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Uma viagem entre coleções e constelações

A primeira etapa do processo de montagem deu-se através de uma longa observação das imagens produzidas no decorrer da pesquisa, ainda cruas e não tratadas. Permiti-me ser conduzido a perceber os elementos que prenderam o meu olhar durante o deslocamento em campo. Como destacado anteriormente, nenhum olhar é desproposital, os olhares revelam maneiras específicas de ver, maneiras de vida, as maneiras como eu enquanto etnógrafo observei, e fui conduzido a observar e alterar o olhar durante a “flanerie” junto aos meus interlocutores. Ao ver aquelas imagens espalhadas em pastas no computador, elas exerciam certo magnetismo, pois alguns temas eram claros, mesmo diante da diversidade imagética ali depositada.

Devos e Rocha (2009) sugerem que as imagens deveriam ser pensadas enquanto “filmes de memória”, ou seja, uma reflexão que abranja todo o período de

captação destas, até o processo de edição, onde a produção conta com certo distanciamento daquele momento em que ocorreu o encontro etnográfico. Seria a avaliação das maneiras de perceber e pensar o tempo, as formas culturais, refletindo sobre processos sociais, que só podem ser manifestos na riqueza de um conjunto de imagens. Portando ao analisa-las, me foi possível ter a percepção que foi descrita no capítulo dois desta dissertação, concretizada através dos trajetos que foram construídos nas imagens, e por meio das imagens.

“É na escuta atenta e na leitura detalhada das imagens produzidas que reside a maior ou menor capacidade do antropólogo “pensar por imagens” no sentido de produzir conhecimento através de imagens técnicas” (DEVOS e ROCHA, 2009 p.117).

Elas revelam o modo como minha perspectiva foi sendo transformada progressivamente, mostrando que na medida em que me deslocava em diferentes direções e olhares, a minha percepção sobre o bairro foi resinificada em acordo com o imaginário dos meus interlocutores e formas deles construírem o espaço. Na pesquisa, as coleções etnográficas também alcançaram esta função multidirecional, revelando os diferentes olhares do pesquisador e seus interlocutores, e as transformações de ambos ocasionados pelo encontro etnográfico.

O fato de muitos dos interlocutores serem praticantes de alguma forma de religiosidade ou estarem envolvidos na liderança de núcleos de religião exemplifica a emersão de núcleos de sentido para constituir estas coleções. Eles me conduziram por seus espaços sagrados como forma de oferecer sentido às narrativas. Após o distanciamento do campo, percebi que esta experiência se destacou no trabalho de campo, manifestando-se na presença de muitos símbolos e espaços religiosos fotografados e registrados em vídeo.

A partir desta percepção surgiu a ideia da adoção de um recorte conceitual que visava conectar os personagens a determinados cenários, procurando ressaltar como se produziram estas imagens. Decidi então separar parte do acervo, montando núcleos que manifestavam a vida no cotidiano, o espaço sagrado, as performances e símbolos no e sobre o corpo. Procurei ressaltar a dramática expressa na cena, buscando enfatizar a condição em que foram produzidos os registros, dando destaque aos aspectos simbólicos enfatizados no momento da gravação. Também a ação do etnógrafo mediando à relação com o interlocutor, buscando suavizar a presença dos equipamentos, que também atuam (enquanto

atores não humanos) o encontro etnográfico, agenciando o transcorrer das narrativas.

Decidi por nomear a coleção de habitantes do Guaju, esta que trataria das narrativas dos moradores do bairro, que tiveram as suas experiências com o espaço em diferentes temporalidades. As narrativas gravitam em torno do que seja habitar um bairro ocupado, ser solidário, acompanhar as transformações urbanas, vivendo as diferentes religiosidades, formas de vida em grupo e, em síntese, “ser do guaju”. Dividi a primeira constelação levando em conta estes “filmes de memória” que foram reforçados por meio das narrativas que ressaltaram a solidariedade adjunta às praticas religiosas. Assim, vi por bem nomear esta constelação como símbolos de coexistência e religiosidade, priorizando o registro dos ícones religiosos com forte teor simbólico, bem como a presença dos interlocutores nos espaços sagrados.

