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PARTE I: ENQUADRAMENTO TEÓRICO-EMPÍRICO

4. Trajectórias atípicas de vinculação

4.3. Vinculação e psicopatologia na infância

Em meados dos anos 70 do século XX, os estudos normativos que seguiam a linha de investigação de Ainsworth e colaboradores (1978), baseada na Situação Estranha como procedimento de avaliação de excelência das diferenças individuais de vinculação, começam a fazer referência a bebés “não classificáveis”, cujos comportamentos divergiam da tipologia de vinculação seguro e inseguro (A, B e C). Foram várias as denominações que surgiram no âmago destes casos atípicos, sendo que o grupo

desorganizado/desorientado (D) de Main e Solomon (1990) parece ser aquele que detém

maior consistência e suporte empírico (Barnett, Buttler & Vondra, 1999). A investigação tem concebido a desorganização da vinculação na infância como um dos preditores mais valorizados de trajectórias inadaptativas e de psicopatologia na adolescência e na idade adulta (Van IJzendoorn, Schuengel & Bakermans-Kranenburg, 1999).

Main e Solomon (1990) constataram que, quer em situação de stress, quer na

presença da figura de vinculação, alguns bebés exibem um quadro comportamental descoordenado e bizarro, de difícil explicação e sem propósito aparente, que, apesar das diferenças individuais, remete para uma condição comum: a ausência de estratégia coerente (organizada) em responder à activação do sistema de vinculação. Estes casos caracterizam- se por sequências de comportamentos que indicam sinais de apreensão e desorganização/desorientação, proeminentemente presentes no momento da reunião entre a criança e a figura de vinculação e/ou aleatoriamente distribuídas entre acções coerentes e organizadas das categorias segura ou insegura. Assim, segundo estas autoras, as expressões de: a) comportamentos paradoxais (e.g. aproximação seguida de evitamento), contraditórios (e.g. aproximação com a cabeça cabisbaixa e ombros caídos), interrompidos ou incompletos (acções sem sentido, e.g. aproximação com sinais corporais de perturbação seguida de paralisia ou deslocação na direcção oposta), bem como de b) movimentos

estereotipados, anómalos ou assimétricos (e.g. bater com a cabeça, sentar-se e esfregar a cabeça repetidamente) e c) a paralisia ou lentificação de movimentos (e.g. acções em câmara lenta) instituem-se como os principais marcos comportamentais da desorganização na infância.

A desorganização tem sido relacionada com um padrão disfuncional ou perturbado de comportamento parental, em que a potencial figura de segurança não funciona como base segura. Da repetida exposição a comportamentos assustados, assustadores ou dissociativos por parte da figura de vinculação resulta o medo e a confusão na criança, além de uma representação ameaçadora desta mesma figura. Ou seja, a criança encontra-se alarmada não só pelas condições do meio externo, mas também pela própria figura parental, que desempenha dois papéis incompatíveis enquanto fonte de segurança e de ameaça/perigo (Main & Hesse, 1990). Deste modo, quando exposta ao distress, a criança encontra-se num dilema paradoxal pois reconhece que o prestador de cuidados está incapaz de lhe proporcionar conforto e segurança, sendo ele mesmo fonte de medo. Deste conflito irresolúvel resulta o colapso das estratégias de coping comportamental e atencional da criança que se reflecte nas sequências de comportamentos desorientados (Madigan, Moran & Pederson, 2006) já referidas.

Partindo da noção de que as experiências prévias de vinculação na infância constituem um determinante importante da qualidade das relações de vinculação estabelecidas entre a figura parental e a criança (Main et al., 1985), Main e Hesse (1990) advogam que a vinculação desorganizada tende a ocorrer em crianças, cujas figuras parentais apresentam uma organização mental não resolvida pela exposição a experiências prévias de maus-tratos e traumas, ou de perdas não resolvidas10. Nesta linha, Lyons-Ruth, Bronfman e Parsons (1999) declaram que, o nível de perturbação destas figuras é conducente com uma maior probabilidade de serem incapazes de responder

10

Uma meta análise de Van IJzendoorn (1995) revela que 53% dos pais com um padrão de organização mental não resolvido apresenta filhos classificados como desorganizados.

apropriadamente aos comportamentos de vinculação da criança, ao mesmo tempo que também elas parecem activar o sistema de vinculação da criança (Main & Hesse, 1990).

