no segundo volume, identifica-se o Benveniste linguista, voltado para questões de linguística geral com o propósito de “introduzir o sentido no coração da análise linguística”, assim como o Benveniste teórico da enunciação, “que coloca para o linguista a necessidade de levar em conta a instanciação do sujeito na dinâmica do discurso”, fazendo com que um modo de significação seja indissociável de um modo de subjetivação (TEIXEIRA; MESSA, 2015, p. 101-102)73.

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Posição a propósito do pensamento de Benveniste em consonância com a de outros autores apresentados. Lembro, nesse sentido, as palavras já referidas de Barthes (1984, p. 206) – “é sempre do ponto de vista do sentido que Benveniste interroga a linguagem” – e de Dessons (2006, p. 27) – “a significação como ponto de vista fundamental [de Benveniste] sobre a linguagem” –, por exemplo.

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Em “Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da linguística”, Benveniste (1963/1995, p. 23) salienta que, até as primeiras décadas do século XX, “a linguística consistia essencialmente numa genética das línguas”, fixando-se somente na evolução das formas. Por outro lado, com as ideias trazidas pelo Curso (sobretudo o princípio de que “a língua forma um sistema” (BENVENISTE, 1963/1995, p. 22, grifos do autor)), Benveniste (1995, p. 23, grifos do autor) acrescenta que: “A noção positivista do fato linguístico é substituída pela de relação. Ao invés de considerar-se cada elemento em si e de procurar-se a sua ‘causa’ num estado mais antigo, encara-se cada elemento como parte de um conjunto sincrônico; o ‘atomismo’ dá lugar ao ‘estruturalismo’”.

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A título de exemplo, as autoras citam os artigos “Os níveis da análise linguística” (1962/1964) e “O aparelho formal da enunciação” (1970), respectivamente, como emblemáticos dessas duas outras facetas do linguista; além de salientar que as reflexões que levam a uma teoria da enunciação estão reunidas sobretudo nas Partes intituladas “A comunicação” e “O homem na língua” dos dois volumes. Aliás, nesse sentido, no artigo “Les termes de l’énonciation chez Benveniste”, Normand (1986) defende que são, principalmente, os textos dessas partes que, desde os anos 70, fazem de Benveniste uma referência no campo das pesquisas sobre a enunciação. Por outro lado, recuperando uma avaliação de Flores (2013), Teixeira e Messa afirmam que, diferentemente do que ocorre em outros autores, não é possível dizer que Benveniste tenha tido a intenção de produzir uma teoria

Considerando, por sua vez, as publicações trazendo manuscritos inéditos do linguista – Baudelaire e Últimas aulas no Collège de France (1968 e 1969) –, Teixeira e Messa reconhecem, mais fortemente, outros dois interesses presentes no universo benvenistiano: o interesse pelo campo da literatura e pelo campo da semiologia.

Ora, conforme as autoras, o envolvimento do linguista com o literário não se configura em uma novidade para o estudioso atento à obra, e também à vida, de Benveniste. Suas referências a escritores ou a passagens de textos literários são recorrentes. Teixeira e Messa mostram que esse interesse pode ser atestado, por exemplo, por sua proximidade com o movimento surrealista ou pela produção de L’eau virile (1945), texto no qual versa sobre o imaginário poético da água74. Sem mencionar, claro, a sempre referida resposta dada a Guy Dumur – em entrevista para Le Nouvel Observateur, em 196875 – em que Benveniste afirma o imenso interesse da linguagem poética para a linguística.

No entanto, em 2011, com a publicação do manuscrito estabelecido por Laplantine, surge para as autoras o pesquisador preocupado não somente com a significação da linguagem ordinária, mas também com a significação da linguagem poética76, ou seja, o Benveniste que pensa a linguagem poética ou a dimensão artística da linguagem77.

Por fim, segundo Teixeira e Messa, em 2012, a publicação do texto com os manuscritos de Benveniste relativos às aulas no Collège de France relança a discussão aberta, em 1969, em “Semiologia da língua”. No final desse artigo, completando o universo benvenistiano, tem-se o Benveniste semiólogo, que propõe o projeto de uma semiologia de segunda geração tomando por base a semântica da enunciação, e não a noção saussuriana de signo, em uma análise translinguística dos textos e das obras. Esse projeto, conforme as autoras, deixa claro que “o pensamento de Benveniste sobre o sentido não se esgota na

da enunciação acabada, e que a chamada teoria benvenistiana da enunciação é, na verdade, uma construção a

posteriori de seus leitores, que encontraram continuidade no conjunto da produção do linguista sobre o tema

(TEIXEIRA; MESSA, 2015, p. 98). Essa construção é a que surge com a publicação do artigo “O aparelho formal da enunciação”.

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Françoise Bader (1999), em “Une anamnèse littéraire d’Émile Benveniste”, apresenta uma leitura desse texto de Benveniste na qual relaciona a análise desenvolvida pelo linguista a aspectos de sua vida pessoal. Leitura essa, aliás, criticada por Laplantine e Pinault (2015) em sua apresentação de Langues, cultures, religions. 75

Entrevista reproduzida no texto “Esta linguagem que faz a história” no segundo volume dos Problemas de

linguística geral. 76

Adotando um ponto de vista diferente do de Laplantine, Flores (2013, p. 184) ressalta que Benveniste, no

Dossiê Baudelaire, “não opõe o poético ao ordinário, mas toma ambos como representações possíveis da

língua”. Não se trata, então, de uma oposição, mas, sim, de uma distinção. Tal distinção, acrescenta o autor, mostra que Benveniste parece dar uma outra dimensão, mais ampla e mais complexa, à própria linguagem ordinária, na medida em que esta conteria os elementos que permitiriam à linguagem poética advir.

