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Vias Bioquímicas e o Desenvolvimento de Fármacos para a TAH

Capítulo 6. Planejamento de Inibidores da Aldolase 101 6.1 Relações Quantitativas entre Estrutura e Atividade para Inibidores da

1.7 Vias Bioquímicas e o Desenvolvimento de Fármacos para a TAH

A bioquímica da família Trypanosomatidae tem sido extensivamente estudada, principalmente devido a estes organismos apresentarem várias peculiaridades em alguns de seus processos celulares. O causador da TAH é um dos representantes mais estudados desta família. Nos últimos anos várias vias metabólicas de Trypanosoma brucei têm sido exploradas como potenciais alvos para a descoberta de novos fármacos. A conclusão do sequenciamento genômico do parasita contribuiu de forma decisiva para a compreensão e manipulação do seu material genético e de seus produtos, resultando na investigação de várias

proteínas, como potenciais alvos moleculares43. Estas vias metabólicas e os principais alvos moleculares que têm sido explorados são brevemente discutidos a seguir.

Biossíntese de poliaminas e de tripanotiona

A biossíntese de poliaminas em Trypanosoma brucei é essencial para o crescimento e diferenciação do parasita, como tem sido demonstrado em estudos de

knockout gênico e RNA de interferência (RNAi). Esta rota metabólica adquire mais

importância à medida que apresenta características diferentes da via humana. A TAH é a única doença para a qual a biossíntese de poliaminas é alvo para um fármaco utilizado na clínica, a eflornitina. Duas enzimas são investigadas como alvos moleculares: a ornitina descarboxilase e a adenosil-metionina descarboxilase44.

A tripanotiona, por sua vez, é uma molécula essencial que atua no sistema redox celular, responsável pela neutralização de espécies reativas de oxigênio. Sua biossíntese está ligada à via das poliaminas através de um intermediário comum, a espermidina. Das enzimas desta via, a tripanotiona sintetase e a tripanotiona redutase são alvos para o desenvolvimento de fármacos45.

Metabolismo de purinas e pteridinas

O metabolismo de purinas e pteridinas se torna uma via metabólica promissora a ser explorada, à medida que o parasita não possui uma via de

salvação para estes metabólitos que são essenciais para o crescimento celular.

Estes são adquiridos do hospedeiro através de uma série de proteínas transportadoras. Proteínas como a diidrofolato redutase e a pteridina redutase têm sido exploradas em outras doenças infecciosas e parasitárias, tais como a malária46.

DNA topoisomerases

DNA topoisomerases são essenciais nos processos de replicação e transcrição do DNA. Inibidores das topoisomerases bacterianas têm demonstrado potencial tripanocida. O principal obstáculo tem sido encontrar inibidores seletivos para a enzima parasitária em relação à enzima do hospedeiro. A principal estratégia

tem sido a busca por diferenças estruturais entre a enzima de T. brucei e de mamíferos44.

Biossíntese de lipídeos

Assim como ocorre na maioria dos eucariotos, a biossíntese de ácidos graxos e esfingolipídeos é essencial para o parasita, principalmente no processo de formação da membrana celular. As especificidades da via parasitária podem ser exploradas no desenvolvimento de inibidores seletivos de várias enzimas, como a elongase, a esfingolipídeo sintetase e a N-miristoil transferase. O papel essencial que estas enzimas desempenham no ciclo de vida do parasita tem sido comprovado através de estudos de RNAi45.

Modificações proteicas

A adição de isoprenóides em determinadas proteínas é um dos principais mecanismos de transdução de sinais em tripanossomatídeos. As pesquisas acerca deste processo celular têm se concentrado na enzima farnesiltransferase, responsável por catalisar esta reação. Outra modificação proteica, também envolvida em processos de transdução de sinais, é a transferência de grupos fosfato para enzimas, principalmente aquelas localizadas na membrana celular. As enzimas que catalisam estas transferências de fosfato são as quinases (a glicogênio sintetase quinase é uma das enzimas que têm sido investigadas).

Também essencial para reprodução do parasita é o processo de clivagem de proteínas. A busca por inibidores de proteases tem sido utilizada com sucesso em doenças virais, parasitárias e câncer. Estudos de RNAi identificaram a protease catepsina B como essencial para o desenvolvimento do parasita47.

