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Esta classe trata, exclusivamente, dos procedimentos de cuidado formalizados na rotina institucional. Procedimento relativos aos cuidados físicos, à alimentação, à medicação. É a menor das quatro classes, representando 7,53% de todo o corpus. Os extratos que compõem essa classe se referem às respostas à pergunta aberta sobre a forma como os participantes cuidam dos pacientes.

As UCEs que caracterizam essa classe apresentam, de forma minuciosa, os procedimentos realizados durante todo o dia, o que revela uma visão do cuidado restrita ao ponto de vista técnico-operacional. Interessante observar que, ao falar da rotina, os entrevistados não se referem às atividades que tentaram desenvolver com os pacientes,

117 nem às relações afetivas que permeiam as relações na enfermaria.

Nesta classe foi possível testemunhar um cotidiano rígido, marcado pela necessidade de guiar, encaminhar, colocar no banho, levar para almoçar, dar medicação, dentre outros procedimentos (quase) mecânicos e automáticos. Esse cotidiano revela e reforça uma concepção acerca do paciente como o outro passivo, sem autonomia, que precisa ser monitorado a todo instante, como pode ser observado no trecho a seguir:

Depois eles são encaminhados para o café da manhã. A gente vai lá e acompanha porque que tem sempre uns mais agitados, outros não. Quando retornam do café a gente está começando o banho e a medicação. Eu, normalmente, conto eles de um por um e logo em seguida dou a medicação. Depois a gente pergunta quem quer ir pro banho. Tem colegas que coloca todo mundo pro banho. Literalmente colocam, porque tem alguns pacientes que não querem ir. As mulheres têm uma independência maior, mas os masculinos todos a gente tem que ajudar a esfregar. Depois a gente encaminha pro almoço, que tem horário. Sempre tem uns que querem almoçar, tem outros que enrolam. Aí a gente insiste para a pessoa comer. Depois do almoço a gente procura descansar um pouco. (discurso representacional).

Esse cotidiano maçante, repetitivo e marcado por uma lógica procedimental não permite ao paciente construir seus próprios hábitos e ritmos. Este cotidiano também é visto como repetitivo pelos técnicos de enfermagem, que se vêem obrigados a cumprir uma demorada lista de procedimentos que nunca se altera. O cumprimento instituído destes procedimentos, entretanto, de certa forma também “preserva” os técnicos de ter que inventar novas formas de lidar com o paciente e com suas próprias dificuldades.

Nas entrevistas percebe-se uma preocupação dos técnicos em tentar amenizar a rigidez da rotina de procedimentos, ressaltando alguns acontecimentos no dia a dia. Em vários momentos os técnicos ressaltam a liberdade que o paciente tem para escolher a hora de seu banho, a hora de almoçar, a hora de dormir e questionam a “robotização” imposta aos pacientes pela psiquiatria tradicional e pela dinâmica institucional. Ao mesmo tempo, no “moto-contínuo” cotidiano, os técnicos acabam repetindo e mantendo a “robotização” que tanto criticam. O medo, a descrença e o apelo à cronificação são trazidos à tona como justificativa para a manutenção da rotina institucionalizada. E mesmo quando enfatizam as “variações” na rotina cotidiana, tais “acontecimentos”

118 giram em torno da doença (consultas médicas, curativos, intercorrências), da agressividade (“um paciente gruda no outro e você separa”) e dos “vícios institucionais” (pedidos por cigarro e café).

Percebe-se que não há uma programação sistemática nem uma continuidade nas atividades extra-procedimentais que, todavia, são de cunho meramente “ocupacional”. Pelo discurso representacional, observa-se que não há uma preocupação com o desenvolvimento da autonomia ou o aprofundamento das interações entre os atores:

Aí, as duas horas a gente procura ligar a televisão, o radio, às vezes procura dançar um pouco, pra fazer um ambiente mais tranqüilo. Outra hora eles querem conversar, não deixa a gente assistir televisão. Alguns querem que a gente saia junto com eles, pra sentar lá fora. Aí a gente fica lá escutando eles, leva pra algum lugar, às vezes para fazer uma caminhada lá para cima quando não está chovendo. As atividades que eu faço aqui, a maioria mesmo e só caminhada. E não são todos que topam.(S1,homem, com experiência anterior em saúde mental)

Foi citada por alguns entrevistados a preocupação em cumprimentar os pacientes quando da chegada no plantão e em despedir na saída do mesmo, dizendo quando voltarão. A referência a essa prática foi feita no sentido de ressaltar o cuidado com o espaço privado de moradia dos pacientes. Essa reflexão sobre o espaço privado e o respeito à individualidade, apesar de ser relatada pela maioria dos técnicos, fica a cargo de cada um isoladamente, não sendo um tema compartilhado e trabalhado no âmbito da equipe.

