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3 CONSTRUINDO A PESQUISA, PENSANDO A CIÊNCIA: LINHAS DA

3.2 O USO DA ETNOGRAFIA PARA UMA PESQUISA EM COMUNICAÇÃO:

Para trabalhar com a etnografia, busquei no antropólogo estadunidense Clifford Geertz aspectos das bases metodológicas que, combinadas a outros métodos específicos para o trabalho que desenvolvo, foram construindo a pesquisa. O trabalho deste autor é pertinente a esta pesquisa por vários motivos. Um deles é que sua concepção de cultura é calcada na Semiótica, de modo que me pareceu bastante coerente suas colaborações para a temática, pensando a cultura como contexto. Geertz (2013 p. 10) frisa que,

Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível — isto é, descritos com densidade.

A partir de Geertz (2013) e do trabalho realizado em campo, foi possível perceber a complexidade de se observar uma realidade outra e sua multiplicidade de aspectos que se tramam em diferentes direções e de modo bastante particular para cada pessoa.

Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. (GEERTZ, 2013, p. 4).

Para dar conta de tamanha empreitada, a descrição densa e as entrevistas em profundidade foram duas ferramentas indispensáveis ao trabalho de tentar construir uma leitura dos diversos sinais que não estão dispostos de forma linear, mas sim organizados em uma complexa constelação pessoal, acessível apenas aos mais íntimos.

Apesar de ter estado próxima à cultura e às sujeitas participantes da pesquisa, a construção desse trabalho não deixa de ser um texto, uma sistematização sobre a experiência delas na constituição de algo extremamente subjetivo, mas ao mesmo tempo construído de forma

familiar e social, que é a questão identitária. Por isso, esse texto não pode ter a pretensão de conter uma verdade. Como conjunto signico que é, representa apenas algo sob determinado aspecto. Como salienta Geertz (2013, p. 11):

Resumindo, os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Por definição, somente um ‘nativo’ faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura.) Trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que são ‘algo construído’, ‘algo modelado’ — o sentido original de fictio — não que sejam falsas, não fatuais ou apenas experimentos de pensamento.

Realizar essas traduções40 é uma tarefa sempre arriscada: é preciso estar atenta,

identificar as complexidades de uma vida que não é sua. Para Geertz (2013, p. 15), há três características da descrição etnográfica: “ela é interpretativa; o que ela interpreta é o fluxo do discurso social e a interpretação envolvida consiste em tentar salvar o ‘dito’ num tal discurso da sua possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em formas pesquisáveis.”

A força de nossas interpretações não pode repousar, como acontece hoje em dia com tanta frequência, na rigidez com que elas se mantêm ou na segurança com que são argumentadas. Creio que nada contribuiu mais para desacreditar a análise cultural do que a construção de representações impecáveis de ordem formal, em cuja existência verdadeira praticamente ninguém pode acreditar. (GEERTZ, 2013, p. 13).

Esse cuidado, de estar atenta às nuances, aos ditos e não ditos, às “piscadelas”, é fundamental. Trabalhar com a noção de que as participantes da pesquisa são co-produtoras do conhecimento e não objetos é uma opção ética e epistemológica assumida. Mas é necessário ter o discernimento de que o trabalho de campo é científico e precisa manter determinados contornos para que não se perca o olhar mais apurado.

O objetivo é tirar grandes conclusões a partir de fatos pequenos, mas densamente entrelaçados; apoiar amplas afirmativas sobre o papel da cultura na construção da vida coletiva empenhando-as exatamente em especificações complexas. (GEERTZ, 2013, p. 19-20).

Para tentar fixar os discursos e interpretar os aspectos culturais, recorri a uma abordagem de inspiração etnográfica (saliento que trata-se de uma inspiração, pois não sou antropóloga de formação, não utilizo de todas as “ferramentas” da etnografia e nem tive

40 O conceito semiótico de tradução será retratado no Capítulo 4 intitulado “Sobe recepção midiática: a utilização de diferentes correntes para um melhor entendimento da questão”.

tempo suficiente de abordagem junto às sujeitas comunicantes para poder denominar o trabalho etnográfico em si), que chamo de entrevistas etnocomunicacionais em profundidade, aproveitando a bagagem de minha formação enquanto jornalista e enriquecendo-a com os preceitos etnográficos. Os movimentos realizados para a construção desta pesquisa não foram mecânicos ou simplesmente uma série de perguntas. Foram, na verdade, uma série de passos, que envolveram uma aproximação cautelosa, um processo de escuta e um estreitamento de laços humanos que não causaram distúrbios, muito pelo contrário, me municiaram de referências e afetos que possibilitaram um melhor conhecer e interpretar a construção das semioses, que é o objetivo deste trabalho.

