Capítulo II: Três espaços culturais sob observação
1. Teatro Micaelense
1.3. Que nos dizem os documentos?
1.3.1. Várias artes no palco do Teatro Micaelense
A 2 junho de 1864, o TM apresentou um espetáculo pela primeira vez.
Interpretaram-se excertos das óperas Lucrezia Borgia, Marin Faliero, Semiramidade, Il trovatore e Attila192. Supõe-se que tenha sido um concerto
privado para um grupo restrito de pessoas, mais precisamente para o grupo de acionistas. Ao longo desse ano, foram realizados outros espetáculos. Tal como Maria Sousa cita, foi o espectáculo de 5 de Novembro de 1864 que marc[ou] a
abertura oficial do teatro à sociedade micaelense, embora a imprensa considere a estreia somente em Março de 1865193.
Durante as três décadas seguintes, por lá passaram várias companhias de canto, entre elas de zarzuela espanhola194, ópera italiana e ópera portuguesa.
Os espetáculos encontravam-se integrados num género de digressão, mais precisamente num circuito insular, que o obrigava a depender de outros teatros,
mais especificamente de importação de companhias, que se organizavam de acordo com as temporadas dos teatros italianos, espanhóis e nacionais, incluindo os madeirenses195, ou seja, o TM não era tido como destino único
naquela época. Muitas das digressões tinham origem na Madeira e em Lisboa principalmente, passando depois pelas ilhas de São Miguel, Terceira, Faial, Canárias, bem como o Brasil.
A presença do rei era um hábito nos teatros. Tal como era habitual no
teatro de S.João no Porto, o TM simulou por uma única vez, pelo menos do nosso conhecimento, a presença do monarca através da exposição do seu
192 Sousa, 2006: 19. 193 Idem: 19.
194“Representação teatral onde se alternam vários estilos: a declamação, o canto, a música, o
diálogo; e cujas origens remontam à sociedade espanhola do século XVII. A denominação zarzuela procede do nome de um pequeno palácio mandado erigir pelo cardeal Infante D.Fernando, irmão de Filipe IV, no Monte do Prado, nos arredores de Madrid. O dito palacete de La Zarzuela, local de residência temporária do Rei e da corte espanhola, era palco para a celebração de representações de diversos tipos (…) cuja característica comum era a alternância entre o canto e a declamação, baseadas em histórias de lendas e heróis da mitologia, em cenas épicas e de aventuras.” in http://www.edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/6300/zarzuela/
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retrato196, com a intenção de criar o mesmo tipo de ambiente que se fazia sentir
nos teatros nacionais. A celebração de datas importantes, como o aniversário dos reis e o aniversário do falecimento de Marquês de Pombal, bem como o 1.º de Dezembro, era frequente.
O Carnaval era uma das festividades da época, tendo os bailes iniciado, ainda no século XIX, uma tradição que ainda hoje se mantém197. Estes bailes
realizavam-se entre a época do Carnaval e da Páscoa, com maior adesão no fim-de-semana que antecedia o Carnaval e o próprio dia, bem como o sábado de Aleluia. Não eram sempre organizados pelo TM, cabendo por vezes, às companhias que atuavam, a preparação dos mesmos. Acontecia, também, serem privados a pagar os bailes todos de um só ano. Esta situação só ocorria quando o teatro não estava alugado a companhias198. Caso o público não tivesse
traje para os bailes, os mesmos eram facultados pelo TM através de
arrendamento de fatos carnavalescos199.
Também eram apresentados espetáculos de ginástica e de circo, bem como representações de canto e declamação de teatro. Funcionava o ano todo visto ser o único teatro que existia em São Miguel na altura. Récitas de beneficência, saraus com a Tuna Michaelense, festas escolares realizavam-se no palco do TM, com maior incidência na transição dos séculos XIX para XX.
Dominando a programação do Micaelense desde o seu início, a música apresentava uma variedade, mas seguindo as tendências de fora. O que se
passava no S.Carlos, em Lisboa, era aqui apreciado com frequência e o público estava bem informado em matéria musical.200 Em 1903, o TM recebeu Moyses
Bensaúde, barítono do Teatro de São Carlos.