No momento inicial das entrevistas, ao se referirem às novas práticas em saúde mental os técnicos de enfermagem ressaltaram, dentre outros elementos, o respeito à individualidade, o incentivo à autonomia, mas também o carinho, o acolhimento e o amor, evidenciando uma dimensão afetiva na caracterização do cuidado. Essa representação do cuidado foi também verificada por Rodrigues, Lima e Roncalli (2008), em pesquisa realizada junto a 90 profissionais do PSF na cidade de Natal. Entretanto, no estudo citado os próprios profissionais pesquisados apontaram uma dissociação entre o dizer e o fazer, ou seja, uma distância entre o que se entende por cuidado e o que efetivamente é feito no âmbito do trabalho com a comunidade. A afetividade presente na representação do cuidado não se reflete na prática.

A referência a este estudo de Rodrigues, Lima e Roncalli (2008) nos parece interessante por mostrar que, em vários contextos, ainda há uma dissonância entre o que

119 se diz, o que se pensa sobre o processo de reabilitação, e o que realmente consegue se efetivar na prática cotidiana dos serviços. No caso de nossos entrevistados, nada do que citaram como características das novas práticas, relativas à segunda questão de evocação, apareceu quando da descrição concreta de seu dia de trabalho.

Ao avaliar a ênfase nas atividades procedimentais, não podemos deixar de considerar a formação dos nossos entrevistados. Como técnicos de enfermagem, supomos que a formação destes profissionais ainda foi baseada no modelo biomédico, voltada prioritariamente para os cuidados corporais em detrimento de ações que visem os aspectos mais relacionais, ligados à saúde mental. Como não houve nenhum tipo de formação continuada voltada para a reabilitação psicossocial prevaleceu a formação biomédica. Vale relembrar ainda que metade dos entrevistados não tinha experiência anterior em saúde mental.

Classe 2 - Relações afetivas: a descoberta e o reconhecimento do outro

Por meio desta classe, testemunha-se um comprometimento dos entrevistados com o bem estar dos pacientes e uma preocupação constante com o destino dos mesmos. São enfatizados os aspectos afetivos e surpreendentes que permeiam as relações cotidianas. A descoberta das capacidades, habilidades e afetividade dos pacientes, abre espaço para o investimento em novas práticas. São temas desta classe: o investimento na criação de atividades terapêuticas, a proximidade afetiva entre técnicos e pacientes, e as conseqüências dessas aproximações.

O investimento em atividades terapêuticas: a primeira ameaça

Essa classe apresenta algumas práticas cotidianas voltadas para o incentivo à expressão e autonomia dos pacientes. É possível perceber certo reconhecimento positivo das habilidades dos pacientes, da sua capacidade de criar, de produzir obras de arte e da inteligência destes, por exemplo, em fazer uso de sua própria doença para obter um benefício secundário. Este reconhecimento abalou, de certa forma, a idéia pré- estabelecida de que os pacientes são incapazes e desinteressados, revelando que o que antes era considerado impossível passou a ser algo palpável.

Alguns pacientes contaram, por alguns meses, com acompanhantes terapêuticos, com quem realizaram alguns trabalhos artesanais. A possibilidade de realização de um trabalho artesanal pelos pacientes foi testemunhada com surpresa pelos técnicos. Uma surpresa que os levou a considerar tais atividades como um incentivo à melhoria da

120 auto-estima e uma possibilidade a mais de reinserção social, como pode ser observado a seguir:

Outro dia cheguei na residência e vi uma caixinha linda perto da cama da Maria. Ela está fazendo um trabalho manual junto com a terapeuta. Eu nunca tinha visto a Maria se dispor, ficar sentada num lugar e fazer alguma coisa. Mas a terapeuta falou, incentivou, resolveu tomar uma atitude e hoje ela se interessa em fazer o trabalho. Isso para os pacientes é ótimo, porque eles começam a pensar: ‘eu posso!’ E quem sabe não é uma nova chance que se abre para sair daqui. (S5, mulher, com experiência anterior em saúde mental)

Tal reconhecimento moveu os entrevistados no sentido de criar pequenas atividades no cotidiano da enfermaria que visavam incentivar o desenvolvimento de possíveis habilidades: atividades de pintura, desenho, assistir filmes e atividades ligadas ao cuidado feminino, como por exemplo, depilação e tratamento de cabelo. Houve também uma reflexão, ainda que dispersa, por parte dos técnicos sobre a necessidade de orientar os pacientes no desenvolvimento de sua autonomia.

