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2.2 O poema: uma nova visão da realidade

2.2.2 O verso, o ritmo, a metáfora e a métrica

Um verso não espera quase te ignora Escoa-se por entre os dedos artríticos inúteis Um verso não espera

apenas voa Quando nem a breve sombra se vislumbra ficam apenas sobre a mesa branca pequenas pedras de arestas aguçadas vestes de um luto desmaiado que um vento desmedido levará. Mésseder (2000, p. 9)

O verso, o ritmo, a metáfora e a métrica são algumas das caraterísticas que tornam a poesia numa linguagem única, inconfundível, repleta de simbolismo e de emoção.

Iniciando com o verso, de acordo com Jean (1995) e Couto (2007), a sua génese provém da palavra latina – versus –, que significa paralelismo, sulco ou linha em que as linhas paralelas caminham lado a lado sem nunca se encontrarem. As linhas caminham em busca de um infinito que corresponde à capacidade criativa do homem e à libertação do pensamento humano. O produtor/ leitor de poesia cria para lá da realidade através da utilização de palavras de forma original. Assim sendo, o verso apresenta uma distribuição gráfico-visual muito particular, facilmente identificável, em que as linhas nunca se encontram permitindo múltiplas interpretações acerca do seu conteúdo.

A poesia é esta “(…) actividade de escrita por intermédio da qual se alinham linhas paralelas até cobrir uma superfície onde germinarão sentimentos, emoções, visões, etc.” (Jean, 1995, p. 60). A poesia apela aos sentidos e às emoções por meio da sonoridade e do ritmo (Bastos, 1999).

Aliado ao verso aparece o ritmo da poesia, que se apresenta como um jogo de palavras que rimam, atribuem som ao texto, parecem ter música e permitem refletir acerca dos suportes de aprendizagem. O ritmo relaciona-se com a dimensão lúdica promovendo a memorização, a entoação, a progressão sonora, a clareza vocal, bem como colmata alguns vícios e dificuldades linguísticas (Guedes, 2002).

Em África e na América Latina – a poesia impõe-se como “(...) uma manifestação vocal que atravessa todo o corpo e é acompanhada de danças, gesticulação e mímicas” (Guedes,

idem, p. 67). Encontra-se associada ao ritmo; a dimensão corporal, a lúdica, a afetiva e a

mágica no ser humano são promovidas através da poesia.

Se pensarmos no nascimento da criança, encontramos de imediato uma estreita relação com o ritmo. A vida intra-uterina da criança é uma vida rítmica, por exemplo, quando perceciona o bater do coração da mãe. A primeira aprendizagem do mundo, do outro, é o ritmo. Portanto, quando o próprio coração dela começa a bater, ela descobre que o diálogo com as pessoas se promove através do ritmo: o da mãe que contrai e o da criança que avança.

Primeiro o coração do outro, depois o coração da criança a jogar com o da mãe ao desafio. Em seguida, o parto torna-se num ‘baile’ rítmico, e quando ela nasce leva uma palmada com vista à aquisição de um terceiro ritmo – a respiração –. Sem respiração a criança não vive. A criança nasce sob o signo do ritmo e a entrada na vida promove-se através do ritmo do mesmo. Sem ritmo não se entra na vida. O ritmo é um princípio de vida; encontra-se ligado aos organismos vivos (Núñez Ramos, 1998). Isto significa que, desde muito cedo, começam a desempenhar um papel crucial no desenvolvimento holístico da criança, as canções de embalar, os jogos rítmicos, as lengalengas que se tornam nas primeiras linguagens da criança. Ela gosta de ouvir mesmo que não entenda (Bou, 2001). Retomamos a este propósito Aristóteles (cit. por Jean, 1995, p. 18) quando propõe a seguinte relação entre a poesia, o ritmo e a mimesis:

Descobrem-se duas causas na origem de toda a poesia e ambas se devem à nossa natureza. A tendência para a imitação é instintiva no homem desde a infância… é por seu intermédio que todos sentem prazer. A prova visível é fornecida pelos factos: dos objectos reais que não podemos olhar sem dor, contemplamos com prazer a imagem mais fiel […]. Como a tendência para a imitação faz parte da nossa natureza, tal como o gosto pela harmonia e pelo ritmo (quanto aos versos compreende-se que façam parte dos ritmos), no início, os homens mais aptos pela sua natureza a estes exercícios criaram pouco a pouco a poesia com as suas improvisações.

O ritmo visa apelar para a ritmicidade ligada ao corpo “(…) desencadeando uma linguagem única, aprazível e inconformada que ganha vida no âmbito da poesia. É, nesta vertente que a poesia urge como um meio para apelar para a realidade” (Jean, 1995, p. 19). O ritmo desperta a emoção poética e contribui para a sonoridade do poema apelando para o sentido estético promovido pela poesia (Bou, 2001). Para Ramos (2005, p. 65)

(…) a atracção da criança pelo texto poético começa muito antes da alfabetização e do conhecimento do que é a poesia e verifica-se sobretudo através da sua vertente sonora e rítmica. Um ritmo de linguagem que desencadeia geralmente uma ritmicidade ligada ao corpo.