Importante lembrar que esta pesquisa foi realizada em meio urbano, em uma realidade acessível (todas as sessões do centro de Umbanda são abertas ao público, por exemplo). A inspiração etnográfica não repousa aqui, como salienta Geertz (2013, p. 12),

[...] na capacidade do autor em captar os fatos primitivos em lugares distantes e levá-los para casa como uma máscara ou um entalho, mas no grau em que ele é capaz de esclarecer o que ocorre em tais lugares, para reduzir a perplexidade — que tipos de homens são esses? — a que naturalmente dão origem os atos não familiares que surgem de ambientes desconhecidos.

Ou seja, no caso deste trabalho trata-se de trazer para o meio acadêmico e comunicacional um tema que reverbera socialmente e em tantas áreas do conhecimento, na tentativa de compreender as semioses geradas, e também de trazer para conversa sujeitas comunicantes com experiências de vida riquíssimas. Não se trata de dar voz a elas: todas as pessoas têm a sua, o seu axé de fala41. O objetivo aqui é escutar, compreender e traduzir

experiências para compreender processos sociais e comunicacionais e trazê-los para debate, sem ter em mente apenas uma “verdade”. Ainda que o grupo em questão seja pequeno, apenas três mulheres, as enxergo como amplificadores da vida e do cotidiano de milhares de Jacis, Kethlins e Kellens. Acredito que por meio da experiência e das singularidades de cada uma delas seja possível compreender alguns aspectos que perpassam a construção identitária, e o processo de recepção midiática de um enorme grupo de brasileiras.

Resumindo, temos que descer aos detalhes, além das etiquetas enganadoras, além dos tipos metafísicos, além das similaridades vazias, para apreender corretamente o caráter essencial não apenas das várias culturas, mas também

41 Nas religiões de matriz africana se diz que uma entidade ganhou o axé de fala quando consegue se comunicar verbalmente através de seu médium.

dos vários tipos de indivíduos dentro de cada cultura, se é que desejamos encontrar a humanidade face a face. Nessa área, o caminho para o geral, para as simplicidades reveladoras da ciência, segue através de uma preocupação com o particular, o circunstancial, o concreto, mas uma preocupação organizada e dirigida em termos da espécie de análises teóricas sobre as quais toquei — as análises da evolução física, do funcionamento do sistema nervoso, da organização social, do processo psicológico, da padronização cultural e assim por diante — e, muito especialmente, em termos da influência mútua entre eles. Isso quer dizer que o caminho segue através de uma complexidade terrificante, como qualquer expedição genuína. (GEERTZ, 2013, p. 38).

O autor também fala da importância de não apenas realizar uma descrição dos fatos e hábitos das diferentes civilizações em cada período histórico, mas sim de conseguir perceber as relações causais impressas nas estruturas sociais de cada período. Os sistemas dessas relações são expressos por signos, que servem para dar significado ao mundo vivido:

A perspectiva da cultura como “mecanismo de controle” inicia-se com o pressuposto de que o pensamento humano é basicamente tanto social como público — que seu ambiente natural é o pátio familiar, o mercado e a praça da cidade. Pensar consiste não nos ‘acontecimentos na cabeça’ (embora sejam necessários acontecimentos na cabeça e em outros lugares para que ele ocorra), mas num tráfego entre aquilo que foi chamado por G. H. Mead e outros de símbolos significantes — as palavras, para a maioria, mas também gestos, desenhos, sons musicais, artifícios mecânicos como relógios, ou objetos naturais como joias — na verdade, qualquer coisa que esteja afastada da simples realidade e que seja usada para impor um significado à experiência. (GEERTZ, 2013, p. 33).