Tentar criar atividades nos parece ter também outra origem. No encontro de formação com a equipe, citado quando apresentamos o contexto da enfermaria, foram apresentadas experiências de atividades, oficinas e projetos realizados com pacientes psiquiátricos em outras localidades e que obtiveram um bom resultado na reabilitação dos mesmos. O conhecimento dessas experiências parece ter alimentado a necessidade, já existente, de superar o ócio vivido pelos dois grupos no cotidiano da enfermaria. O encontro de formação também veio confirmar e sustentar a possibilidade de investir nas capacidades dos pacientes, que começavam a ser reconhecidas pelos técnicos. Os técnicos falaram em “desperdício de capacidades” ao se referirem a alguns pacientes naquele ambiente da enfermaria, revelando uma crença de que se podia desenvolver algo com aquelas pessoas.

Ao lado, porém, do otimismo e da afetividade presentes nas relações interpessoais, as atividades realizadas com os pacientes foram perpassadas por inúmeras dificuldades e frustrações das expectativas dos técnicos. Muitos pacientes não conseguiam se concentrar nas atividades nem dar continuidade às tarefas propostas, o que minou a motivação dos técnicos para dar continuidade nas tentativas de construir um ambiente mais criativo e reabilitador.

Aqui eu já tentei fazer de tudo um pouco. Eu não sou muito chameguenta, mas costumo tentar fazer o máximo, só que é complicado. Quando eu entrei aqui, a

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gente trazia DVD, assistia um filme e eu tentei fazer varias atividades de arte. A pipoca permaneceu, mas o DVD e as atividades eu desisti porque a maioria não se concentra. (S6, mulher, sem experiência anterior em saúde mental)

Tais dificuldades, inerentes a todo processo de reabilitação psicossocial, no contexto da enfermaria não foram superadas em função de alguns motivos, dos quais destacamos inicialmente dois: a falta de um espaço de supervisão e a falta de uma equipe interdisciplinar que não permitiu a superação do modelo biomédico.

A falta de um espaço de escuta para a equipe não permitiu aos técnicos uma visão mais crítica e aprofundada acerca das atividades propostas. Algumas questões básicas para a proposição de atividades não foram pensadas, em virtude da não formação continuada e do não compartilhamento da responsabilidade com outros profissionais que possibilitasse uma escuta mais terapêutica aos pacientes.

Uma primeira questão que, em nossa opinião, deve sempre ser pensada é a adequação das atividades e a quê elas estão servindo. Sempre cabe nos perguntarmos a partir do desejo de quem as atividades são pensadas. É o desejo/necessidade do paciente ou do técnico que está em jogo? Consideramos como ponto fundamental o questionamento da importância e da pertinência das atividades para o desenvolvimento da autonomia de cada um dos pacientes. O trecho de discurso representacional relatado a seguir demonstra essa não reflexão, ainda que revele o desejo, bem intencionado, de melhorar a aparência e o auto-cuidado dos pacientes:

Esses dias eu falei com a Maria: ‘quero fazer um tratamento no seu cabelo’. Nossa, ela ficou tão empolgada! Deixou mexer no cabelo dela, alisar ele todinho. Ficou feliz da vida, com o cabelo liso e grande. Mas depois eu não entendi, ela amarrou o cabelo e não deixa ninguém mais ver. (S2, mulher, sem experiência anterior em saúde mental)

Saraceno (2001) ao definir a Reabilitação Psicossocial como uma necessidade ética e não somente como uma tecnologia para tirar um sujeito do estado de desabilidade para habilidade, traz uma importante reflexão sobre as atividades realizadas no âmbito dos serviços de saúde mental. Para ele, o foco não pode ser jamais a atividade em si mesma, mas sim seu potencial de promover a construção do poder de contratualidade dos sujeitos nos três cenários por ele definidos como essenciais à reabilitação (casa, rede social e trabalho). Para ele,

...discutir a reabilitação não é discutir teatro, não é discutir a rádio TAM TAM de Santos, esse é o início de uma grande reabilitação. Através da rádio se

122 constrói um pedaço que é apenas um fragmento do exercício da cidadania. Isso vale para mil atividades. Tecnologia de reabilitação não vale para nada. Aí começa, aí termina (Saraceno, 2001, p.16).