Via glicolítica

Dentre as vias metabólicas exploradas para o desenvolvimento de novos fármacos para a tripanossomíase africana, a via de degradação da glicose é uma das áreas mais efervescentes de pesquisa48.

A glicólise surge como alternativa promissora à medida que é o único processo gerador de energia da forma sanguínea do parasita. Tem sido demonstrado que a glicólise em tripanossomatídeos contém várias características distintas do processo que ocorre em células de mamíferos, como por exemplo, a compartimentalização de várias enzimas envolvidas no processo, em organelas denominadas glicossomos, como ilustrado na Figura 6. Estas diferenças permitem o desenvolvimento de compostos seletivos para as enzimas do parasita49.

No metabolismo de T. brucei, a glicose é a única fonte de carbono e energia. No sangue e em outros fluidos do hospedeiro, o parasita tem acesso a uma fonte ilimitada de glicose, que é internalizada e metabolizada por um processo de fermentação aeróbica, a uma taxa muito superior àquela encontrada na maioria das células eucarióticas. Enquanto na maioria dos organismos a glicólise ocorre no citosol, no parasita suas primeiras sete enzimas estão localizadas dentro do glicossomo, uma organela separada do citosol por uma membrana. Embora os glicossomos se assemelhem aos peroxissomos, eles não possuem as típicas enzimas peroxissomais, como a peroxidase e a catalase. Cerca de 90% das enzimas glicossomais são enzimas que participam do metabolismo da glicose49.

Os organismos que possuem mitocôndria ativa utilizam a glicólise como o primeiro passo no processo de obtenção de energia, que então continua através do ciclo do ácido cítrico e da cadeira respiratória, obtendo ao final de todo o processo um rendimento de 38 moléculas de ATP50.

Figura 6 – Glicólise em T. brucei. A numeração corresponde às reações catalisadas pelas seguintes

enzimas: (1) hexoquinase; (2) fosfoglicose isomerase; (3) fosfofrutoquinase; (4) aldolase; (5) triosefosfato isomerase; (6) gliceraldeído-3-fosfato desidrogenase; (7) fosfogliceratoquinase; (8) glicerol-3-fosfato desidrogenase; (9) glicerol quinase; (10) fosfoglicerato mutase; (11) enolase; (12) piruvato quinase.

A única mitocôndria presente no parasita, por sua vez, não possui as enzimas do ciclo do ácido cítrico e nem da cadeia respiratória, fazendo com que o produto final da glicólise, o piruvato, seja excretado diretamente na corrente sanguínea do

hospedeiro, ao invés de ser oxidado a dióxido de carbono e água, como em outros organismos que possuem mitocôndria. O baixo rendimento da fosforilação ao nível do substrato, em termos de produção de ATP é a causa do alto consumo de glicose característico do parasita51. Dado que os tripanossomatídeos não possuem nenhuma reserva de carboidratos, como glicogênio ou creatina fosfato, a inibição do fluxo glicolítico ou a depleção do seu substrato, leva imediatamente à diminuição do nível celular de ATP, à perda de motilidade e ao desaparecimento do parasita da corrente sanguínea do hospedeiro52.

Atualmente, não resta dúvida de que as enzimas que participam do catabolismo da glicose constituem excelentes alvos moleculares para o desenvolvimento de fármacos. De fato, várias delas foram geneticamente validadas para este propósito, fazendo com que as discussões se deslocassem para a questão de quais enzimas constituem os melhores alvos44.