A emoção poética, a sonoridade e a subjetividade são justificadas pelos poetas e filósofos através de uma linguagem simbólica que interpreta a realidade – a metáfora. A metáfora “(...) está sem dúvida no centro do problema levantado por toda a poesia e não podemos pretender abordar o estudo do discurso poético sem a encontrar” (Cosem, 1980, p. 157). Esta figura de estilo apresenta duas funções: a função retórica e a função poética. No que respeita à função retórica, esta apresenta-se como um elemento persuasivo que procura provar alguma realidade ou alguma «incerteza» por via de técnicas subtis e até sofisticadas. A função poética, ligada à realidade, é apresentada sob o intermédio da mimesis – imitação/ representação da realidade –, ações, ficções e fábulas. Nesta função, não se pretende provar nada, somente aludir para alguns fenómenos inscritos na realidade circundante (Cosem, 1980).

Dimensão motivacional: po-e-si-a em movimento

(…) a metáfora apresenta-se muitas vezes como uma boa solução, a única saída conveniente, um modo aceitável, reconhecível, de dizer o texto, sugerindo-o como outro algo que lhe serve não como termo de comparação, mas de intersecção. (…) existem dois planos: o plano do real (…), e o plano de evocado (…).

Igualmente, Bally (cit. por Cosem, 1980, p. 166) já havia reconhecido que

A metáfora não é mais que uma comparação em que o espírito confunde num só termo a noção caracterizada do objecto sensível tornado ponto de comparação. As metáforas são devidas ao facto de se ver acertadamente e de se raciocinar erradamente: preguiça de pensamento e de expressão.

Na prosa, a metáfora apresenta-se como um “longo texto maçudo”. Na poesia aparece como um texto repleto de “estruturas fonéticas originais”, de comparações e de imagens que invadem o leitor de um sentimento de motivação, entusiasmo e plena vivência deste texto aliciante (Jean, 1995, p. 30). A poesia apresenta uma densa linguagem metafórica conducente à imaginação de lugares e objetos que o leitor cria por intermédio de imagens facilitando o alcance da poesia.

O recurso à repetição de palavras, ideias e expressões é constante na poesia para crianças. A repetição impele na criança a prática da recitação, bem como o recurso às mnemónicas; também apela para o encantamento sugerido pela beleza inigualável do poema que explora uma ideia, uma frase, um pretexto. Nesta linha de pensamento, a repetição promove a aprendizagem da leitura, visto que consolida a interiorização e a compreensão de textos (Gomes, 1993).

Com efeito, aparece a métrica aliada à metáfora e ao ritmo. Segundo Guedes (1993), as estruturas fónico-rítmicas e métricas constituem-se, comummente, associadas à dialética: poesia-corpo e poesia-memória, quer no que respeita à função lúdica, quer no que concerne à função mnemónica. Neste sentido, para Couto (2007), existe uma grande discordância entre a métrica e a estrutura sintática; fundamenta o autor esta discordância remetendo para a métrica e a estrutura sintática e a sua presença, de forma consciente e refletida, como alude Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa (1993, p. 42):

Não me importo com as rimas. Raras vezes há duas árvores iguais, uma ao lado da outra. Penso e escrevo como as flores têm cor

mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me porque me falta a simplicidade divina

de ser todo só meu exterior. Olho e comovo-me,

comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado. E a minha poesia é natural

como

Para o poeta, a poesia ocorre de forma natural e espontânea como a expressão de emoções, sentimentos, realidades, vivências; não existe a preocupação pela rima, pelas estruturas fónico-rítmicas e métricas acontecendo de forma intuitiva e natural.

Contrariamente, Guiraud (cit. por Jean, 1995, p. 62) afirma que:

O poema em verso é um discurso metrificado, ou seja, no qual as divisões naturais da linguagem, frases e proposições, se desenvolvem no quadro de uma segmentação prosódica fixada por regras. Deve insistir-se nesta correspondência entre a sintaxe e a métrica, que é certamente mais ou menos rigorosa segundo os casos e os sistemas, mas cujas variações respondem a liberdades codificadas ou a efeitos de estilo particular.

Para o autor, o poema é um discurso metrificado pois apresenta divisões que ocorrem de acordo com regras fixadas da prosódica ou mesmo tendo em conta o estilo particular do poeta. Com efeito, no poema existe a preocupação pela métrica, ou seja, pela medida do verso, para que o poema se torne mais apelativo para o leitor. Reverdy (cit. por Jean, idem, p. 53) reflete sobre esta preocupação

A poesia de quem escreve é como o negativo da operação poética, e o positivo encontra-se no leitor. Só quando a obra assumiu todos os seus valores na sensibilidade do leitor é que pode ser considerada como realizada, à semelhança da imagem fotográfica fixada na prova, com a diferença que essa imagem na alma do leitor não é vista por ninguém. Eis porque não é ao poeta escritor que cumpre falar, mas sim àqueles que o lêem.

A poesia é, pois, um discurso que provoca múltiplos sentimentos na pessoa que lê, que provoca diferentes interpretações e que possibilita a adoção de uma nova visão sobre a realidade. A poesia caraterizada por versos, rimas, metáforas, ritmos, métrica, torna-se visível num corpus – o poema –, que lhe dá vida e lhe confere a sua existência.

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