Essa é uma discussão que não foi feita no âmbito da enfermaria. As atividades foram priorizadas enquanto “tecnologias do fazer e do habilitar”, sem um real vislumbre de possibilidade de construir o poder de contratualidade e a inserção social, conceito, aliás, utilizado de forma pouco clara no contexto da enfermaria.

Outra questão importante é o formato das atividades e o ritmo e concentração que cada paciente dispõe para a realização da mesma. O tempo de cada paciente é único e precisa ser compreendido para que as atividades não se tornem sem sentido ou cansativas. O nível de dificuldade das atividades também precisa ser adequado a cada um, para que os participantes não sejam desestimulados, seja pela facilidade, seja pela dificuldade. Tais questões, entretanto, só podem ser trabalhadas de forma mais efetiva se houver um trabalho de equipe, onde os técnicos compartilhem diferentes pontos de vista sobre as atividades e se sintam apoiados e confiantes para que possam reconhecer as suas próprias limitações e necessidades de adaptação das propostas iniciais.

No caso da enfermaria, em função das dificuldades objetivas e subjetivas, em função da falta de um espaço de apoio e troca de experiências com outros profissionais, a avaliação das atividades acabou sendo prejudicada, resultando no desestímulo para sua continuidade. Houve uma desistência em propor novas atividades o que foi justificado, única e exclusivamente, pelo alto grau de comprometimento e falta de concentração dos pacientes. Ou seja, em face das dificuldades na reabilitação, recorreu-se à cronificação para justificar o fracasso das atividades. Diante da dificuldade do novo, recorre-se às antigas representações.

Entendemos que o recurso à cronificação também serviu para preservar a auto- imagem dos técnicos, bastante desgastada em virtude do abandono institucional vivido pelos mesmos. No cotidiano estes técnicos não contavam com a presença de outros profissionais em que pudessem se apoiar e seu trabalho não era bem visto pelo restante da instituição, ambivalente no que dizia respeito à existência da enfermaria. Diante do exposto, concluímos que reconhecer as próprias limitações seria uma grave ameaça à identidade e competência profissional destes técnicos, já fragilizada. A identidade e a competência precisavam ser defendidas para que fosse possível continuar trabalhando, com um mínimo de motivação, naquele contexto. Neste sentido, foi feita uma defesa que desresponsabilizava os técnicos e empurrava o fracasso das atividades para o outro,

123 neste caso, o grupo de pacientes cronificados, irrecuperáveis. Se reconhecer as capacidades dos pacientes ameaçava a identidade profissional, restou a estes técnicos retomar suas velhas representações sociais, que associam a loucura à incapacidade, inabilidade e impossibilidade de recuperação.

Em nossa revisão de literatura ficou evidente que esse momento de construção e experimentação de novas práticas é vivido com insegurança por parte de muitos profissionais, que têm diversas dificuldades na criação e realização de atividades inovadoras com os usuários dos serviços. Percebe-se assim, um retorno às representações sociais tradicionais da loucura, que têm implicações tanto na realização das atividades, quanto nas justificativas de suas ações.

