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Ver: caminho para uma estética não normativa leitura crítica da obra de

Existe uma grande dificuldade em refletir sobre os aspectos livres do design, ou seja, sobre os aspectos que não são contingentes, ou necessários; que fazem parte da linguagem do objeto, mas que são ignorados no enfrentamento da tarefa da crítica em design. O desafio aqui colocado é o de exercer o juízo reflexionante, quando se trata de design.

A leitura da obra de arte, de qualquer modalidade, é um ato proativo em que as qualidades racionais e sensíveis do fruidor, “sem que haja sobreposição de umas em relação às outras”, são convocadas a passear por um labirinto que tem diversos percursos possíveis e que vão se alterando conforme o caminhar. Os mesmos fatos não surtem os mesmos efeitos, e nem na própria pessoa se repetem. É o “infinito estético” descrito por Valéry.

Gadamer aponta para a reconstrução da obra pelo olhar. Ressalta que quem vê apenas a narrativa não viu nada da obra. É preciso construí-la.

“[...] Este é o espaço livre que a palavra poética deixa nesse caso e que nós preenchemos, seguindo a evocação lingüística do narrador. É semelhante nas artes plásticas. Trata-se de um ato sintético. Precisamos unir, reunir muita coisa. Um quadro lê-se, como se costuma dizer em alemão, como se lê uma escrita. Começa-se a decifrar um quadro como um texto. [...] Trata-se sempre de uma reflexão, de uma elaboração mental, quer eu me ocupe de figuras tradicionais da arte de até então, quer eu seja requisitado pela criação moderna. A tarefa de construção do jogo reflexivo está como exigência na obra como tal. (GADAMER, 1977: P. 45)

No percurso de olhar criticamente, a obra de arte é recriada. A crítica consiste, no caso do design, em um “projetar às avessas”. Partir de sensações facultadas pelo arranjo dos materiais e fazer o caminho de volta passando por intenções e

contingências, apreciando e avaliando, em uma primeira instância, o partido plástico que, no dizer de Lucio Costa, consiste na “escolha e fixação do sentido geral a prevalecer na disposição dos pontos, das linhas, dos planos, dos volumes ou das cores” (COSTA, 1995), ou seja, a estratégia artística a ser adotada.

Greenberg afirma que o gosto movimenta os afetos13 – gosto ou não gosto. (GREENBERG, 2002).

Na relação estética são trazidas à tona coisas conhecidas, que favorecem e promovem interligações entre o racional e o emocional do sujeito de maneiras novas. Nesse momento, a mágica se faz. A tensão entre o racional e o emocional é quebrada. “Você foi capaz de deixar que uma “coisa” – um objeto de arte – entrasse em sua vida e fizesse parte de você. Suas habilidades racionais e emocionais transformaram aquela “coisa” – a obra de arte – de modo que ela é sua num sentido único e especial” (FELDMAN, 1970: 364)

A capacidade analítica e crítica, como já foi dito, é adquirida, cultivada e se refina com a prática. O olho educado é fruto de investimento constante. Neste sentido, Gadamer afirma que “é preciso aprender que se tem inicialmente que soletrar cada obra de arte, depois aprender a ler e só depois começa-se a falar” (GADAMER, 1977: 73)

A poesia é uma forma de transformação da experiência empírica, e Artigas assinala: “a arte (...) é uma das formas concretas e necessárias da ação do homem na criação de uma natureza propriamente humana” (ARTIGAS, 1981: 46), como humana é a prerrogativa de transformar e se transformar – como afirma Shakespeare, “somos feitos da matéria dos sonhos” (“A Tempestade”, Ato IV, cena I).

13 “O termo afectividade é utilizado para designar a susceptibilidade que o ser humano experimenta perante determinadas alterações que acontecem no mundo exterior ou em si próprio. Falar de afetos é falar da relação.

A relação implica uma troca, em que se dá e se recebe, o que envolve sempre modificação dos elementos envolvidos. Nestas relações somos afetados pelos outros e afetamo-los. Os afetos que se estabelecem constroem a matriz da nossa vida pessoal e podem exprimir-se pelo amor mas também pelo ódio. A nossa sobrevivência psicológica funda-se nas relações interpessoais” (PAIS, 2010) Disponível em: www.filosofia.com.pt/trabalhos/emo_afectos. ppt

Esta “leitura” ou “interpretação” da experiência, que constitui poesia, transita nos diversos meios materiais. Uma leitura particular, carregada de imaginação, que, ao final, se universaliza. “Ora, um sentido se desenha na própria carne do objeto estético, [...] um signo nos é feito, o qual nos remete a si mesmo: para significar, o objeto ilimita-se num mundo singular, e esse mundo é o que ele nos dá a sentir.” (DUFRENNE, 2004: 25)

Usando da imaginação, podemos transitar na experiência de modo a transportar os componentes de um contexto para outro, de formas novas. Gadamer nos auxilia na compreensão deste conceito, valendo-se de Aristóteles:

“Que uma famosa citação da Poética de Aristóteles confirme o que digo: “A poesia é mais filosófica que a historiografia”. Enquanto a historiografia narra somente como aconteceu, a poesia conta-nos como sempre pode acontecer. Ela ensina-nos a ver o geral no fazer e no sofrimento humano. O geral é, porém, manifestamente a tarefa da filosofia e assim a arte, porque se refere ao geral, é mais filosófica do que a história. Este é pelo menos um primeiro aceno orientador que a herança antiga nos dá. [...]

A beleza, por mais inesperadamente que se possa apresentar, é como uma fiança de que com toda a desordem do real, com todas as imperfeições, maldades, equívocos [...], contudo o verdadeiro não jaz inalcançável, à distância, mas está ao nosso alcance. É função ontológica do belo cobrir o abismo entre o ideal e o real.” (GADAMER, 1977: 28)

Como mencionado ao tratarmos de autonomia, o sujeito autônomo é aquele dotado de independência e identidade, ou seja, “presente em si”, e a obra autônoma é aquela dotada de coerência e “elaborada rigorosamente em si”. Assim, temos a homologia entre o sujeito como totalidade e a obra como totalidade.

Refletindo sobre o processo de leitura crítica de uma obra de arte, lembramos as palavras de Giulio Carlo Argan: o crítico italiano comenta que o significado, na poesia, está na orquestração de todos os seus pormenores: estrutura, dimensão, cores, luz etc. A poesia não é apenas uma “tradução métrica de um conteúdo que poderia igualmente ser comunicado em prosa”; a escolha de cada elemento poético (silabas, palavras, pontuação) determina o resultado final. Assim também se passa no âmbito das artes visuais, e nós trazemos para o design. Então, a leitura não deve considerar a obra como uma “representação de algo (uma figura, um fato, uma

ação)”, o que a torna esquemática, mas como fenômeno, “em sua integridade de objeto”. Em outras palavras, a obra deve ser considerada como sistema.

“É preciso abordar a obra de um ponto de vista rigorosamente fenomenológico. Num fenômeno, todos os fatos particulares que o constituem possuem um significado; nenhum deles pode ser acrescentado ou esquecido.” (ARGAN, 1999: 17)

Outra questão importante pontuada por Argan é a multiplicidade de significados de cada elemento da obra de arte, sua polissemia, fazendo dela fonte de muitas possibilidades de interpretação.

Trata-se de um caminho que se mostra diferente a cada vez que é percorrido, no sentido de que é um caminho não normativo, mas apoiado nas características colhidas da relação vivida com a obra, relação esta que se renova a cada contato.