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CAPÍTULO 3 – ETNOTERMINOLOGIA E TRADUÇÃO ETNOGRÁFICA:

3.2 VERSÃO: SE TRADUZIR PARA O OUTRO

Traduzir um dicionário significa também traduzir sua forma, seu gênero textual e reproduzir em francês um dicionário descritivo do folclore brasileiro para um público francês.

66 Como já foi mencionado anteriormente, não se trata aqui de adaptar a obra. Existe uma cultura brasileira que deve ser explicada a outra cultura, outra língua, e que muitas vezes, devido à especificidade dos termos característicos da cultura doméstica como, “cerrado” e “fazenda” e o vocabulário folclórico, “bumba-meu-boi” e “pajé”, por exemplo, não têm uma tradução de substituição ou correspondente. Nesse caso, a tradução aqui realizada foi de uma tradução-explicação/tradução-definição, ou seja, a tradução etnográfica, assunto já discutido, pois há uma realidade brasileira, valores locais, que precisa ser explicitada ao público-leitor estrangeiro. Trata-se então de uma tradução “estrangeirizadora” e não domesticadora, e cuja função, segundo Venuti, “[...] é a assimilação, a inscrição de um texto estrangeiro com inteligibilidades e interesses domésticos” (2002, p. 27).

Essa evidência “estrangeirizadora” é perceptível, não apenas pelas palavras em português contidas na tradução, mas também pela interferência explícita do tradutor, através de implicaturas, ou seja, presença de informações explicativas suplementares no corpo da tradução, “[...] uma característica do texto estrangeiro que revela uma diferença entre as culturas estrangeira e doméstica [...]” (ibid., p. 46). Essa “manifestação” do tradutor é defendida por Venuti, que afirma que toda tradução de uma maneira ou de outra sempre deixa escapar seu tradutor, deixando marcas próprias em seu trabalho, sendo “o tradutor [...] entendido como um sujeito inserido num certo contexto cultural, ideológico, político e psicológico - que não pode ser ignorado ou eliminado ao elaborar uma tradução” (BOHUNOVSKY, 2001, p. 54).

Assim, a visibilidade do tradutor é evidente e proposital. O objetivo é de levar o leitor estrangeiro francês ao conhecimento de uma cultura diversa, sabendo que não terá diante dele uma obra literária brasileira traduzida para o francês, a exemplo de traduções de autores como Guimarães Rosa, Euclides da Cunha etc, que procuram fazer com que o leitor se reconheça, identifique-se na obra, mas terá, ao contrário, uma obra de informação sobre o folclore, um dicionário que contém todas suas peculiaridades e visa transmitir um conhecimento cultural. Nesse intuito, o efeito produzido será, como se diz em francês, de um “dépaysement” sentido pelo público-leitor devido a essa “estrangeiridade”. Evidenciando o estrangeiro em sua tradução o tradutor não fica mais apagado de seu trabalho, suas marcas são visíveis.

O tradutor perante o autor, tem uma posição de co-autor, já que nem mesmo o próprio autor é único e solitário na tarefa de redação de seus textos. Venuti confirma isso:

67

[...] a autoria não é indiv idualista, mas coletiva: a forma do trabalho não se origina simplesmente com o autor como “seu estilo e expressões próprios”, mas é de fato uma colaboração co m u m grupo social específico, na qual o autor leva em consideração os valores culturais característicos daquele grupo (2002, p. 116).

No entanto, ainda há controvérsias sobre o assunto em muitas das discussões teóricas sobre tradução. Não obstante, existe uma ideia difundida que posiciona o autor num grau de superioridade em relação ao tradutor, este último renegado à condição de mal necessário. Logo, o conceito de autoria é um fator marginalizante da tradução. Em seu livro L’épreuve de l’étranger, Antoine Berman evidencia essa inferiorização atribuída ao tradutor, “Ele se

considera escritor, mas é apenas reescritor. Ele é autor - e jamais o Autor. Sua obra de tradutor é uma obra, mas não é A Obra” (BERMAN, 1984, p. 19, tradução nossa).23 De fato

a tradução é ainda bastante conceitualizada como uma obra não original que busca copiar um texto autêntico. A esse respeito, Susan Bassnett contesta:

Cada texto é único e, ao mesmo tempo, é a tradução de outro texto. Não há texto totalmente original, porque a própria língua, em sua essência, já é uma tradução: em primeiro lugar, do mundo não verbal e em segundo lugar, pelo fato de todo signo e toda expressão serem traduções de outro signo e outra expressão (PAZ, 1971

apud BASSNETT, 2005, p. 61).