Durante 65 anos foi palco de uma programação constante, em que o teatro e as récitas dramáticas foram preponderantes e a que a elite da sociedade
196 Idem: 124. 197 Idem: 125. 198 Idem. 199 Idem. 200 Dias, 2004: 58-59.
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da altura correspondia com entusiasmo, enchendo as salas. A música ocupou desde logo um importante lugar nas actividades do Teatro, desde os Natais e concertos por músicos amadores até à vinda de músicos líricos e a temporadas de ópera e zarzuela.201
Após o TM ter sido erguido no século XX, o cinema passou para primeiro plano, não deixando de parte o teatro. Diversas companhias de teatro portuguesas e grandes nomes do teatro nacional pisaram o palco do TM. A Companhia de Vasco Santana e a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro foram grandes sucessos na década de 50. Ambas estiveram por São Miguel diversas vezes, tendo a Companhia de Vasco Santana feito uma digressão pela ilha para que muitos pudessem assistir às peças e aos nomes do teatro
nacional202. Irene Cruz, Eunice Muñoz, Lia Gama, Armando Cortez e
companhias teatrais nacionais como a Companhia Teatro d’Arte de Lisboa e a Companhia Teatro do Campo Alegre também foram outros nomes que passaram pelo palco do TM. Um momento que marcou o TM foi aquando da representação da peça “Encoberto”, da autoria da escritora natural dos Açores, Natália Correia, em 1977, que afirmou o seguinte: «Não tenho palavras, mas só sentir, para vos
dizer a emoção com que vi despontar em palco micaelense este Encoberto, modelado pelas brumas da minha ilha».203
O teatro amador teve o seu papel de destaque no TM. A Academia Musical de Ponta Delgada e o Liceu Antero de Quental deram as primeiras representações com artistas amadores nos anos 1951 e 1952 respetivamente. As décadas de 50, 60 e 70 foram o ponto alto do teatro amador. Em 1995, praticamente 40 anos depois, subiu ao palco a última peça representada por amadores, neste caso, pela TRUNAC – Trupe da Universidade dos Açores, intitulada “O Avarento”, de Molière.
201 Silva, 2004: 213. 202 Dias, 2004: 53. 203 Idem.
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Voltando à sétima arte, desde cedo se tornou uma das maiores formas de
expressão mais encantatórias para o público do TM204. Datam de 1897 as
primeiras projeções de cinema no TM e de 1902, a estreia do primeiro cinematógrafo. No novo TM, o cinema passou a fazer parte do quotidiano da população. Nas décadas de 50 e 60, o público enchia a sala do TM para assistir ao cinema americano e nacional. Para além do encanto da sala escura e do
brilho todo concentrado no grande ecrã, com os grandes artistas e histórias empolgantes205, o TM transformava-se num espaço de convívio social. Grandes
nomes do cinema internacional chegavam a São Miguel, como Henry Fonda, Brigitte Bardot, Fred Astaire, Grace Kelly e Marilyn Monroe. Mas houve um nome que saltou dos ecrãs e veio à ilha de São Miguel. Em 1963, o ator John Wayne
não chegava no cavalo a que habituara o público, mas de barco, como convém numa ilha206. John Wayne esteve com António Santos Figueira, tendo visitado o
TM. Confessou-se espantado por haver um teatro tão bonito numa ilha tão
remota.207
Apesar da novidade, nem tudo poderia ser exibido. Durante a ditadura portuguesa, muitos filmes receberam o carimbo visado pela Comissão de
Censura208. Após o 25 de Abril, a situação alterou-se. Contudo, as televisões
começam a surgir nas casas, fazendo diminuir o público. A partir da década de 80, assiste-se novamente a um interesse pelo cinema, tendo o TM exibido filmes até ao final dos anos 90, praticamente antes das grandes obras de remodelação.
Pela análise documental realizada, a dança parece ser a arte que menos se apresentou no TM. Apesar disso, para além do Conservatório de Dança de Ponta Delgada que se exibiu nos anos 80 e 90, algumas outras companhias passaram pelo TM: Companhia de Dança de Milagres Paz, Companhia de Dança de Lisboa, Companhia de Dança “Ciudadde Sevilla”, Ballet do Exército Russo e Companhia de Dança de Olga Roriz.
204 Idem: 55. 205 Idem: 56. 206 Idem: 57. 207 Idem. 208 Idem.
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Como foi referido anteriormente, a música dominava a programação do TM. Com a sua reabertura na década de 50, a Academia Musical de Ponta Delgada reforça ainda mais a presença desta arte no palco do TM ao produzir espetáculos, trazendo para um deles a Banda das Forças Aéreas dos Estados Unidos. Foram produzidos vários festivais como o Festival de Música pelo Conjunto de Câmara de Nova Iorque, o Festival Gulbenkian de Música, não esquecendo vários concertos de música clássica. Mais para a década de 90, festas de homenagem de emigrantes e eventos universitários também passaram a ser realizados no TM.
Grandes nomes da rádio e da música portuguesa estiveram também presentes no Micaelense (…) entre os muitos artistas que aqui mostraram o seu talento contam-se Waldemar Bastos, José Medeiros, Júlio Pereira, o Duo Ouro Negro, Paulo de Carvalho, Carlos Alberto Moniz.209
Devido à recente crise financeira, a oferta do TM diminui, apresentando na sua agenda a exibição de filmes, maioritariamente, e espetáculos de variedades e de música. O último espetáculo no TM antes das obras de remodelação foi dado por Cesária Évora no ano 2003. No ano seguinte, José Carreras “inaugura” o TM.