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Nada necessita tanto de mudança, quantos os hábitos das outras pessoas.

Mark Twain.

A cannabis com o proibicionismo, deixou de ser um vegetal com imenso potencial econômico (têxtil, alimentício) para ser uma espécie de “erva daninha” social, evitada, detestada, incômoda, uma praga que deveria ser erradicada da cultura humana. Em pouco menos de um século, o cânhamo também trocou a condição de medicamento muito apreciado pelas ciências da saúde, para a condição de veneno, tóxico, e passou a figurar no rol dos piores vícios humanos. As colunas sociais, hora ou outra traziam a erva como tema de seus boletins opiniosos, expondo essa imagem maléfica da planta e sua nulidade para a cultura humana.

COLUNA CEARÁ HILARIANTE por HILÁRIO GASPAR

Beber, já disse alguém, beber não é verbo, é vício. Beber é vicio muito mais prejudicial que o fumar. Existem, aliás, muitos outros vícios piores. O uso vicioso de entorpecentes, por exemplo é um deles. A maconha, o ópio, a cocaína e a morfina são vícios medonhos. Tirando o primeiro desses entorpecentes, isto é, a maconha, os outros entorpecentes, têm, todavia, a sua utilidade275.

Mas o que é afinal o vício? Ou melhor, como ele foi construído como doença? Não do ponto de vista fisiológico, ligado à dependência ou à abstinência, mas sob o foco da historiografia da doença. Henrique Carneiro afirma que a doença do vício foi uma construção do século XX. Segundo ele, a concepção da embriaguez como vício pode ser datada de 1804, quando o médico escocês Thomas Trotter criou uma nova entidade para a explicação das doenças, as drogas; afirmando que o consumo de álcool regular seria “uma doença da mente”. Ainda no fim do século XVIII Benjamin Rush, nos Estados Unidos, classificou a masturbação e o alcoolismo como transtornos da vontade, promovendo campanha contra ambas as práticas. Ele cita ainda os exemplos na França, de Esquirol que qualificou a bebedeira como “monomania” e “insanidade moral com paralisia da vontade” e Moreau de Tours, que publicou um estudo sobre o haxixe em 1845, o que representaria um marco na disposição de fazer das drogas os dispositivos responsáveis pelas patogenias da mente. Carneiro explica ainda que esses estudos acompanharam o isolamento químico das moléculas das drogas puras ao longo do século (morfina, 1805; codeína, 1832; atropina, 1833; cafeína, 1860; heroína, 1874; mescalina, 1888) e que tal período assistiu a uma crescente intervenção do Estado no controle dos indivíduos e suas práticas. Orientando a “disciplinarização dos corpos, a medicalização das populações, recenseadas estatisticamente de acordo aos modelos epidemiológicos para os objetivos da eugenia social e racial”276.

As reportagens nos jornais sobre a maconha seguem essa tendência disciplinadora e, cumprindo o papel que assumiram de informadores da campanha proibicionista, os editorais apresentaram em seus enredos além dos pormenores estruturais do funcionamento dos aparelhos repressivos, aspectos das relações de poder que se desenvolveram entre as autoridades e os criminosos. Essas relações integravam tipos diferentes de sujeitos, porém, os maconheiros que apareciam nos noticiários eram comumente das “classes pobres e perigosas”, para lembrar Sidney Chaloub, que informou que essas classes pobres eram sempre tidas como classes perigosas pelas autoridades políticas brasileira na virada do século XIX

275 Gazeta de Notícias, junho de 1960. 276 Carneiro, 2002, p,3-4.

para o XX277. Quem compunha as classes pobres que fumavam maconha e apareciam nos jornais? Qual sua origem?

Recorremos mais uma vez ao antropólogo Gilberto Freyre, em cujos textos encontramos chaves para responder questionamentos dessa ordem. Em seus escritos sobre a sociedade patriarcal brasileira, a maconha aparece mais de uma vez, faz parte dos gêneros de gozo e evasão como o tabaco e a cachaça. Os hábitos de se entorpecer são ações de distinção social. A maconha estava na base dessa hierarquia torpe, em Sobrados e Mucambos ele afirma que: "o vício... de mascar tabaco, o da maconha, o da cachaça, foram, entre nós, vícios associados quase exclusivamente a gente de classe, de raça e de regiões 'inferiores'. Vícios de

escravos, de negros, de tabaréus”278.