Venuti afirma que a tradução e o texto estrangeiro são textos bem diferentes um do outro, visto que ambos possuem intenções e contextos diversos. O dicionário de Câmara Cascudo e sua tradução para o francês comprovam bem esse posicionamento. Há uma intenção e contexto diversos na redação do dicionário, por parte do autor, que correspondem a uma realidade brasileira. A obra dirige-se a um público brasileiro conhecedor do folclore (de uma maneira mais ou menos profunda), da cultura, que deseja obter uma visão maior sobre estes. Já na versão aqui elaborada, o público em questão, seja ele historiador, estudante ou simplesmente um leitor interessado, curioso, é um público estrangeiro e não conhecedor dessa cultura e para o qual buscamos levar esse conhecimento. Além dessa oposição, Venuti ainda alega que há uma relação “mimética e interpretativa” (2002, p. 118) estabelecida entre o original e a tradução.

23

« Il se veut écrivain, mais n’est que ré-écrivain. Il est auteur – et jamais l’Auteur. Son oeuvre de traducteur est une oeuvre, mais pas l’Oeuvre » (BERMAN, 1984, p.19).

68 De fato, a versão do dicionário de Câmara Cascudo é uma interpretação do texto fonte, assim como qualquer tradução, que mantém, contudo, o aspecto estrangeiro e imita a obra original no sentido de transmissão da forma, do conteúdo, da mensagem. Logo, a versão em francês constitui um texto a parte que não pretende esconder o “étranger” (estrangeiro) sua marca principal, entretanto ela busca apagar qualquer tipo de “étrangeté” (estranhamento). Como destaca Humboldt,

Tão logo sintamos o estrangeiro, mas não o estranhamento, a tradução alcançou seus objetivos supremos; mas ali onde surge o estranhamento como tal, escondendo talvez o estrangeiro, o tradutor trai que ele não está à altura do seu original” (HUMBOLDTapud BERMAN, 1984, p. 246, tradução nossa). 24

Sobre esse ponto evidencia-se a questão da fidelidade do tradutor com a obra, no sentido de reproduzir a intenção do autor. Acerca disso, Paul Valéry afirma, “Não se trata, pois, para o tradutor, de ‘conseguir dizer’ aquilo que o autor ‘quis dizer’, mas sim de ‘fazer’ algo semelhante ao que o autor ‘quis fazer’” (VALÉRY, 1920 apud BARBOSA, 1986 apud LARANJEIRA, 1993, p. 35).

Ao traduzir um texto fonte numa língua-meta, como nesse caso o dicionário de Câmara Cascudo, o objetivo principal não é de reproduzir uma cópia do dicionário em francês, mas de transmitir essa mensagem, esse vasto conteúdo de maneira clara e numa língua diversa, seguindo a norma linguística e os padrões da língua-meta, não escondendo que a obra é estrangeira e levando em consideração o público-alvo.

Portanto, tentamos ser “fiel” ao original no sentido de transmitir a informação, já que o que interessa realmente é o conteúdo, ou seja, que o leitor estrangeiro possa compreender um pouco dessa nossa cultura. E deixando claro de que a obra que o leitor virá a ler carrega traços culturais, sendo estes os vários termos em português deixados no corpo do texto e explicados em seguida. Nesse ponto pode-se dizer que existe uma certa “intraduzibilidade”, já que há muitos termos, elementos típicos da cultura, que não tem correspondente em francês e permanecem em português na tradução. Esses termos merecem ser explicados para a compreensão do público estrangeiro. No entanto, não significa dizer que esses termos sejam intraduzíveis, mas que apenas como afirma Mario Laranjeira (1993) eles apresentam um

24 « Aussi longtemps que l'on sent l'étranger, mais non l'étrangeté, la traduction a atteint ses buts suprêmes;

mais là où apparaît l'étrangeté comme telle, obscurcissant peut-être l'étranger, le traducteur trahit qu'il n'est pas à la hauteur de son original » (BERMAN, 1984, p. 246).

