• Nenhum resultado encontrado

1. Utopia como princípio

1.2. Utopia e “pureza” da forma: a experiência russa

Assim como vários pensadores dedicaram-se a pensar formas ideais de vida, outros se dedicaram a conceber formas ideais de organização social, espacial, urbana, arquitetônica e da própria forma em si, da forma visual: o que finalmente tange aos domínios da arte e que nos interessa para discutir suas ressonâncias ao longo da história e sua disseminação como ideologia.

O termo Construtivismo foi cunhado por Vladimir Tatlin quando em 1913 expôs em Moscou estruturas de madeira e ferro suspensas no canto de uma parede. Tatlin havia visitado em Paris o atelier de Picasso, onde teria se impressionado com as colagens que vira no auge do período cubista (RICKEY, 2002:40). Após a I Guerra Mundial, Moscou já possuía linhas artísticas bastante distintas e bem definidas; com Tatlin, Rodchenko e El Lissitzky o construtivismo ou a arte não-figurativa deveria estar à serviço das massas, ser compreendido por todos e usar materiais e técnicas industriais (RICKEY, 2002:41). Tatlin possuía tanto prestígio após a Revolução Russa de 1917 que a ele foi encarregada a tarefa de projetar o Monumento à III Internacional.

Fig.1. Vladimir Tatlin (1885-1953) Fig.2. Relevo suspenso no canto, 1915

De outro lado, Malevitch via a arte não-figurativa, construtiva, cada vez mais atrelada à espiritualidade e ao campo da filosofia. Em seu Manifesto Suprematista de 1915, Malevitch lança as bases estéticas, teóricas e filosóficas que serviram como os postulados não-figurativos mais sólidos e impactantes da época. Sobre o suprematismo, também escreveu:

“O quadrado suprematista e as formas que dele se originam devem ser equiparados aos primeiros traços (sinais) do homem primitivo que, em suas combinações, representava não ornamentos, mas a sensação de ritmo. (...) Os Suprematistas desistiram, por sua livre e espontânea vontade, da representação objetiva da realidade que os cercava, para atingirem o ápice da verdadeira arte “desmascarada” e de lá poderem observar a vida sob o prisma do puro sentimento

artístico.”9

Fig.3: Kasimir Malevitch, 1878-1935 Fig.4: Quadrado branco sobre fundo branco, 1918.

Fig.5: Quadrado negro e quadrado

vermelho, 1915. Kasimir Malevitch.

      

9 MALEVITCH, Kasimir .”Suprematismo”. Publicado originalmente em The Non-Objective

A revolução artística que ocorria naquele momento se dava não pelo fato da descoberta das formas geométricas e de suas possibilidades compositivas, mas sim, por tornar consciente que esses elementos seriam uma nova base para se pensar a pintura e a arte como um todo a partir de novos postulados. Antes disso, a geometria já fazia parte do universo da arte, contudo, estava a serviço dos artesãos, na arte aplicada ou utilitária. O que não diminui sua relevância estética, lembrando a beleza dos padrões geométricos utilizados, por exemplo, na azulejaria islâmica, nos mosaicos milenares, nos vitrais das igrejas etc.

Nesse sentido, o Construtivismo russo do início do século XX desdobrou-se de maneira extremamente elaborada, tanto teórica quanto formalmente. O que havia sido iniciado por Cézanne com a fragmentação da natureza em cilindro, esfera e cone foi, pelos construtivistas, incrementado com teor revolucionário tanto no sentido ideológico quanto artístico. À utopia socialista se aliava o pensamento sobre a arte, a percepção e ordenação da forma.

A linguagem pictórica, até o final do século XIX bastante comprometida com a representação da natureza encontra, a partir do rompimento com este modelo de representação e nos discursos construtivistas a possibilidade de transcender a realidade existente na busca por uma visualidade que se desejava pura, universalmente acessível, inteligível e que transformasse a forma de apreciação das coisas do mundo.

O discurso construtivista acreditava que a ordenação formal e a educação visual poderiam transformar também a sociedade que seria então educada segundo novos preceitos formais e filosóficos considerados universais. “(...) tratava-se, afinal, de construir uma nova realidade, física e ideológica” (MORAIS, 2004:175). O ambiente no qual nascem essas novas propostas é extremamente agitado, pois fazia parte da preparação de grandes mudanças nos planos econômico e social de uma Rússia que deixava o czarismo e entrava na era industrial.  

Motivados também pela busca de autonomia para a arte e por uma alfabetização através da compreensão das formas geométricas, artistas russos num ambiente pré-Revolução de 1917 encontraram na geometria e na redução

dos elementos pictóricos um sistema de ordenação formal ao qual creditavam também a possibilidade de ordenação social.

A educação pela forma seria, para esses pioneiros, o início da construção das bases para uma nova sociedade, produtiva, justa e próspera a partir de uma nova relação com a arte.

Depois da experiência russa, interrompida pela tomada stalinista do poder político e pela burocracia do novo sistema, outras relevantes experiências no campo do estudo das formas deram continuidade ao trajeto construtivo. Logo, a vertente produtivista do construtivismo russo seria largamente difundida entre os alemães fundadores da Bauhaus, fortalecendo- se assim a ressonância dos princípios construtivos no contexto de produção capitalista.

Fig.6: Mont Saint Victoire, 1902- 04. Paul Cézanne.

A importância da abstração geométrica filiada às correntes construtivas para a formação de um corpus significativo do que se conhece hoje como “arte brasileira” poderia ser compreendido como elemento crucial para o desenvolvimento de um pensamento comprometido com a renovação da arte e da sociedade por meio da junção entre linguagem e técnica, entre a arte, as instituições e a política locais. Os anos 50 e 60 ficaram marcados como os anos de uma arte concreta que explorava as possibilidades das composições dadas pela geometria e pela crença na ordenação (ainda que formal) da sociedade brasileira. Uma geração de designers, pintores e arquitetos marcou o período com obras que dialogaram com essa linhagem artística abstrata.

É notável a rica e complexa produção artística que marca as décadas de 50 e 60 no Brasil com uma sensibilidade pictórica geométrica e essencialmente construtiva. Tal coincidência, de um período de nossa história em que as forças políticas estavam alinhadas a um pensamento estético comprometido com a idéia de progresso é uma das chaves para compreendermos o poder das utopias construtivas no Brasil e seus desdobramentos, mesmo depois de passado o período de maior fôlego do programa político desenvolvimentista.