De qualquer modo, diferentes investigações demonstram que a disfuncionalidade do comportamento parental pode assumir a forma de comportamento assustador/assustado (Schuengel, Bakermans-Kranenburg & Van IJzendoorn, 1999), negligente e insensível (Lyons-Ruth et al., 1999) ou hostil e intrusivo (Lyons-Ruth, Repacholi, Mcloud & Silva, 1991), pelo que poderão ser vários os factores explicativos da etiologia da desorganização da vinculação na infância.

Estabelecendo a ponte para os períodos pré-escolar e escolar, Main e colaboradores (1985) registam que crianças classificadas como desorganizadas na primeira infância, tendem a dirigir, aos 6 anos, comportamentos desadaptados (sob o ponto de vista desenvolvimental), agressivos e hostis à figura parental, após um período de separação de cerca de uma hora. Por sua vez, esta figura revela índices de passividade extrema, não sendo capaz de regular ou conter as acções inadequadas levadas a cabo pela criança. Posteriormente, Solomon, George e De Jong (1995) hipotetizam que a desorganização da vinculação na infância parece progredir para um padrão controlador no final da idade pré- escolar, o qual faz uso de estratégias cuidadoras ou punitivas (e até de ambas) e compreende uma inversão de papéis entre a criança e o cuidador. Desconhece-se, no entanto, o modo como estas estratégias operam de forma a potenciarem a adaptação da criança à perturbação comportamental parental, bem como a razão pela qual determinadas crianças adoptam estratégias cuidadoras, enquanto outras recorrem a estratégias punitivas. De qualquer modo, estas estratégias de controlo parecem ter como objectivo o aumento da proximidade e da comunicação com a figura de vinculação, no intuito de resolverem os sentimentos de medo e de desprotecção precocemente vivenciados (Main & Hesse; Jacobitz & Hazen, 1999). Não obstante, o seu carácter maladaptativo é tão ou mais evidente que a representação mental da vinculação mantém-se dominada pela confusão e pelo medo e, portanto, pela desorganização (Teti, 1999). A isto, Teti (1999) assoma que algumas

destas crianças reportam um funcionamento global ainda mais limitado que as crianças que recorrem às estratégias controladoras, visto que não desenvolvem sequer uma estratégia comportamental de vinculação organizada e coerente. Estes casos são habitualmente pautados por extrema disrupção e privação na prestação de cuidados e por grandes restrições pessoais e desenvolvimentais no funcionamento global da criança.

Para estas etapas desenvolvimentais, a investigação tem também realçado uma associação entre a (des)organização da vinculação e as perturbações de externalização e de internalização .

No que respeita ao período pré-escolar, a pesquisa longitudinal conduzida por Shaw e Vondra (1995), com crianças de famílias de risco, supõe que a insegurança da vinculação se relaciona com problemas comportamentais aos 3 anos de idade, particularmente quando a insegurança persiste dos 12 para os 18 meses. No mesmo sentido, o estudo longitudinal de Minnesota indica que a insegurança da vinculação parece funcionar como um factor de risco para o aparecimento de problemas de internalização, concretamente na presença de isolamento e inibição emocional, e de externalização, sobretudo quando ocorrem comportamentos agressivos e hostis (Sroufe et al., 2005). Identicamente, os resultados da pesquisa desenvolvida no âmbito do NICHD, que acompanhou crianças desde o nascimento até ao período escolar, indicam que aos 3 anos a insegurança da vinculação se correlaciona com problemas de internalização/externalização. As crianças classificadas como inseguras aos 24 meses revelam problemas de comportamento, o que aos 34 meses se traduz em problemas de externalização, em meninos, e em problemas de internalização, em meninas e meninos (Belsky, 2007).

Diversos estudos têm ainda demonstrado uma associação entre a vinculação desorganizada e problemas de comportamento na criança. Shaw e Vondra (1995) registam que 60% das crianças com uma vinculação desorganizada manifestam níveis de agressão elevados, facto que ocorre apenas em 17% das crianças seguras. Carlson (1998), no âmago do estudo de Minnesota, sugere que os problemas de comportamento verificados nas

idades pré-escolares predizem o estabelecimento de psicopatologia na adolescência e na adultez, com especial destaque para as perturbações dissociativas.