69 “níveis de traduzibilidade” e por isso são um dos principais desafios que o tradutor, enquanto transmissor da mensagem, deve e precisa contornar de uma maneira ou de outra.

Podemos inferir que existem dois tipos de níveis de “traduzibilidade” na obra de Cascudo. O primeiro são todos os vocabulários bem específicos característicos da realidade brasileira tal como “fazendeiro”, “bumbódromo”, “arraial”, por exemplo, que por não possuírem equivalentes foram devidamente explicados, definidos para o leitor-alvo. E o segundo são simplesmente vocábulos que chamaremos aqui de genéricos, pois fazem parte da língua brasileira geral, como “registrar”, “convívio”, “enredo”. Estes, por sua vez, foram traduzidos por uma palavra aproximativa da palavra em português, obedecendo ao sentido conferido na oração, no contexto no qual estavam inseridas. A palavra “registrar”, por exemplo, é citada várias vezes em muitos verbetes e quando traduzida literalmente corresponde a “enregistrer”, contudo no contexto que se quer aqui essa tradução não é adequada. Então cabe buscar um termo aproximativo em francês que tenha o sentido da palavra em português. Por exemplo, na página 70 no verbete que se refere ao “boi-barroso”, tem-se a seguinte frase, “Quadrinhas registradas por Zeno Cardoso Nunes: [...]”, aqui o sentido da palavra “registrar” é “mencionar”. Nesse contexto exigido a tradução em francês “enregistrer”, não é apropriada. Diante disso, tive que optar por alguma palavra que pudesse atribuir esse mesmo valor de significado, propus então “présenter”.

Esse mesmo vocábulo surge muitas vezes e dependendo do contexto ainda foi preciso encontrar outra solução. No verbete “surubim” página 650, por exemplo, modificamos um pouco a sentença traduzindo: “Luís da Câmara Cascudo, em Vaqueiros e Cantadores registra a música e um dos seus únicos versos: [...]”, por: “Luís da Câmara Cascudo, dans Vaqueiros e

Cantadores, nous fait connaître la musique et l’un de ses seuls vers : [...].”

Nota-se que a questão da correspondência é algo complexo entre duas línguas, por mais próximas que sejam, elas jamais têm uma igualdade de sentidos. Para Jakobson, a equivalência nunca é completa na tradução, pois nem mesmo a sinonímia de uma mesma língua não é. Sendo assim, “[...] a tradução é apenas uma interpretação adequada de uma unidade de código estranha [...]” (JAKOBSON, 1959 apud BASSNETT, 2005, p. 37). Nesse aspecto tratado poder-se-ia dizer que, retomando a questão da fidelidade, esta se faz em relação ao sentido, e não à palavra propriamente dita. De fato, ao procurar um correspondente em francês, buscamos uma palavra de mesmo sentido ou de sentido próximo.

Não se trata aqui de um texto domesticador em que o leitor se sinta em casa, mas sim fazer uma viagem através de outra realidade cultural que a sua. Seguindo a abordagem de

70 Berman, a tradução proposta é não etnocêntrica. Segundo o autor o etnocentrismo “traz tudo à sua própria cultura, a suas normas e valores e considera o que se encontra fora dela – o Estrangeiro – como negativo, ou no máximo bom para ser anexado, adaptado, para aumentar a riqueza desta cultura” (BERMAN, 2007, p. 28). Segundo o autor, a tradução não etnocêntrica é ética, pois acolhe o “Estrangeiro”. Sendo assim “uma tradução visível, não transparente, não fluida, estranha para o leitor por quanto visa reproduzir a estranheza que deveria supor a leitura do estrangeiro” (COMELLAS, 2011, p.156).

Trata-se de traduzir um dicionário que já é uma tradução, pois o Dicionário do Folclore

Brasileiro é feito de definições e já que toda definição, explicação é, por conseguinte, uma tradução, a tradução do mesmo é outra tradução, seguindo a fundamentação de Octavio Paz. O autor afirma que os textos se originam de outros textos, ou seja, são “traduções de traduções de traduções” (PAZ, 1971 apud BASSNETT, 2005, p. 61).