Modelos matemáticos têm sido utilizados para predizer a dinâmica do fluxo da glicose e a concentração dos metabólitos encontrados experimentalmente nos parasitas. Estes dados têm contribuído para a compreensão do grau de controle que cada enzima exerce sobre o processo. Enzimas como a gliceraldeído-3-fosfato desidrogenase, a glicerol-3-fosfato desidrogenase, a fosfogliceratoquinase, a aldolase e a fosfofrutoquinase, exercem um nível de controle considerável, especialmente em condições fisiológicas, onde a oferta de glicose não é um fator limitante. Enzimas que não possuem papel significativo na regulação da via, mas que podem ter sua atividade modulada por inibidores enzimáticos potentes, também podem constituir alvos moleculares, desde que sejam capazes de reduzir significativamente o fluxo50. Esta abordagem foi comprovada em experimentos de

knockout gênico, onde a supressão da atividade da triose fosfato isomerase, uma

enzima considerada não essencial para a glicólise, foi capaz de diminuir a produção de ATP pela metade, o que não é capaz de suprir as necessidades metabólicas do parasita. Estes estudos indicam que um inibidor da via glicolítica, capaz de reduzir consideravelmente a produção de ATP, poderá paralisar a reprodução do patógeno53. A relevância da via glicolítica pode ser constatada na Tabela 3. Dentre todas as vias bioquímicas exploradas no planejamento de fármacos, a glicólise é a que possui mais enzimas validadas44.

Tabela 3 – Vias metabólicas e alvos moleculares validados para o desenvolvimento de novos

fármacos para a TAH.

Via metabólica Alvo molecular

Biossíntese de poliaminas e tripanotiona

Ornitina descarboxilase Adenosil-metionina descarboxilase

Tripanotiona sintetase Tripanotiona redutase Metabolismo de purinas e pteridinas Diidrofolato redutase Pteridina redutase

Modificações do DNA DNA topoisomerase

Biossíntese de ácidos graxos e esfingolipídeos

Elongase

Esfingolipídeo sintetase N-miristoiltransferase

Prenilação de proteínas Farnesiltransferase

Fosforilação de proteínas Glicogênio sintetase quinase

Clivagem de proteínas Catepsina B

Divisão celular Tubulina

Via glicolítica Hexoquinase Fosfoglicose isomerase Fosfofrutoquinase Aldolase Fosfogliceratoquinase Enolase 1.8 Aldolase

As enzimas são consideradas os alvos moleculares mais atrativos para o desenvolvimento de novos fármacos, devido ao seu papel essencial em muitos processos fisiopatológicos. Este aspecto é evidenciado pelos números que demonstram que cerca de metade dos fármacos atualmente em uso clínico são inibidores enzimáticos54-57. Portanto, a identificação e caracterização de enzimas essenciais à sobrevivência de microorganismos patogênicos são fundamentais para o planejamento de novos agentes quimioterápicos.

Neste cenário, a enzima aldolase de T. brucei foi recentemente validada como alvo molecular. A relevância da enzima para a via glicolítica de T. brucei foi

demonstrada através de experimentos de RNAi, nos quais a supressão parcial da concentração intracelular da enzima foi suficiente para rapidamente causar a morte do parasita58.

A enzima (EC 4.1.2.13), uma liase que está presente na maioria dos organismos, possui papel essencial na via de degradação da glicose. A aldolase catalisa a clivagem reversível da hexose frutose-1,6-bifosfato (FBP), resultando na formação de duas trioses: a diidroxiacetona-fosfato (DHAP) e o gliceraldeído-3- fosfato (GAP), de acordo com a Figura 7.

Figura 7 – Reação catalisada pela aldolase: clivagem reversível da frutose-bifosfato em

diidroxiacetona-fosfato e gliceraldeído-3-fosfato.

Existem duas classes de aldolases. As enzimas de classe I (à qual pertence a aldolase de T. brucei), que estão presentes em vários grupos de organismos, desde procariotos até eucariotos, são caracterizadas pela formação de uma ligação covalente entre um resíduo de lisina e o substrato, sem necessitar de um íon metálico divalente para a catálise. O mecanismo de reação da aldolase de T. brucei é ilustrado na Figura 8. As enzimas de classe II, que ocorrem apenas em procariotos e eucariotos inferiores como fungos e algas, requerem um íon metálico, sendo chamadas de metaloaldolases59.

Figura 8 – Esquema simplificado da reação catalisada pela aldolase de T. brucei.

A enzima é abundante em T. brucei e exerce um controle significativo sobre o fluxo glicolítico do parasita, o que não se confirma no caso da enzima encontrada nos eritrócitos humanos, nos quais a diminuição da atividade da aldolase não provoca efeitos adversos significativos60.