O estudo de Moss, Bureau, Cyr, Mongeau e St-Laurent (2004), sistematiza as duas linhas de investigação acabadas de mencionar. Consubstancia que o grupo de crianças de 3 anos de idade, classificado como seguro na relação de vinculação à mãe, exibe índices mais altos nos parâmetros de interacção social. Em contraste, o grupo de vinculação desorganizada revela os índices mais baixos. Além do mais, segundo os relatos das educadoras, o grupo de vinculação desorganizada apresenta os níveis mais elevados de problemas de internalização e de externalização. Do mesmo modo, as avaliações maternas declaram que as crianças inseguras (evitantes e ambivalentes) apresentam mais problemas de externalização e que as crianças inseguras-evitantes manifestam mais problemas de internalização.

Um outro foco de análise, ainda pouco aprofundado pela literatura, frisa a premência de se estudar esta problemática à luz da associação entre a vinculação e a psicopatologia em grupos clínicos. Speltz, Deklyen e Greenberg (1999) verificam que 54% das crianças pertencentes ao grupo clínico, portador do diagnóstico de perturbação oposicional desafiante, anunciam uma vinculação insegura, em comparação com 18% das crianças inseguras do grupo normativo. Porém, a monitorização do grupo experimental ao longo de dois anos permitiu verificar que a organização de vinculação não se afigurou preditora do curso e da severidade da perturbação durante este período de tempo.

À semelhança do que sucede na etapa pré-escolar, existe uma enorme validade empírica que suporta a associação entre a insegurança da vinculação e as perturbações de internalização e externalização no período escolar. A título de exemplo, a investigação longitudinal de Lyons-Ruth, Easterbroks e Cibelli (1997), realizada com crianças de risco, indica que, neste período, as perturbações de internalização surgem mais associadas à vinculação insegura-evitante e que 83% das crianças qualificadas pelos professores com problemas de externalização apresentam uma história de vinculação desorganizada na

infância (ao contrário das crianças sem problemas de externalização que representam apenas 13%).

Moss, Rousseau, Parent, St-Laurent e Saintonge (1998) debruçam-se sobre as relações de vinculação, aos 5 e 7 anos, e sua associação com a psicopatologia, aos 5, 7 e 9 anos. Constatam que as crianças avaliadas como desorganizadas registam um risco acentuado para desenvolverem problemas de internalização e de externalização. Realçam ainda que a vinculação insegura-ambivalente em crianças mais novas reflecte sintomas clínicos externalizadores, o que nos rapazes mais velhos evolui para níveis de internalização elevados. Mais tarde, Moss, Smolla, Cyr, Dubois-Comtois, Mazzarello e Berthiaume (2006) desenvolvem um outro estudo, centrado na análise da vinculação aos 6 anos e sua relação com a manifestação de problemas comportamentais nos dois anos seguintes. Verificam que as crianças desorganizadas são aquelas que exibem maiores índices de internalização. Paralelamente, assinalam que, quer as crianças inseguro-ambivalentes, quer as crianças desorganizadas, tendem a revelar níveis mais altos de perturbações externalizadoras.

No entanto, em 2005, Moss, St-Laurent, Dubois-Comtois e Cyr alertam para o facto da idade moderar a associação entre perturbações de externalização e diferentes tipos de insegurança. Por um lado, demonstram que, entre os 5 e os 7 anos, as crianças inseguras- ambivalentes apresentam valores mais elevados de externalização, o que, por volta dos 7 e 9 anos, tende a diminuir. Por outro lado, verificam que os rapazes inseguros-evitantes registam mais problemas de externalização dos 7 aos 9 anos.

Ainda nesta etapa desenvolvimental, outras investigações têm enfatizado, mais especificamente, a compreensão da interdependência entre a insegurança da vinculação e o estabelecimento de sintomatologia agressiva (e.g. Sroufe et al., 2005) e depressiva (e.g. Kaslow, Rehm & Siegel, 1984).