Traduzir significa, numa abordagem linguística, interpretar os signos verbais por meio de outra língua, a esse respeito fala-se em tradução interlingual. Roman Jakobson foi quem estabeleceu a distinção entre os tipos de tradução. Para ele existe a tradução intralingual, interlingual e inter-semiótica. A primeira “consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua” (JAKOBSON, p. 64), como por exemplo, a sinonímia, ou paráfrase, e a inter-semiótica “consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais” (ibid.), como o cinema. Nesse âmbito, o que interessa de fato é a interlinguística, fator que caracteriza todas as traduções propriamente ditas.

Assim a tradução interlinguística permite um sistema de comunicação verbal que envolve certos elementos chave para a realização: o emissor (tradutor), o receptor (leitor), a mensagem (tradução), o código (línguas). O tradutor como emissor deve levar a mensagem, através de uma interpretação, ao leitor. Essa mensagem deve ser decodificada, ou seja, interpretada e recodificada, convertida em outro signo linguístico. A tradução não é apenas o processo que se conhece de conversão de uma língua para outra tanto oral quanto escrita, ela é um processo natural que se realiza no dia-a-dia. Toda tradução está inserida num contexto cultural, já que ela é produto da interpretação feita por um indivíduo que traz consigo sua própria bagagem cultural. Sendo assim, a tradução reflete essa influência cultural de forma mais ou menos evidente, pois está intrínseca ao tradutor. “Do mesmo modo que o cirurgião, ao operar o coração, não pode negligenciar o corpo que o circunda, o tradutor correrá o risco se tratar o texto isoladamente da cultura” (BASSNETT, 2005, p. 36). Nessa mesma

71 perspectiva, o tradutor e a cultura estão continuamente ligados, ou seja, durante o traduzir deve-se considerar o aspecto cultural de ambos os lados, a língua da qual se traduz e para a qual se traduz.

A questão cultural é um fator importante no processo tradutório e cada vez mais no mundo contemporâneo com a aproximação das culturas. Devido à influência da globalização a tradução desenvolve mais e mais um papel fundamental. Graças aos avanços tecnológicos, na área de informática e com a internet como rede global, todas essas tecnologias infringiram as barreiras entre os diversos países possibilitando uma comunicação e integração entre culturas e povos diversos, propiciando um mercado de tradutores profissionais. Até mesmo nos meios de audiovisuais sua presença é inevitável. A tradução surge como uma ponte que une uma civilização a outra. As relações diplomáticas, por exemplo, entre países só se tornam possíveis na presença de um mediador, e nesse caso é à tradução que se recorre. O ato tradutório é uma ferramenta essencial que permite ultrapassar barreiras geográficas. Pode-se notar, por exemplo, o papel que a tradução teve durante séculos como agente de evangelização, com a tradução da Bíblia, contribuindo para a expansão do cristianismo ou até do poder que ela pode exercer tanto na vida intelectual, como na História, pela importância que teve no processo de expansão das nações europeias em suas empreitadas colonizações.

Em u ma época de inovações explosivas, e em meio a verdadeiras ameaças de excessos e desordem, a tradução absorveu, moldou, orientou o material bruto necessário. Foi no sentido amplo do termo, a matéria-prima da imaginação. Ademais, estabeleceu uma relação lógica entre o passado e o presente e entre línguas e tradições diferentes, que estavam se distanciando devido à ênfase no nacionalismo e nos conflitos relig iosos (STEINER, 1975 apud BASSNETT, 2005, p.

81).

A tradução é também um importante instrumento de divulgação de uma cultura, de um pensamento, através das traduções de literaturas de grandes escritores brasileiros como Clarice Lispector ou Machado de Assis. E permite também o acesso a grandes autores e filósofos gregos e romanos que serviram de fundamentos a muitos elementos hoje presentes nas culturais atuais, tal qual na política. Venuti ainda constata que nos países em desenvolvimento seu papel é fundamental “[...] no enriquecimento das línguas e literaturas autóctones, incentivando a leitura e a publicação” (2002, p. 298). Desse modo, entende-se que

72 a tradução age como “universalizadora”, buscando sempre ir além. Ela representa muito mais do que se concebe a seu respeito.

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