Apesar do uso da erva ser verificado também nos grupos sociais mais abastados ao longo do século XX, não se pode dizer que tal hábito gozou de algum prestígio social na sociedade brasileira. A maconha sempre surgiu nos livros de história associada aos escravizados, aos índios, aos pobres. Nos jornais, quando deixou de ser produto agrícola, brotava sempre como uma imagem medonha ligadas à pobreza, à criminalidade e ao vício. Já as propagandas de cigarros eram normalmente glamourosas, charmosas e socialmente aceitas, tal hábito tivera importância social entre os senhores da classe rica, inclusive como já afirmamos, sendo considerado fator de distinção social. Gilberto Freyre reforçou esse ponto em pelo menos mais duas passagens, uma de O Nordeste em que afirma: “O vinho e o tabaco para os senhores; a maconha – plantada, nem sempre clandestinamente perto dos canaviais –

para os trabalhadores, para os negros; para a gente de cor”279, e novamente em Sobrados e

Mucambos explicando que mesmo os silvícolas utilizavam o fumo como uma forma de se

diferenciar socialmente do negro escravizado.

Podiam também os índios dar-se ao luxo de rivalizar com os senhores brancos no abuso aristocrático do fumo, hábito originário deles, ameríndios; e vedado em suas formas mais aristocráticas à maioria dos escravos durante as longas horas de trabalho. Mesmo porque o "fumo de negro" era a desprezível maconha, embora muitos fossem os escravos que à planta africana preferissem o tabaco sob a forma de rapé e mesmo de cachimbo280.

O sujeito ser pobre possuía um certo significado social já estigmatizado, ruim, porém ser pobre e negro tinha outro bem pior, Freyre insiste nesse contraste social conferido pelo uso de substâncias como o rapé e o fumo, as formas de usar e os produtos usados pela gente rica deveriam ser diferentes das formas e fumos dos brancos pobres, dos mulatos e dos pretos.

277 Chalhoub, 1996, p. 22. 278 FREYRE, 2006, p. 521. 279 FREYRE, 2004, p. 283. 280 FREYRE, 2006, p. 485.

o vício de mascar fumo em contraste com o aristocrático dos brancos, de tomar rapé. Nem todos os vícios dos negros foram adotados pelos mulatos e pelos brancos pobres como o da maconha. Vícios de indivíduos ou subgrupos sem desejo ou ânsia de ascensão social. Conformados com o status baixo.

Para finalizar esse breve diálogo com Gilberto Freyre e voltar para análise das últimas notícias compiladas, no próximo tópico sustentamos a ideia de que o hábito de fumar maconha, com todos os seus estigmas históricos (ser associado exclusivamente durante o período colonial e imperial aos negros e aos índios, e no republicano aos pobres, aos perigosos e aos criminosos) deve ser compreendido como um ato de resistência e de luta contra as opressões raciais e classistas, sobretudo como afirmação das tradições da cultura afro-brasileira e como marca da sua brava teima em abandonar elementos de suas memórias coletivas e dos costumes de seus antepassados. Fumar maconha constituiu uma arma do povo negro contra o sufocamento cultural do etnocentrismo europeu cotidianamente imposto pela elite brasileira. Nessa última passagem de Freyre, ao comentar a miscigenação e as relações sócio históricas do Brasil patriarcal, resume-se com precisão tal juízo.

...as tradições religiosas, como outras formas de cultura, ou de culturas negras, para cá transportadas, junto com a sombra das próprias árvores sagradas, com o cheiro das próprias plantas místicas – a maconha ou a diamba, por exemplo – é que vêm resistindo mais profundamente, no Brasil, à desafricanização. Muito mais que o sangue, a cor e a forma dos homens.281

O próximo e último tópico apresentará os apontamentos de jornais que mais ou menos modelariam os destinos que o proibicionismo da maconha tomaria. As notícias extraordinárias, as prisões, a ação da polícia, o aumento da repressão, a resistência dos maconheiros, as estratégias de sigilo dos traficantes, o constante aumento do volume financeiro desse comércio, o envolvimento de homens e mulheres nesse mercado, enfim, todos os elementos apresentados até aqui pelos jornais continuariam compondo a imagem perigosa da cannabis, uma erva de uso ancestral que assistiu na primeira metade século XX à criminalização e proibição de sua cultura.