Assim como a maioria das aldolases, a enzima de T. brucei é um homotetrâmero de 160 kDa, que resulta da associação de quatro cadeias polipeptídicas idênticas de 360 resíduos de aminoácidos. Cada subunidade possui um sítio ativo independente, tanto estruturalmente quanto funcionalmente, ou seja, cada sítio é formado por resíduos de apenas uma cadeia e não há fenômenos de interação entre os sítios. A enzima também não depende de cofatores ou moduladores para catalisar a reação59. A estrutura tridimensional da aldolase de T.

brucei é apresentada na Figura 9.

Em mamíferos, foram identificadas três isoenzimas da aldolase: a isoenzima

A, presente nos músculos e nos eritrócitos; a B, presente no fígado, rins e intestino;

e a C, no cérebro. A identidade da sequência primária entre as isoenzimas humanas e a parasitária é de 49%. Algumas diferenças estruturais tornam possível o planejamento de inibidores seletivos para a enzima do parasita59,61.

Figura 9 – Estrutura tetramérica da aldolase de T.brucei.

A comparação da estrutura primária de várias isoenzimas de aldolases de classe I revelou um alto grau de identidade entre os resíduos, particularmente aqueles pertencentes ao sítio ativo. Como consequência, a estrutura da enzima é altamente conservada e um único padrão de estrutura terciária e quaternária é observado. Este enovelamento comum foi confirmado pela determinação estrutural de aldolases de várias espécies, através de cristalografia por difração de raios-x. Atualmente o banco de dados PDB (na sigla inglesa para Protein Data Bank) possui 85 estruturas de aldolases de classe I depositadas62.

A resolução da estrutura tridimensional da aldolase de T. brucei (código PDB: 1F2J) revelou que suas subunidades apresentam um enovelamento do tipo barril β, no qual folhas β formam um cilindro similar a um barril, que é circundado por α- hélices61. O sítio ativo localiza-se na face interna do barril que está exposta ao solvente (Figura 10), levando à principal característica do sítio, que é a presença de um grande número de resíduos carregados. Dentre estes, a lisina 239 é a responsável pela formação da ligação covalente com o substrato59.

Dentre os aspectos que se tornaram evidentes à luz da estrutura tridimensional da enzima, destaca-se o fato de que os requerimentos necessários

para que haja complementaridade eletrostática entre os ligantes e os resíduos carregados presentes no sitio de interação, se opõem àqueles necessários para promover a passagem destes compostos através das membranas do parasita, o que torna extremamente desafiadora a busca por inibidores clinicamente úteis. Esta é uma das razões para a inexistência na literatura de registros de inibidores da aldolase de T. brucei com atividade contra o parasita44.

Figura 10 – Estrutura do monômero da aldolase de T. brucei, com destaque para o sítio ativo que

Capítulo

2

2 Objetivos

O objetivo geral desta tese de doutorado compreende a identificação de novos inibidores da enzima aldolase de Trypanosoma brucei, através da integração de métodos computacionais e experimentais. Os objetivos específicos incluem:

1. Desenvolvimento e padronização de protocolos de expressão, purificação e cristalização para a aldolase de T. brucei.

2. Desenvolvimento e padronização de ensaios de cinética enzimática para a avaliação de inibidores da enzima.

3. Desenvolvimento de modelos de relações quantitativas entre a estrutura e atividade (QSAR) para uma série de inibidores da aldolase, através dos métodos holograma QSAR (HQSAR) e análise comparativa dos campos moleculares (CoMFA).

4. Realização de simulações de dinâmica molecular para complexos formados entre a aldolase e seus inibidores, com o propósito de caracterizar os fenômenos de reconhecimento molecular.

5. Planejamento e realização de triagens virtuais em larga escala com o objetivo de identificar novos inibidores da aldolase.

6. Seleção e aquisição de moléculas identificadas nas triagens virtuais.

7. Avaliação bioquímica dos ligantes selecionados na etapa de triagem virtual frente à aldolase de T. brucei.

Com a finalidade de apresentar e discutir os métodos utilizados, a tese é apresentada a seguir em seções separadas para os métodos computacionais e para os métodos bioquímicos.

Capítulo

3