Procurei manifestar através das imagens os símbolos de devoção da intimidade, elementos que ressaltassem as práticas de transcendência, a experiência individual e a percepção do outro dentro de uma perspectiva do coletivo. As imagens representam justamente esta relação que é estabelecida dentro do espaço urbano, no caso desta constelação, ela aponta pra constituição do “ethos” com o olhar direcionado para as expressões de fé dos habitantes. São as memórias do passado, como significam esta relação religiosa em uma perspectiva de espaço compartilhado com outras crenças, o ser solidário, como entendem o presente e como as diferentes crenças atuam no mesmo espaço produzindo sentidos. Esta constelação integra imagens de distintas cruzes, atabaques, guias, recantos de devoção, santos, orixás, sacerdotes, espaços sagrados, performances, referências a antepassados, personagens religiosos, vida no bairro e a devoção fluindo em diferentes direções e guiando significados construídos no imaginário destes habitantes.

Figura 10 – Algumas fotografias que compõe a constelação dos símbolos de coexistência e religiosidade - Fonte: do autor

Através da observação das imagens, percebemos a duração das diferentes formas captando o nosso olhar, chamando a atenção para os modos que revelam como os habitantes manifestam e imaginam a experiência religiosa no bairro. São imagens gravitando em torno destas “constelações”. Conforme Durand (2001) as formas de sociação são orientadas segundo estas constelações, acompanhando os núcleos que organizam os sentidos, em uma configuração simbólica que aclara muitas das questões postas ao antropólogo. São “protocolos normativos” que distinguem estas representações do imaginário, se agrupando como que atraídos pelos esquemas originais, que podem ser reconhecidos como estruturas apresentando a sua dinâmica. Assim como destacado por Devos e Rocha, (2009) meu desafio foi perceber as narrativas assumindo a forma de coleções, manifestando uma vasta constelação de símbolos sobre a sociedade. O que busquei por meio desta constelação foi alcançar uma maneira de fazer as “narrativas orais expressarem os figurinos do imaginário”. (DEVOS e ROCHA, 2009 p.119).

A segunda parte da coleção refere-se às questões estéticas e emocionais encontradas neste espaço urbano, bem como, às rotinas e trajetos dos habitantes do bairro. Procurei destacar tais elementos na seleção de imagens e recortes videográficos. A esta constelação refiro-me enquanto Os caminhos da memória, na qual destaquei o olhar voltado para as habitações, os espaços de relevância nas narrativas, a maneira como os moradores se apropriaram e personalizaram o que consideram como seu. É o caminhar na rua, os trajetos construídos, as praças e espaços de socialização e a Avenida 17 de abril, além dos trajetos estabelecidos pelos interlocutores, onde oferecem sentido para aquilo que consideram público e não público. Esta constelação fala das percepções sobre habitar, caminhar, reconhecer o outro, recordar, evocar as memorias e símbolos do passado, imaginar o presente e o futuro. Nesta constelação encontramos fotos de prédios, associações, praças, espaços considerados públicos pelos moradores, fotos do transito na Avenida 17 de abril, o interior dos prédios, os espaços de socialização, os corredores verdes, as residências dos interlocutores, as modificações nas estruturas ocupadas, as associações e comércio intenso no bairro.

Figura 11 – Algumas fotografias que compõe a constelação Os caminhos da memória – Fonte: do autor

Assim, apresentando estes “enquadramentos da memória” destaco os caminhos que elegi, demonstrando como agrupei as narrativas na forma de coleções etnográficas, buscando com isso a concordância com a “dinâmica da matéria das lembranças” (DEVOS e ROCHA, 2009 p.118).

Foi na proposta de pensar uma imagem que pertencia a estes meus “outros”, que busquei refazer os diferentes trajetos em uma perspectiva audiovisual. Assim como destacado pelos autores que nortearam minha proposta, pensar na sugestão da montagem de uma coleção etnográfica foi também constituir um caminho em duas vias, sabendo que ao mesmo tempo em que montava um acervo a fim de compor a dissertação e o filme etnográfico, também os constituía como forma de restituição aos que foram alvo de minha análise. Cumpri por este meio, um dos principais propósitos desta pesquisa: a produção de conhecimento compartilhada e restituída a estes habitantes, enquanto um dos fatores fundamentais neste processo.