Os estudos de Antunes e Queiroz (2007) e Leão e Barros (2008) realizados com profissionais de CAPS, apontam para os riscos dos serviços substitutivos adotarem pressupostos manicomiais, ressaltando a necessidade de investimentos no novo modelo, em especial no que tange aos recursos humanos. Os profissionais que fizeram parte dos estudos consideram o trabalho interdisciplinar como única forma de conseguir resultados efetivos na desospitalização proposta pela Reforma Psiquiátrica, além de reconhecerem a importância do envolvimento afetivo, social e comunitário. Entretanto, nos dois estudos ficou evidente o despreparo dos profissionais para o trabalho em saúde mental, para o trabalho em equipe, bem como a insuficiência do número e da diversidade de profissionais no campo. Testemunhou-se, também, em função destas limitações, inúmeras dificuldades de implementação desse envolvimento na prática cotidiana, ainda impregnada pelo modelo médico, onde a principal forma de tratamento é via medicação. De uma forma geral, verificou-se uma insegurança na proposição de intervenções não médicas, traduzindo-se em uma relação de subordinação à consulta psiquiátrica. Nos dois estudos ficou evidente a permanência de representações sociais da loucura associadas à cronificação (incapacidade e improdutividade) e à desvalorização do poder contratual dos usuários, que têm implicações nas atividades propostas pelos profissionais e nas justificativas dos fracassos de algumas iniciativas. Foi verificada uma forte tendência a caracterizar a doença mental a partir de uma base orgânica, embora a dimensão emocional tenha sido citada. Os achados dessas duas pesquisas corroboram a situação vivenciada na enfermaria.

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Proximidade afetiva: a segunda ameaça

Outro tema característico desta classe é o reconhecimento da possibilidade de estabelecer relações afetivas com os pacientes. A afetividade construída entre técnicos e pacientes se expressa de várias formas: nas surpresas do dia-a-dia, na preocupação com o destino incerto dos pacientes, na forma respeitosa com que alguns técnicos tentam preservar a privacidade dos pacientes em seu, ainda que inadequado, espaço de moradia e em pequenos gestos de carinho entre pacientes e técnicos.

Nesta classe são apresentadas algumas experiências que evidenciam as surpresas vividas no dia a dia, por meio das quais novos elementos de representação vêm compor o campo representacional relativo à loucura/doença mental. Novos elementos que são acolhidos pelo sistema periférico das representações, provocando algumas instabilidades nesse sistema.

Um dos relatos contidos nessa classe é justamente uma situação em que uma paciente percebeu a tristeza de uma técnica de enfermagem e se ofereceu para consolá- la:

...apesar de todas as dificuldades, aqui a gente vive umas coisas interessantes. Esses dias eu cheguei e não estava legal. A Walkíria percebeu, encostou em mim e falou assim: ‘deixa eu fazer carinho em você?’. Caramba! Isso foi tudo de bom, ela sentiu o que eu estava sentindo e se preocupou. Isso me fez muito bem. Tem umas pessoas aqui que me comovem mesmo! (S6, mulher, sem experiência anterior em saúde mental)

Por este exemplo, fica visível a “boa surpresa” dos entrevistados quando da descoberta dos pacientes como pessoas sensíveis, que se apegam uns aos outros, que têm necessidade de afeto e companhia. A surpresa também é em função da constatação de que os pacientes, aparentemente distantes da realidade, têm capacidade para perceber o estado em que outras pessoas próximas se encontram.

Podemos supor que um dos motivos das surpresas dos entrevistados diante das manifestações de afeto por parte dos pacientes seja justamente o contraste dessas manifestações com a pobreza relacional provocada pela longa história de institucionalização vivida por esses atores e que ainda perdura dentro da enfermaria. A precária privacidade aliada ao rompimento com as relações familiares e demais relações sociais levaram a uma perda considerável na historicidade dos pacientes e de sua identidade social. A pobreza de estímulos e atividades, bem como a pobreza de instrumentos e a rígida rotina diária, não favoreceram, até aquele momento, uma

125 transformação do ambiente e uma mediação mais eficaz entre as pessoas. Apesar dos esforços dos técnicos e do incômodo por eles vivido, a exclusão social e simbólica ainda era bastante presente, haja vista não existir, concretamente, uma possibilidade de saída definitiva da instituição ou mesmo algum planejamento para que isso acontecesse. No momento em que foi realizada esta pesquisa não havia sequer permissão para saídas esporádicas para atividades ou passeios fora da instituição. A possibilidade de saída definitiva era somente uma promessa incerta e longínqua e, talvez por isso mesmo, temida por todos.

Assim, todos esses elementos que faziam parte do cotidiano da enfermaria conferiam uma qualidade especial ao tempo vivido no serviço, configurando, como diria Moffatt (1984, p.41) “um tempo fora da história, fora da vida”. Esse “tempo fora da vida”, parafraseando o autor, conferia aos moradores da enfermaria uma semelhança com náufragos solitários que chegaram a uma ilha deserta. Quando freqüentávamos essa

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