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semântica da enunciação, mas se volta para a elaboração de uma metassemântica” (TEIXEIRA; MESSA, 2015, p. 102).

Teixeira e Messa (2015, p. 103) mostram, desse modo, a amplitude do universo benvenistiano, que reflete “a espantosa diversidade de domínios, de línguas e de fenômenos estudados por ele”, trazendo à tona, a cada vez, um Benveniste particular78. E, nesse sentido, é importante salientar que esse universo por elas desenhado não objetiva absolutamente esgotar ou engessar o pensamento do linguista, mas, ao contrário, mostrar seus principais (ou, melhor dizendo, mais evidentes) eixos de interesse e, sobretudo, a pluralidade de sua reflexão79.

Por outro lado, mesmo não havendo “um livro definitivo em que ele nos apresente uma síntese de seu pensamento” (uma “teoria da linguagem de Benveniste”, nas palavras de Flores (2013, p. 190)), as autoras insistem para que não se tome o legado de Benveniste como disperso, uma vez que, “esse pensamento aparentemente tão plural, essas inúmeras incursões no campo de estudo da linguagem encontram seu ponto de convergência na preocupação com a significação” (TEIXEIRA; MESSA, 2015, p. 103-104); questão central para o linguista, como demonstrado80. O que, como indicam Teixeira e Messa, é confirmado em um depoimento a respeito de seu trabalho pelo próprio Benveniste (apud TEIXEIRA; MESSA, 2015, p. 104, grifos meus)81:

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Ideia que as autoras buscam em Normand (1997), no texto “Lectures de Benveniste: quelques variantes sur un itinéraire balisé”.

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As próprias autoras também falam de um Benveniste filósofo da linguagem e de um Benveniste crítico

literário, embora não desenvolvam esses dois pontos de vista a respeito do linguista. Sobre esse Benveniste filósofo da linguagem, remeto a leituras de uma linguista, Claudine Normand (1996), e de um filósofo, Stéfane

Mosès (2001), por exemplo. Normand (1996, p. 222, tradução minha) sustenta que Benveniste “cruza a filosofia” “em suas análises, que se dizem sempre e somente linguísticas, sobre as questões do sujeito e da referência”. Mosès, por sua vez, defende que os estudos reunidos nos dois volumes dos Problemas de linguística

geral se caracterizam por “uma abordagem, ao mesmo tempo, puramente linguística […] e distintamente

filosófica das questões tratadas”, salientando que esse viés filosófico não passa, segundo o filósofo, pela “elaboração de um sistema especulativo coerente, mas, preferentemente, [pel]o esclarecimento, na análise dos fatos linguísticos, de suas implicações mais gerais envolvendo a natureza da linguagem, seu lugar no conjunto das atividades humanas e, antes de tudo, o papel da subjetividade humana no exercício da fala” (MOSÉS, 2001, p. 509, tradução minha). Mosès (2001, p. 509, grifo do autor, tradução minha) ainda ressalta que, se as análises linguísticas de Benveniste o levam tão perto da filosofia, “é em razão do lugar central que o problema da

significação tem em seu pensamento”. 80

Aproveito e retomo, neste momento, uma importante observação de Normand (1996, p. 222, nota 8, grifos da autora, tradução minha) a respeito dos termos “sentido” e “significação”: “Impossível de distinguir em Benveniste, para mim, uma diferença entre sentido e significação, na maioria das vezes substituíveis”. Acredito, por outro lado, que, em português, o mesmo vale para o uso do termo “significado” quando não tomado, é claro, em relação aos termos “significante” e “signo” (nesse caso, signifié, em francês). Com isso, de modo geral, tomo os termos “sentido”, “significado” (sens, em francês) e “significação” (signification, em francês) como equivalentes. Observo que um outro termo, “significância” (signifiance, em francês), é essencial na reflexão semiológica de Benveniste. Trato dessa noção mais adiante, sobretudo no Capítulo III.

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Esse depoimento se encontra em uma carta, pertencente ao Acervo Benveniste da BNF, endereçada à Fundação Rockefeller, em abril de 1953, na qual Benveniste justifica a solicitação de financiamento de uma

Todas as pesquisas que fiz nesses últimos anos e o projeto que criei têm em vista o mesmo propósito. [...] Em resumo, minha preocupação é saber como a língua “significa” e como ela “simboliza”. As tendências atuais de uma certa escola de

linguistas querem analisar a língua sobre a base da distribuição e das combinações formais. Parece-me que é tempo de abordar com métodos novos o conteúdo dessas formas e ver segundo quais princípios ele é organizado.82

Acredito que a ideia das autoras de um universo benvenistiano seja, de fato, muito produtiva, na medida em que, através da metáfora do “universo”, essa ideia permite que se considere a especificidade de um determinado eixo de interesse do linguista (ou seja, aquela de um Benveniste particular) sem que se perca de vista, porém, sua articulação com o conjunto de seu pensamento (ou seja, sem que se reduza seu pensamento, tomando-o como fragmentado e desconexo). E essa articulação, que confere coesão ao conjunto – a “teoria da linguagem de Benveniste” –, está na preocupação com a questão da significação; o que muitos autores identificam e referem, mas tão objetivamente Teixeira e Messa mostram. Eis, para mim, a importância dessa reflexão das autoras e sua pertinência para este trabalho, no qual, além de seu valor teórico, tem um valor operatório/metodológico.

A partir disso, no próximo item – “O Benveniste semiólogo e sua semiologia da língua” –, estabeleço o que me interessa especificamente desse universo benvenistiano, definindo o objeto e o problema de pesquisa deste trabalho, assim como as hipóteses que o fundamentam.