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O conhecimento grego a respeito da história e cultura do Antigo Oriente Próximo era muitas vezes parcial e distorcido. Alguns autores, no entanto, eram mais cuidadosos do que outros, como no caso de Heródoto209. Ele relatou um

ataque assírio na fronteira do Egito conduzido pelo rei Senaqueribe:

“Anísis teve por sucessor um sacerdote de Vulcano chamado Setos. Esse governante nenhuma consideração teve para com os guerreiros, tratando-os com inteiro desprezo e chegando ao extremo de privá-los dos doze alqueires de terra que os reis seus antecessores haviam dado a cada um como prêmio. Por isso, quando Senaqueribe, rei dos Árabes e dos Assírios, veio atacar o Egito com um grande exército, os guerreiros negaram-se a lutar em defesa da pátria. Vendo-se em tão difícil situação, Setos dirigiu-se ao templo, e ali, diante da estátua do deus, pôs-se a lamuriar pela sorte funesta que parecia aguardá-lo; e assim deplorando suas desgraças, adormeceu. Em sonhos, julgou ver o deus encorajando-o e assegurando-lhe que, se marchasse ao encontro dos Árabes, a sorte estaria do seu lado, pois ele próprio, o deus, lhe enviaria socorros. Cheio de confiança na visão, Setos reuniu todas as pessoas de boa vontade e dispostas a segui-lo, e foi acampar em Pelusa, ponto-chave do Egito. Seu exército era composto exclusivamente de negociantes, artífices e vivandeiras. Nenhum guerreiro o acompanhava. Logo que essas tropas improvisadas chegaram à cidade, espantosa multidão de ratos do campo espalhou-se pelo acampamento inimigo, pondo-se a roer os arneses, os arcos e as correias que serviam para manejar os escudos, de maneira que, no dia seguinte, os Árabes estavam sem armas, e assim lutando, foram fragorosamente derrotados. Vê-se ainda hoje, no templo de Vulcano, uma estátua de pedra representando aquele rei, com esta inscrição: ‘Quem quer que sejas, aprende, vendo-me, a respeitar os deuses’” (2.141)210

.

A partir da leitura dos parágrafos anteriores dessa passagem, Heródoto teria preservado a sucessão correta do trono egípcio, Sabacos (“Shabaka”, 2.137-139) antecedendo Setos (provável corrupção de Shebitku)211. Setos é chamado de sacerdote no relato, pois, de acordo com a concepção político-religiosa egípcia, um rei egípcio não poderia reinar sobre o Egito se não tivesse conhecimento das coisas sagradas. Os faraós eram escolhidos entre os sacerdotes e os guerreiros, as duas classes de maior prestígio. Quando um guerreiro era escolhido como rei, admitiam- no imediatamente na ordem dos sacerdotes212.

De acordo com a passagem, Setos, diferentemente dos seus antecessores – que recompensavam os guerreiros com um quinhão de terra –, os teria privado

209 GRABBE, 2003, p. 38. 210 HERÓDOTO, 2006, p. 201-202. 211

GRABBE, op. cit., p. 135.

dessa recompensa. Por essa razão, quando Senaqueribe, rei dos árabes e dos assírios213, marchou contra o Egito, os guerreiros egípcios abandonaram Setos. Este

foi lamuriar no templo do deus Vulcano e teve um sonho, no qual a divindade o assegurou a vitória. Despertando, o faraó reuniu pessoas comuns para compor seu exército214. As tropas de Setos acamparam em Pelusa (Pelúsio), no extremo

noroeste do Delta do Nilo, na costa mediterrânea. Uma multidão de ratos roeu os arneses da armadura, os arcos e as correias dos escudos assírios. Assim, o exército do rei Senaqueribe lutou sem armas e foi derrotado. Setos foi, então, honrado com a confecção de uma estátua colocada no templo de Vulcano, com uma inscrição que atestava sua reverência aos deuses.

Durante muito tempo, essa passagem foi interpretada pelos pesquisadores de duas formas. A primeira delas utilizou esse conto para explicar a destruição do exército assírio pelo anjo de YHWH, conforme II Reis 19:35 (// Is 37:36), interpretando que uma epidemia transmitida por ratos teria sido responsável pela aniquilação das tropas assírias. De acordo com essa interpretação, a história teria um núcleo de veracidade histórica, também refletido na Bíblia, de que o exército assírio sofreu algum tipo de derrota ou contratempo nessa campanha215. A segunda

interpretação defendeu que essa história é equivocada, pois não foi Senaqueribe, mas seu filho, Esar-Hadom, quem atacou o Egito e sofreu uma derrota em 674 a.C, como o relatado nas Crônicas Babilônicas. Dessa forma, a memória coletiva egípcia da derrota de Esar-Hadom teria dado origem a história de Heródoto216.

Em um artigo recente, Lester L. Grabbe concluiu que essa passagem seria uma fonte útil para a reconstituição da terceira campanha do rei Senaqueribe. O primeiro aspecto discutido por Grabbe é a origem do relato de Heródoto. De acordo com o autor, a história parece ser independente das demais narrativas existentes (bíblicas e assírias) sobre a campanha. Heródoto atribuiu a origem dessa história aos sacerdotes egípcios. Frequentemente tem-se argumentado que os ratos na história de Heródoto parecem sugerir a devastação do exército assírio por meio de uma praga transmitida pelos roedores. Segundo Grabbe, essa interpretação não

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Nos dias de Heródoto (séc. V a.E.C.), grande parte das terras da Assíria haviam sido reassentadas pelos árabes, sendo consideradas, portanto, território árabe. CLOVER, 1995, p. 75-77. 214 A sociedade egípcia dividia-se em três classes: os sacerdotes, a classe de maior prestígio; os guerreiros, que lutavam e cultivavam a terra; e os operários, que exerciam as funções mais baixas. HERÓDOTO, 2006, p. 742.

215 GRABBE, 2003, p. 135.

seria problemática em si, uma vez que os ratos eram associados a pragas na Antiguidade (ISm 6:1-18). O autor, contudo, questiona se essa era a forma como Heródoto planejou que sua história fosse compreendida. O autor grego não diz que os ratos causaram a morte dos soldados, mas que eles os impossibilitaram de lutar com suas armas. Não há nenhum indício no texto grego de que os roedores eram portadores de alguma praga. Isso comprovaria que a história de Heródoto não teria se desenvolvido a partir da história bíblica. Pelo contrário, somente ao comparar a narrativa bíblica ao texto grego que os estudiosos concluíram que a referência ao anjo de YHWH na Bíblia era uma praga transmitida pelos ratos na história de Heródoto. Dessa forma, Grabbe argumentou que o texto bíblico e o texto grego somente concordam que o exército do rei Senaqueribe foi derrotado, no entanto divergem na forma como a derrota ocorreu217.

Grabbe concluiu que a história de Heródoto seria uma versão de origem egípcia independente do relato bíblico da campanha do rei Senaqueribe e que apresentaria um núcleo de veracidade histórica218. De forma semelhante, Laato e

Mayer defenderam que a história de Heródoto representaria uma testemunha histórica da expedição de 701 a.E.C. Segundo Mayer, essa história teria se originado de uma tradição local que confundiu a batalha do rei Senaqueribe com as tropas egípcias na cidade de Elteque com uma incursão no Egito219.

217

GRABBE, 2003, p. 135-138. 218

Ibid., p. 138-139.

7 FONTES BÍBLICAS – AS NARRATIVAS DA CAMPANHA DO REI